sábado, 20 de abril de 2024

A arte do julgamento

 



Os sussurros sobre a chegada de um novo artista à corte de Luís XIV em Versalhes corriam como brisas inquietas através dos corredores ornamentados e salões opulentos do palácio. Em uma era em que a majestade real patrocinava as ciências, as letras e as artes com uma liberalidade sem precedentes, cada novo rosto era um acréscimo à tapeçaria viva que tecia a glória do Rei Sol. Por trás dessa façanha cultural, havia um projeto ambicioso: a arte, meticulosamente orquestrada e oficialmente endossada, era o bastião da grandiosidade real, um instrumento de poder incontestável.

O Château de Versailles, uma vez um modesto pavilhão de caça herdado de Luís XIII, havia sido transformado sob o comando de Luís XIV em um ícone da monarquia absoluta francesa, um palácio deslumbrante que irradiava o esplendor do poder político. Com a orientação visionária de mestres como Louis Le Vau, Jules Hardouin-Mansart, Charles Le Brun e André Le Nôtre, o palácio e seus jardins passaram por expansões e embelezamentos sem igual, culminando em uma manifestação arquitetônica de luxo, ordem e harmonia.

A chegada do novo artista, no entanto, estava envolta em um manto de mistério. A escolha de recebê-lo sob o véu da noite gerava um misto de curiosidade e inquietação entre os habitantes do palácio. Em uma noite gélida de outono, o ar crispado pela expectativa, centenas de servos se reuniram à espera da carruagem que traria a mais recente adição à corte. À medida que a meia-noite se aproximava, uma carruagem modestamente iluminada surgiu ao longe, puxada por cavalos de aparência robusta e majestosa, cujos cascos ecoavam poderosamente contra o caminho de cascalho.

À medida que a carruagem avançava, os olhos do misterioso artista deveriam vislumbrar os jardins meticulosamente desenhados por André Le Nôtre, um espetáculo de engenhosidade humana e beleza natural. Esses jardins, um triunfo da simetria, ordem e beleza, estendiam-se diante do palácio como um testemunho vivo do controle absoluto do rei sobre a natureza.

Quando a carruagem finalmente se imobilizou diante do grandioso portal, um silêncio expectante pairou sobre a multidão de servos reunidos, cada um antecipando o momento de revelação. No entanto, antes que pudessem se adiantar para cumprir seu dever, uma figura imponente desceu não da cabine destinada aos passageiros, mas da posição do cocheiro. Vestido em um longo sobretudo de veludo negro, adornado com discretos detalhes em fio de ouro que capturavam a escassa luz noturna, o homem possuía uma estatura e presença que comandavam atenção imediata.

Seus olhos, de um amarelo profundo e quase dourado, brilhavam com um esplendor sinistro sob a noite enluarada, lançando um olhar que paralisou os servos com uma mistura de confusão e temor. A pele do homem, de um tom ébano rico e raro na corte francesa, sugeria uma origem distante, talvez das colônias francesas na África ou do Novo Mundo, conferindo-lhe um ar de exotismo e mistério.

Com um gesto autoritário, ele abriu a porta da carruagem, desvelando o aguardado artista de maneira dramática. Em Versalhes, onde o status e a linhagem eram tão críticos quanto o talento, a chegada de um artista raramente provocava tal cerimonial. No entanto, a comitiva reunida parecia suspender essas convenções, preparada para recepcionar a figura emergente com uma deferência quase nobre.

A surpresa se aprofundou quando, do interior da carruagem, um jovem de não mais de 18 anos fez sua aparição não com a cautela esperada, mas com um salto ágil e despreocupado, ignorando completamente a pequena escada e o banco meticulosamente posicionados para facilitar seu desembarque.

Sua pele, de um branco alabastro, contrastava vivamente com o dourado opulento que permeava o Palácio de Versalhes, uma palidez tão marcante que quase sugeria fragilidade, não fosse por sua expressão radiante e a vitalidade que seus gestos insinuavam. Os cabelos loiros, longos e despojadamente amarrados com uma fita de um verde vibrante, evocavam a luminosidade do verão, enquanto seus olhos azuis claros refletiam a serenidade de um céu sem nuvens.

Contrariando todas as expectativas da corte, sua vestimenta era um estudo de simplicidade e praticidade: uma camisa de algodão puro, calças de um verde sutil que caíam soltas sobre suas pernas e, mais chocante ainda, calçava sandálias, um desvio audacioso das botas e sapatos de fivela que dominavam os corredores de Versalhes. Essa escolha de indumentária não apenas desafiava as convenções da moda francesa, mas também se apresentava como um manifesto silencioso de sua origem e independência estrangeiras.

“Aqui é bem mais frio do que imaginei...” ele observou, dirigindo-se ao seu acompanhante de pele ébano, cuja expressão impassível não revelava resposta. A admiração, porém, era evidente em sua voz ao acrescentar, “Mas de fato é algo grande, como você tinha me dito.” Seu francês, embora impecável, carregava um sotaque exótico que confundia os ouvintes, uma melodia estrangeira que entrelaçava suas palavras com um charme misterioso.

Dirigindo-se a outro acompanhante, um jovem que parecia deslocado entre os servos, com seus cabelos negros e olhos escuros brilhando contra a pele pálida – vestido com a elegância da nobreza francesa, mas servindo humildemente ao pintor. A presença deste jovem, tão adequadamente vestido e, no entanto, agindo como um servo, adicionava uma camada de intriga à já fascinante chegada do artista.

O chefe dos servos da corte, um homem de estatura imponente e postura impecável, avançou com passos medidos em direção ao recém-chegado artista. Com uma reverência cuidadosa, ele anunciou: “Monsieur Phoebus Crepuscule, Sua Majestade o aguarda.”

A resposta de Phoebus, no entanto, desencadeou uma onda de choque entre os presentes. “Oh! Ele realmente permaneceu desperto à minha espera? Na correspondência, fiz questão de expressar que um encontro pela manhã seria de meu agrado. Seria possível postergar nossa audiência?” Sua indiferença causou um frisson de horror entre os servos e até entre os membros da guarda real, pois tal ousadia era inconcebível na presença do Rei Sol, cujas ordens eram inquestionáveis.

O jovem servo do artista, vestido com trajes que denotavam sua posição de nobreza, tocou discretamente a manga de algodão de Phoebus, buscando atrair sua atenção. “Creio...” começou ele, com um tom de hesitação, “que seria prudente atender ao chamado de Sua Majestade.”

Phoebus ponderou por um momento, acariciando seu queixo com uma expressão de reflexão profunda, enquanto o chefe dos servos mantinha-se em sua posição de respeito, aguardando a resposta do visitante audacioso. A insolência do jovem artista poderia facilmente resultar em um destino sombrio nas masmorras. O que havia de tão excepcional naquele estrangeiro?

“Está bem, encontrarei o rei. Afinal, é melhor resolvermos isso logo,” concluiu Phoebus, soltando uma risada despreocupada e segurando a mão do servo que lhe havia aconselhado, iniciando sua caminhada em direção ao encontro real. Eles eram seguidos de perto pelo imponente servo de olhos dourados, cuja presença silenciosa e intimidadora parecia emanar uma aura de desaprovação.

Enquanto Phoebus e sua comitiva adentravam o esplendor da corte de Luís XIV em Versalhes, eles atravessaram o magnífico Vestíbulo de Mármore. Este espaço imponente, com suas colunas robustas e o chão mosaico em mármore preto e branco, era um prelúdio da grandiosidade que se desdobraria diante deles. Os tetos, adornados com afrescos que exaltavam as vitórias e o governo de Luís XIV, eram complementados por bustos e esculturas de mármore que retratavam os monarcas franceses predecessores, criando uma ponte silenciosa entre o passado glorioso e o presente majestoso.

Ao prosseguir, encontraram-se na deslumbrante Galeria dos Espelhos, o coração pulsante de Versalhes. Este salão majestoso, alinhado com 357 espelhos que enfrentam as janelas opostas, captava a luz do sol durante o dia, criando uma aura dourada que agora, sob o manto da noite, transformava-se em um brilho suave e etéreo, graças à iluminação cuidadosamente planejada. Os afrescos no teto, obra-prima de Charles Le Brun, narravam as façanhas do reinado de Luís XIV.

Conforme avançavam, cada salão que atravessavam era dedicado a um deus ou planeta, reforçando a imposição da divindade do rei sobre seu domínio terreno. O Salão de Apolo, em particular, destacava-se não apenas como a sala do trono, onde Luís XIV orquestrava os assuntos do estado, mas também como um santuário para as artes, cercado por pinturas e esculturas que celebravam sua grandeza. Foi neste ponto que Phoebus, com sua curiosidade inata e despreocupação característica, fez uma pausa, contemplando o salão com um brilho de interesse em seus olhos.

"Salão de Apolo, hein? Isso é irônico, não acha?" comentou Phoebus, arrancando um olhar de urgência de seu companheiro, que o puxava suavemente, tentando incitar a continuidade de sua caminhada.

"Por favor, mantenha a voz baixa... O que pensarão os outros? Estamos aqui a serviço, não para suscitar escândalos," repreendeu o servo em um sussurro, um tom incomum para a relação entre mestre e serviçal. A tensão entre eles sugeria uma familiaridade que transcendia as convenções sociais, surpreendendo outros servos com a audácia da interação.

"Mas é Apolo! Não encontra humor na situação, Luís? Considerando as circunstâncias..." Phoebus continuou, com um sorriso que iluminava seu rosto, imperturbável pela repreensão.

Luís, o servo, corou levemente sob o escrutínio de seus companheiros e com um puxão mais firme, conduziu Phoebus adiante, um gesto que, embora apressado, carregava uma camada de cumplicidade e entendimento mútuo.

A comitiva de Phoebus avançou pelos corredores do Palácio de Versalhes, um labirinto de esplendor e grandeza, cujas paredes eram enfeitadas com tapeçarias ricas e obras de arte de valor inestimável. À medida que se aproximavam dos Aposentos Reais, o ambiente tornava-se ainda mais imponente, cada passo os levando mais perto da presença do monarca supremo.

Os aposentos do rei, estrategicamente posicionados para saudar o nascer do sol, serviam como o cenário perfeito para o encontro com Luís XIV. Com 45 anos, o Rei Sol emanava uma aura de majestade e autoridade indiscutíveis, uma encarnação viva do absolutismo monárquico e da grandiosidade barroca que marcava sua era. Rodeado pela opulência que ele mesmo ordenara criar, Luís XIV era o epicentro do poder, não apenas na França, mas em toda a Europa.

Vestido em trajes que exibiam a riqueza e o esmero de seu reinado, o rei trajava um casaco finamente bordado com fios dourados, adornado por pedras preciosas que capturavam a luz, criando um espetáculo visual. Uma camisa de linho branco, com rendas elaboradas, espreitava por debaixo do casaco, e uma capa real, talvez de um veludo azul profundo ou vermelho sangue, repousava sobre seus ombros, bordada com o símbolo do sol, em homenagem ao seu apelido. Seu cabelo, meticulosamente arrumado, e uma peruca encaracolada, seguindo a moda da nobreza, completavam sua aparência.

Ao entrar nos aposentos do rei, Phoebus, com sua habitual descontração, rompeu o silêncio reverencial. "Devo dizer que admiro o seu estilo e apreço pelas artes. O trajeto desde a entrada até aqui foi, indubitavelmente, uma experiência peculiar," disse, violando sem cerimônia as rígidas normas de etiqueta da corte. Em Versalhes, era esperado que os visitantes demonstrassem sua submissão e respeito ao rei através de uma reverência profunda, mantendo-se em silêncio a menos que fossem diretamente abordados pelo monarca.

A ousadia de Phoebus provocou um murmúrio de desaprovação entre cortesãos e guardas, muitos dos quais pareciam prontos para intervir. No entanto, Luís XIV, com um gesto tranquilo, silenciou os presentes e, para surpresa de todos, recebeu o comentário do artista com um sorriso.

"É com prazer que vejo Versalhes despertar um apreço artístico em vós, Monsieur Crepuscule," respondeu o rei, demonstrando uma tolerância e um interesse que desafiavam as expectativas.

"Vejo que fiz bem em aceitar o convite de minha mãe para este encontro. Parece ser algo que irá me entreter mais do que esperava," comentou Phoebus com um tom de voz relaxado "Falando nisso, creio que seria sensato discutirmos nosso assunto em particular, não concorda?" Sua sugestão, acompanhada de um gesto amplo e expressivo em direção à multidão que preenchia o aposento, destacou o quão público era aquele momento supostamente íntimo.

A sugestão de Phoebus para uma conversa privada com o Rei Sol poderia ser considerada audaciosa, até mesmo ultrajante, para os padrões da época. Apesar da importância já demonstrada pela recepção grandiosa concedida a ele e do fato de o próprio monarca não ter demonstrado ofensa perante suas maneiras pouco convencionais, havia limites para a indulgência. No entanto, a resposta de Luís XIV surpreendeu a todos mais uma vez.

"Está correto, Monsieur Crepuscule. O que temos a discutir é, de fato, bastante delicado. Prefiro que conversemos a sós," declarou o rei, sua voz ressoando com autoridade incontestável. Diante de tal ordem direta do soberano, nenhum dos cortesãos, servos ou guardas ousou objetar. Com reverências profundas, uma após a outra, as figuras que compunham a audiência real se retiraram do aposento, deixando o rei e o artista em uma privacidade que poucos poderiam reivindicar.

"Meus subordinados se retiraram, contudo, observo que os seus permanecem," comentou o rei, direcionando seu olhar primeiro para o alto servo de olhos dourados, cuja postura impassível e falta de reverência constituíam uma quebra das normas cortesãs, desafiando o monarca com um olhar direto. Em seguida, sua atenção desviou-se para o outro servo, cuja aparência e vestimentas refletiam a elegância imposta pela moda da corte, um contraste notável com a simplicidade do traje de seu mestre. Este servo mantinha o rosto baixo, possivelmente em reconhecimento da autoridade real que seu companheiro desdenhava.

"Diferente dos seus, meus acompanhantes estão inteiramente cientes do assunto que nos ocupa, eliminando qualquer motivo para preocupação," replicou Phoebus, com um sorriso que rasgava seu rosto, revelando caninos inusitadamente proeminentes.

"Quanto ao propósito de minha visita, venho por um pedido feito por minha mãe. Segundo entendi, vossa majestade deseja se juntar a nós... tornar-se um filho da noite. Irônico, considerando-se que você se denomina Rei Sol," provocou Phoebus, sua voz carregada de sarcasmo. A audácia de suas palavras forçou Luís XIV a controlar-se para não convocar a guarda real, consciente de que, frente à entidade sobrenatural diante dele, talvez nem seus mais valentes guerreiros fossem suficientes.

"Desejo a imortalidade," confessou o rei, esforçando-se para manter firmeza em sua voz. "Acredito ser merecedor, dada a magnitude de minhas conquistas, como deve ter observado."

"De fato, fui eu quem foi escolhido dentre todos os meus irmãos e irmãs por minha mãe para esta tarefa," disse Phoebus, esboçando um sorriso que fez o monarca sentir um arrepio inesperado. "E há mais uma razão. Você anunciou à sua corte que sou um artista, o que é verdade. Minha presença aqui não é mera desculpa ou justificativa para visitar Versalhes. Como artista, é por meio da minha arte que julgarei se você está apto a se juntar à nossa exclusiva linhagem. Pretendo pintar um retrato seu."

A proposta deixou o rei visivelmente surpreso. Embora não fosse estranho ser o sujeito de retratos, a ideia de ser avaliado por meio de um deles era inovadora e, de certa forma, desconcertante. "Como exatamente serei julgado por um retrato?" ponderou Luís XIV.

"Levarei dois dias para completar," continuou Phoebus, desviando seu olhar para a janela. A luz da lua, filtrando-se através dela, lançava uma luminosidade etérea sobre o ambiente.

"Dois dias? Isso parece impossível," murmurou o rei com ceticismo. Artistas de sua corte, como Hyacinthe Rigaud, conhecidos por seus retratos meticulosamente detalhados, dedicavam meses a uma única peça.

"Dois dias," reafirmou Phoebus, voltando seu olhar penetrante para o Rei Luís XIV. Seus olhos, anteriormente de um azul sereno, agora exibiam um tom vermelho sangue, instilando um frio visceral no soberano. "Em dois dias, concluirei seu retrato. Nos encontraremos todas as noites no salão que você denomina de Apolo. Após esse período, proferirei meu veredicto sobre seu desejo de se tornar um vampiro."

E assim, sob a promessa enigmática de Phoebus, o destino do Rei Sol foi irrevogavelmente selado.

 

o Rei Sol encontrava-se em um estado de tensão não provocado pelo peso das insígnias de seu poder ou pelo rigor das formalidades cortesãs, mas pela atmosfera enigmática que Phoebus, o vampiro artista, havia instaurado. Embora familiarizado com o tédio que poderia acompanhar as longas sessões de pose para retratos, a experiência atual distanciava-se radicalmente de qualquer coisa que o monarca tivesse vivenciado antes.

Posando em seu trono, Luís XIV estava adornado com suas vestes mais suntuosas, completas com as joias mais deslumbrantes e uma peruca impecavelmente estilizada, tudo meticulosamente escolhido para impressionar o artista de natureza sobrenatural. Contudo, o esplendor de sua aparência pouco contribuía para aliviar o peso da ansiedade que o dominava, uma tensão que emanava não das formalidades da corte, mas do próprio Phoebus e do clima sobrenatural que ele havia criado.

Phoebus, despido de convenções tanto quanto de sua camisa, trabalhava descalço sobre o piso frio do Salão de Apolo. Por sua ordem, o espaço fora isolado do resto do palácio, transformando-se em um ateliê privativo onde apenas as chamas trêmulas das velas rompiam a escuridão, projetando sombras dançantes nas paredes cobertas por tapeçarias históricas. As janelas estavam ocultas sob pesados tecidos, garantindo que nenhum olhar curioso perturbasse a sacralidade do processo criativo.

O rei observava, fascinado e apreensivo, enquanto Phoebus dançava em um transe artístico, suas mãos movendo-se com uma velocidade sobrenatural, alternando entre pincéis embebidos em uma tinta de propriedades mutáveis. A substância parecia viva, mudando de cor e textura ao capricho do vampiro, um fenômeno que cativava e aterrorizava Luís XIV em igual medida.

Os servos, movendo-se como sombras, traziam novas cores para alimentar a frenética criação do artista. E, nos momentos em que Phoebus mergulhava o pincel na paleta, seus olhos transformavam-se, adquirindo um brilho vermelho intenso, desprovido de qualquer vestígio de humanidade, enquanto presas ameaçadoras e sedutoras delineavam-se em seu sorriso.

Os dois dias, ou mais precisamente, duas noites, transcorreram de forma tão vertiginosa que o Rei Luís XIV chegou a questionar se estava imerso em algum tipo de sonho ou febre delirante. Ao término da segunda noite, conforme o vampiro artista havia predito, a obra estava completa.

"Inacreditável..." murmurou o rei, sua voz permeada por um misto de incredulidade e fascínio.

"Por favor, venha ver..." convidou Phoebus, gesto com as mãos manchadas de tinta em direção à tela ainda oculta da visão do monarca. Com passos apressados, impulsionados tanto pela curiosidade quanto pela ansiedade, Luís XIV aproximou-se para desvendar o mistério da pintura.

O que ele encontrou diante de seus olhos foi um choque, uma sensação de horror que permeou seu ser. A tela revelava sua figura sobre o trono, mas divergia radicalmente dos retratos anteriores, nos quais se via imbuído de uma superioridade quase divina. Ao contrário, o retrato apresentava um realismo grotesco: as rugas e imperfeições de sua pele eram visíveis, até mesmo ridicularizadas pelo uso excessivo de pó branco de arroz. Mas o elemento sobrenatural era ainda mais perturbador. O trono era retratado como se fosse construído de ossos, cercado por figuras doentes e famintas estendendo suas mãos em direção às suas vestes luxuosas. No fundo, cenas de guerras e cobradores de impostos agredindo camponeses e a classe trabalhadora para financiar conflitos e a própria construção de Versalhes, retratada como um palácio erguido sobre restos humanos.

A pintura pulsava com uma vida sinistra, exalando odores de podridão, carne, excrementos e sangue, uma aura palpável de morte e sofrimento que emanava da tela.

Tremendo, o rei buscou um lenço para cobrir a boca e o nariz, tentando se proteger da representação aterradora diante dele. "Que pintura horrenda... O que isso significa?" perguntou a si mesmo, confuso e aterrorizado.

"Sabe o que acho curioso nisso tudo..." começou Phoebus, quebrando o silêncio pesado com sua presença quase esquecida. "Não incluí nenhum sol neste retrato... Não vi nenhuma luz emanando de vossa majestade, apesar de fazer tanta questão de associar-se a esse astro tão luminoso no céu."

"Essa pintura... Ela é uma falsidade," proclamou o rei, sua voz embargada por repúdio ressoando através do Salão de Apolo em Versalhes.

"Mentira? Veja bem, eu não me dedico a pintar falácias... Diferentemente de seus artistas, devo salientar," retrucou o vampiro, esboçando um sorriso irônico.

"O que você está insinuando? Que eu sou o monstro retratado nesta obra? Que este será o meu legado?" O monarca, visivelmente exasperado, confrontou Phoebus. "Quem é você para me julgar? Você me associa à morte... mas é sabido que sua espécie leva a morte por onde passa. Hipócrita. Esta é a sua conclusão após seu julgamento? Eu sou um dos maiores governantes da França! Minhas conquistas falam por si!"

Phoebus, com um gesto descompromissado, limpou um de seus pincéis em um recipiente de água, que gradualmente adquiriu uma tonalidade de vermelho intenso, desprendendo um aroma metálico que lembrava sangue.

"Eu fui encarregado de julgá-lo, e assim o fiz."

"E o que isso significa? Exijo conhecer seu veredicto! Ordeno que..." A fala do rei foi abruptamente interrompida por um golpe surpresa de Phoebus, que o derrubou ao chão. O monarca, adornado em sua armadura de cavalaria para o retrato, sentiu o metal amassar com o impacto. Ele tentou clamar por sua guarda, mas seus olhos se fixaram no vampiro que agora se posicionava sobre seu peito, exibindo um sorriso predatório.

"Sabe, minha mãe não me enviou aqui, nem me incumbiu desta tarefa. Fui eu quem solicitou essa missão, movido pela curiosidade. Desejava conhecer o homem que se intitula Rei Sol. Eu tinha que encontrar aquele que leva o nome do astro que mais venero... Sim, é de conhecimento comum que nós, vampiros, deveríamos temer o sol. Que seus raios nos queimam, que ele representa a morte para nós. Mas eu, eu amo o sol. Admiro o que ele simboliza, o que significa. E sempre fiz questão de enaltecer a magnificência do nosso astro rei. Por isso, quando fui transformado, escolhi o nome de Apolo, ou Phoebus. E ao chegar aqui, ao testemunhar este salão e toda a sua construção ornada com ouro e representações solares... Ah, como eu me deleitei e ao mesmo tempo desprezei! Como desejei acabar com sua vida no instante em que o vi..."

O rei observava a cena com terror refletido em seus olhos, sentindo uma dor aguda no peito. O desejo pela imortalidade, suplicado à senhora dos mistérios, agora parecia uma escolha precipitada ao trazer o vampiro para dentro dos muros de seu palácio.

"Minha mãe tem um apreço por coletar espécimes notáveis da humanidade, buscando preservar certas linhagens," disse Phoebus, agora mais conhecido como Apolo, com uma voz carregada de resignação. Seus olhos vermelhos se desviaram para uma figura ao lado, enquanto gestos com a mão ainda manchada de tinta sinalizavam para o servo de vestes aristocráticas se aproximar.

"Então, você vai me transformar? Serei finalmente imortal?" perguntou o monarca, um fio de esperança cortando o terror que sentia momentos antes.

"Você reconhece este rapaz?" Apolo inquiriu, provocando no rei um olhar de perplexidade. A presença do servo naquele diálogo crucial parecia deslocada.

"Eu disse que ele não se lembraria..." murmurou o servo, baixando o olhar, o que instigou ainda mais a curiosidade do rei. Ele deveria conhecer o jovem?

"Este é Luís. Enviado como soldado para Flandres, atualmente sob ocupação francesa, como bem sabe. Lá, mesmo adoentado, lutou para recuperar a estima de seu pai. Eventualmente, foi ordenado que Luís se retirasse para Lille para recuperar sua saúde... e lá ele deveria ter morrido aos 16 anos, não fosse por mim," Apolo desvendou a história com uma calma perturbadora.

"Luís..." O nome ecoou nos lábios do rei, o mesmo de seu próprio nome.

"Luís de Bourbon, ou Conde de Vermandois, título que você lhe concedeu após legitimar seu filho bastardo..." o vampiro elucidou, lançando uma nova luz sobre o jovem.

"Você... o transformou?" A percepção do rei mudou ao notar as feições vampirescas no rosto do jovem, os olhos de um vermelho profundo e os caninos pontiagudos que se revelavam em um sorriso.

"Minha mãe desejava alguém da linhagem real francesa em nossa família, mas nunca especificou que precisava ser o rei..." Apolo revelou, imergindo o Rei Sol em um abismo de desespero.

"Então, é agora que você decide me matar? Como uma forma de vingança?" murmurou o monarca, sua voz baixa vibrando com um misto de resignação e medo.

"E por que eu desperdiçaria tal oportunidade?" respondeu o vampiro com uma risada sarcástica. "Não, você vai viver... Viverá por muito tempo. Assistirá aos seus filhos, seus herdeiros, desaparecerem diante de seus olhos... Enquanto você, isolado pela eternidade de sua própria existência, continuará aqui. Não como um imortal, não. Você envelhecerá, sofrerá como qualquer ser humano e morrerá como o mortal que é... Longe de ser um deus." As palavras do vampiro foram sussurradas diretamente no ouvido do rei, carregando o peso de uma profecia sombria ou talvez apenas a cruel realidade do futuro que o aguardava.

O monarca ficou imóvel, consumido pela incerteza. Após essas palavras proféticas, uma escuridão o envolveu completamente. Quando despertou, estava banhado pelos raios solares que inundavam o salão, a luz do dia trazendo uma sensação de calor que contrastava com o frio implacável que o dominava por dentro... E lá estava a tela, seu retrato, colocado à sua frente, tão vivaz e perturbador como o seu pior pesadelo.

O despertar de Luna

 


No vasto recinto, que mais se assemelhava a uma arena antiga, todos os olhares convergiam para ela. As robustas colunas de mármore escuro erguiam-se majestosamente nas laterais, sustentando uma abóbada intricada de pedras rosadas, cuja suave coloração contrastava com a severidade do ambiente. O chão, um mosaico meticulosamente elaborados com pedras coloridas, prestava homenagem aos grandes feiticeiros e feiticeiras que teceram a história mágica daquele mundo.

Próximo aos seus pés, a figura imponente da Bruxa de Endor emergia do chão, suas feições esculpidas com uma precisão quase real. Era lembrada como a vidente que desafiara os deuses, sua importância radicava na fundação das artes divinatórias naquelas terras.

Abe no Seimei, o onipresente conjurador do Oriente, estava retratado com seus trajes tradicionais, a calma em seu semblante contrastando com a complexidade de sua magia. Ele, que harmonizara os espíritos da natureza com os homens, era o pilar do equilíbrio entre o visível e o invisível.

Morgan Le Fay, a feiticeira que tecera intrigas em torno do trono de Camelot, estava representada com um olhar astuto e enigmático. Sua habilidade em manipular as relações entre os seres mágicos e mortais estabeleceu novos paradigmas para a magia política.

Circe, a encantadora de homens e bestas, Medea, a feiticeira vingativa, e Hecate, a deusa das encruzilhadas, eram representadas em poses que capturavam sua essência e influência na expansão dos domínios mágicos.

Baba Yaga, a temida feiticeira eslava, parecia quase viva com seu olhar penetrante esculpido na pedra, a guardiã dos segredos da floresta e da magia antiga que ainda assombrava as mentes dos habitantes daquele mundo.

Por fim, o semblante sereno de Merlin emergia, seu legado era um farol para todos os praticantes da arte mágica. A pressão sobre ela era imensurável, sendo ela uma descendente direta do legendário feiticeiro. Era o dia da avaliação, um rito de passagem que todo jovem bruxo ou bruxa precisava enfrentar para dar início à sua jornada mágica. Luna sabia que não havia margem para falhas.

Seus olhos percorriam a multidão que circundava a arena, espreitando por entre as sombras lançadas pelas colunas majestosas. Entre a multidão, ela identificou a silhueta familiar de seus pais. Eles se destacavam não apenas pelas vestes elegantes e coloridas que trajavam, mas pela aura mágica e poderosa que emanava deles, como um lume suave que dançava ao redor.

Seu pai, Magnus, era um mago de renome, conhecido por sua habilidade de manipular luz. Vestia uma túnica de seda de um azul profundo com bordados prateados que brilhavam à luz do dia. Sua mãe, Lilith, uma feiticeira exímia, possuía a domínio do fogo, capaz até de assumir a forma de um dragão imponente. Trajava um longo vestido vermelho com detalhes dourados que pareciam chamas bordadas.

Ao lado deles, seu irmão Alberto ostentava uma armadura reluzente, que refletia o sol de forma quase cegante. A armadura, apesar de robusta, era elegantemente desenhada, com gravuras que contavam histórias de batalhas mágicas. Alberto era um bruxo guerreiro, respeitado por nações inteiras, sua fama vinha de sua habilidade em evitar e resolver conflitos com sua magia e força.

Distante deles, em um canto mais afastado, estava sua irmã Catharina. Com longos cabelos roxos e óculos de meia lua repousados delicadamente sobre o nariz, Catharina era o epítome da erudição mágica. Vestia uma túnica longa de um lilás suave, com detalhes intricados em prata e ouro. Era reconhecida por seu trabalho com textos, tomos e pergaminhos antigos, sua habilidade em romper selos e maldições permitiu que um tesouro de conhecimento mágico fosse acessado pelos habitantes daquele mundo.

Luna sentia uma mistura de orgulho e apreensão. Como poderia corresponder às expectativas geradas por uma linhagem tão ilustre? Ela, que carregava um segredo grande e pulsante dentro de si...

"Senhorita Luna, está pronta?" a voz respeitável de um ancião, membro do conselho avaliador, ecoou pelo salão monumental. Ele pigarreou inquieto, pois Luna parecia perdida em seus pensamentos e não respondeu imediatamente.

"S-sim... Eu... Eu estou pronta..." Luna conseguiu murmurar, embora sua voz tremesse com a insegurança clara que a assolava.

"Então, por favor, apresente seu poder ao público, Luna, descendente do grande Merlin!" o ancião declarou, sua voz amplificada por magia, reverberando majestosamente através do imenso salão.

Luna não sabia se era a magia na voz do ancião, o peso de sua herança mencionada ou talvez a indigestão do seu café da manhã regado a leite que agora tumultuava seu estômago, tudo isso parecia a tornar ainda mais nervosa. Ela estava perdida em uma tempestade de emoções. A apresentação do seu poder foi...

Subitamente, a realidade a sacudiu com o solavanco da carruagem elétrica, cujo motor pipocava ritmicamente, cortando seus pensamentos. A carruagem estava repleta de almas cansadas, retornando aos seus lares após um dia exaustivo de labuta. Luna escondeu seu rosto sob o capuz do moletom que usava, desejando a invisibilidade entre a multidão, mesmo que todos parecessem demasiado esgotados para notá-la. A carruagem deslizava suavemente ao lado das ruínas do que fora a grandiosa arena, palco do seu espetáculo de poder dias atrás...

"Olha só que desastre..." alguém murmurou com um suspiro pesado.

"Sim, dizem que foi um IMI que fez isso. Pode acreditar?" outro trabalhador bruxo falou, seus olhos fixos na melancolia das estruturas ancestrais agora despedaçadas.

"IMI?" uma criança questionou inocentemente sua mãe.

"Indivíduo Magicamente Instável, querido. São pessoas que causam desastres como esse quando tentam usar magia," a mãe explicou suavemente, apontando para o amontoado de destroços.

Luna era a única que desviava o olhar da triste visão, o remorso fervendo em suas veias pelo caos que sua demonstração causara. A culpa era uma sombra fria que a envolvia, um lembrete constante da explosão catastrófica que agora jazia em silêncio, mas cuja memória ressoava estrondosamente em seu coração.

"Cemitério Crepusculi Mystici!" ecoou a voz profunda do condutor, enquanto a carruagem elétrica freava com um suave chiar de rodas diante do enigmático cemitério. Luna, a única passageira a desembarcar naquele ponto isolado, rapidamente recolheu sua mochila e desceu do veículo. Era compreensível que ela estivesse sozinha; afinal, o local só recebia visitantes durante festividades em honra aos mortos, ou por aqueles em busca das tumbas de bruxos e bruxas ancestrais.

Tomando um fôlego profundo, Luna ergueu os olhos para o cenário majestoso e ligeiramente perturbador à sua frente: imensos muros de mármore negro, praticamente engolidos por heras sinuosas e ornamentados com esculturas grotescas de caveiras e gárgulas. Essas últimas pareciam ter vida própria, como se movessem sutilmente quando não estavam sendo observadas.

"Vai ficar tudo bem", murmurou Luna para si mesma, abraçando sua mochila como se fosse um talismã. Dentro dela, repousava um grimório que inspirara sua jornada. Luna era uma IMI — uma incontrolável manifestação mágica. Depois que um desastre tornou público seu estado, ficou claro que sua futura carreira na magia estava em perigo, uma vez que IMIs são proibidos de exercer magia para a segurança de todos.

A reação de sua família foi uma mistura de decepção e culpa. Seus pais, sempre ausentes e concentrados em suas próprias vidas, se recriminaram mutuamente por não terem percebido os sinais. Seu irmão foi mais compreensivo, sugerindo que existiam outras carreiras além da magia. Mas sua irmã foi categórica ao afirmar que Luna era uma espécie de anomalia na família, já que nunca houve um descendente de Merlin com IMI.

Em meio a esse turbilhão de emoções, Luna buscou refúgio nos livros. Não tinha a habilidade de sua irmã Catharina para quebrar maldições ou traduzir línguas antigas, mas adorava ler. E foi assim que, no recanto mais afastado da vasta biblioteca da família, ela encontrou o grimório. As palavras gravadas nas páginas amareladas pelo tempo lhe deram uma centelha de esperança.

"O poder de um bruxo pode ser estabilizado e até ampliado pela presença de um familiar — uma criatura mágica profundamente ligada ao usuário de magia. Por eras, essa conexão permitiu que muitos bruxos e bruxas transcenderam as limitações de seus poderes para se tornarem grandes mestres de suas épocas."

Nos dias atuais, as criaturas conhecidas como "familiares" eram majoritariamente vistas como meros animais de companhia, não como os poderosos parceiros mágicos que um dia foram descritos em textos antigos. Se Luna desejasse um familiar para algo mais do que simples companheirismo — especificamente para estabilizar sua volátil magia interna — ela teria que buscar além dos típicos gatos pretos, corujas ou sapos. Precisaria encontrar uma criatura cujo poder mágico fosse suficiente para contrabalancear o caos mágico que ela própria emanava. Era essa busca que a levava ao enigmático cemitério.

"Fantasmas não são familiares comuns, em grande parte porque a maioria dos bruxos perde seus poderes após a morte e não retorna como espíritos errantes. No entanto, se um mago, bruxo ou feiticeiro tiver sido excepcionalmente poderoso em vida e retornar como um fantasma, ele pode manter uma parcela significativa de seus antigos poderes, tornando-se assim um companheiro ideal para qualquer usuário de magia." Essas palavras, extraídas do antigo grimório, ressoavam na mente de Luna. Ela sabia que o cemitério à sua frente era o mais antigo da região e um notório local de avistamentos de fantasmas de magos e bruxas renomados.

"Se eu conseguir encontrar apenas um fantasma disposto a assinar um contrato de familiar, poderei finalmente me livrar do meu indesejado status de IMI", murmurou Luna para si mesma, instilando em seu coração a coragem necessária. Inspirada, ela deu o primeiro passo decidido em direção ao cemitério, embarcando na aventura de encontrar seu tão almejado familiar espectral.

 

~**~

 

Imponentes mausoléus que se assemelhavam a santuários dedicados a deuses esquecidos se erguiam majestosamente pelo terreno labiríntico do Cemitério Crepusculi Mystici. Entre eles, túmulos mais modestos ficavam quase invisíveis, ocultados por árvores de salgueiro com folhas tão escuras que pareciam absorver a luz do ambiente. Esculturas de anjos com lágrimas eternas, caveiras sinistras e gárgulas ameaçadoras completavam a paisagem. Uma névoa perene envolvia todo o local, tão densa que forçava o uso de postes equipados com velas encantadas, cujas chamas emitiam uma luminosidade esverdeada inquietante, mesmo sob o céu diurno.

Luna avançava com cautela pelas trilhas estreitas de paralelepípedos que serpenteavam entre os túmulos. Seu corpo estremecia, tanto pela ansiedade quanto pela atmosfera arrepiante que a cercava. Ainda não tinha visto nenhum fantasma, mas cada sombra e movimento repentino no canto de seu olho a faziam questionar se seu coração suportaria um susto tão grande.

"Concentre-se, Luna. Você é capaz," ela sussurrava para si mesma, sua voz trêmula tentando se sobrepor à palpitação acelerada de seu coração. Com mãos igualmente trêmulas, ela alcançou o bolso de seu moletom roxo e retirou um pedaço de papel meticulosamente dobrado. Nele, estavam listados os nomes de magos e bruxas notórios enterrados ali, cada um seria uma potencial alma forte o suficiente para ser seu familiar.

"Mas, e se eu encontrar um? Como vou convencê-lo a se tornar meu familiar? Não é algo que eu possa forçar, pelo que entendi," murmurou ela, liberando um suspiro profundo e cansado. Sacudindo a cabeça, ela tentou afastar seus medos e incertezas. Por ora, sua missão era encontrar esses elusivos fantasmas; o resto, ela resolveria quando chegasse o momento certo.

Foi nesse momento que Luna percebeu uma silhueta ao longe, iluminada por um brilho etéreo. Ela ficou paralisada, uma mistura de medo e fascínio a percorrendo, antes de se refugiar atrás de uma imponente escultura de um anjo de asas quebradas, envolto em trepadeiras escuras.

"O que estou fazendo?" ela murmurou para si mesma, sua voz tingida de incredulidade. "Eu vim aqui para encontrar fantasmas, não para me esconder deles."

No entanto, à medida que a figura se aproximava, Luna percebeu que não se tratava de um espírito desencarnado, mas de um mago. E ele não estava sozinho; uma comitiva de magos o seguia, todos envoltos em mantos enigmáticos, bordados com símbolos arcanos que pulsavam levemente com energia mística. Uma sensação de desconfiança imediata surgiu no íntimo de Luna. Não era comum encontrar magos errantes em um cemitério, muito menos um grupo com aparência tão intimidadora. Estariam eles em uma missão similar à sua?

Observando-os de seu esconderijo, Luna viu o grupo se dirigir a uma parte mais densamente arborizada do cemitério, um lugar onde as estátuas pareciam ainda mais grotescas e os túmulos mais raros. Uma parte de Luna gritava para que ela mantivesse distância, mas a curiosidade a impulsionou, como uma chama irresistível.

Assim, apesar de um sentimento de inquietação profunda e do risco palpável de se meter em uma situação complicada, Luna decidiu seguir o grupo de magos encapuzados. Movendo-se com a delicadeza, ela avançou silenciosamente, cautelosa para não revelar sua presença, enquanto se embrenhava ainda mais nos mistérios do Cemitério.

~**~

O grupo de magos encapuzados adentrou um túnel natural formado por árvores de troncos retorcidos e folhas descoloridas, que culminava em uma clareira. O lugar estava escassamente iluminado por postes com lanternas de vidro fosco, tornando necessária a intervenção mágica para iluminar adequadamente o ambiente. Esferas de luz flutuavam ao redor dos magos, lançando sombras dançantes nas faces esculpidas em pedra que circundavam o que parecia ser um altar de mármore.

Luna observava a cena de seu esconderijo atrás de uma espessa moita, indecisa se o que estava diante de seus olhos era um túmulo singular ou uma área destinada a rituais secretos.

O líder do grupo, destacando-se pela luminosidade que emanava de suas vestes, retirou o capuz, revelando um rosto enrugado, enquadrado por uma longa barba grisalha e coroado por uma careca reluzente.

"Contemplem, meus seguidores, o túmulo de Orion Arcanum!" exclamou o mago mais velho, seus gestos majestosos enfatizando cada palavra enquanto apontava para o altar de mármore incrustado com fragmentos que cintilavam como estrelas prateadas. "Ele foi um dos magos mais ilustres que este mundo já conheceu. Ah, se tivesse tido tempo, seu nome estaria eternizado ao lado das grandes lendas mágicas de nossa história."

Luna franziu o cenho, rapidamente consultando a lista que havia preparado. O nome 'Orion Arcanum' não estava ali, e ela não se lembrava de tal figura em seus estudos de magia. Intrigada e desconfiada, ela voltou sua atenção ao mago líder, que continuava a falar com um fervor quase religioso.

"Ele foi tirado de nós em sua juventude, mas era um visionário. Foi um dos raros magos a se aventurar na proibida arte da necromancia!" Ele fez uma pausa dramática, e os magos que o cercavam trocaram exclamações surdas de "ohhh", como se estivessem diante de uma revelação divina.

"Mas ele pagou um alto preço por suas investigações na magia que flerta com os limites entre a vida e a morte. Vejam, meus aprendizes, onde Orion Arcanum foi sepultado! Em um recesso oculto deste cemitério, distante dos olhares inquisitivos, como se sua existência fosse uma mancha vergonhosa! Mas não mais... Viemos aqui para exaltá-lo! Viemos aqui para invocá-lo!" exclamou o mago líder, com um fervor quase religioso. O público ergueu as mãos ao alto, repetindo o nome de Orion em uníssono, como um mantra místico.

Luna sentiu um calafrio ao perceber a energia que emanava daquele estranho grupo. Sabia que a necromancia era um ramo pouco popular e até mesmo estigmatizado da magia, o que explicava o apagamento de Orion dos registros históricos. Mas algo naquela cerimônia lhe soava perigosamente errado. O que eles realmente pretendiam?

"Será que eu deveria chamar meu irmão Alberto?" Luna ponderou em um sussurro, ciente de que ele saberia como lidar com a situação e talvez evitar uma catástrofe. O que ela poderia fazer? Ela não podia usar magia. Ela só podia assistir aquilo, sem poder interferir.

"Ei, o que esses sujeitos pensam que estão fazendo? Será que ninguém pode sossegar depois de morto? Já ouviram falar em 'descanse em paz'? Grande farsa, hein?" uma voz soou ao lado dela. Luna virou-se lentamente para encontrar um jovem de cabelos negros salpicados de mechas prateadas. Sua pele era morena e seus olhos eram azuis e cintilantes. Vestia um sobretudo marrom, uma camisa branca desabotoada e calças escuras. Mas o detalhe mais surpreendente era sua aparência translúcida e o modo como ele flutuava ao lado dela: um claro indicativo de que ele era, de fato, um fantasma.

"O que você acha? Devo colocar uma placa dizendo 'Não perturbe' ou 'Sai para almoço'? Você acha que eles entenderiam o recado para me deixarem em paz?" O fantasma cruzou os braços, claramente exasperado.

"V-você é... O-Orion?" Luna gaguejou, sua voz tingida de alarme.

"Dã," ele respondeu, com um ar de impaciência.

"Eles conseguiram te invocar?" Luna perguntou, desviando o olhar dos magos que ainda entoavam o nome de Orion em um mantra fervoroso.

"Eles? Pfff..." O fantasma revirou os olhos, visivelmente desgostoso. "Eu já estava aqui muito antes de essa turma de idiotas aparecer. Já é a terceira vez só neste mês. Deve ser alguma coisa relacionada ao solstício de inverno. Esses caras pensam que precisam de ocasiões especiais para invocar os mortos. Claramente, nunca leram sequer uma linha dos meus trabalhos. A necromancia é uma ciência, não um... quê? Um culto? Um rebanho de seguidores fanáticos? É vergonhoso!"

Luna estava sem palavras, ainda processando o sarcasmo ácido do fantasma, quando o mago líder retomou sua fala.

"Orion, nós iremos honrar o seu legado! Vou despertá-lo do seu sono eterno e..." Ele desenrolou de dentro de seu robe um pergaminho que Luna imediatamente reconheceu. Era um contrato de familiar, semelhante ao que ela carregava em sua própria bolsa. "...irei vinculá-lo a mim! Juntos, seremos poderosos e dominaremos o mundo!" O mago então soltou uma risada sibilante e sinistra, digna de um vilão de romance.

"Aí está. Todos vêm aqui só para isso..." Orion murmurou, resignado. "Para me escravizar! Que tédio!"

Luna sentiu o rosto corar. A franqueza desconcertante do fantasma a fez perceber a incongruência de suas próprias intenções. Embora ela não tivesse vindo especificamente para invocar Orion, seu objetivo não era tão diferente do grupo de magos. Ela nunca havia considerado que um espírito pudesse enxergar a ligação como uma forma de escravidão, e agora se sentia culpada.

"'Oh! Orion! Venha a mim!'" O mago líder entoou, mais cantando do que falando, enquanto erguia os braços para o céu enevoado que pairava sobre o cemitério.

"Basta! Você não é nem um pouco o meu tipo," exclamou Orion, saindo do esconderijo onde Luna estava oculta e puxando-a consigo para a luz. "Esta jovem aqui, por outro lado, é muito mais interessante. Vocês, ocultistas, deveriam ter pensado nisso antes de virem aqui com suas ofertas de contrato. Uma bela ocultista teria sido um incentivo muito melhor do que todo esse cântico macabro. Você realmente acha que vou me vincular a um mago medíocre que claramente quer usar meu poder para se autopromover? Se você não consegue fazer isso sozinho e precisa de um familiar, obviamente é incompetente!"

Luna sentiu os dedos gelados do espírito do mago tocarem sua pele, mesmo através da manga do seu moletom. Era como se o frio mortal ignorasse completamente as barreiras de tecido.

"Quem é ela? Uma rival? Planeja roubar Orion para si?" perguntou o mago líder, apontando para Luna com uma expressão irritada.

"Seu idiota! Por que me arrastou para isso?" Luna exclamou, tentando se soltar do aperto gelado de Orion.

"Bem, se você estava aqui, espiando, é porque claramente tinha algum interesse em se envolver nessa história," respondeu Orion, sorrindo de forma travessa.

"'Orion, glorioso necromante... Assine o seu nome neste contrato!'" O mago líder insistia, aproximando-se cautelosamente do fantasma, como se ele fosse uma criatura a ser temida. "Prometo que, assim, você será libertado da prisão que é este cemitério!"

"Você está preso aqui?" Luna perguntou a Orion, surpresa com a nova informação.

"Sim, estou confinado a este lugar," confirmou Orion. Com sua mão livre, a que não segurava Luna, ele passou os dedos pelos cabelos negros em um gesto que denotava cansaço — embora fosse questionável se fantasmas podiam de fato sentir-se cansados. "Foi toda uma precaução para me conter. Afinal, eu era um mago necromante; era óbvio que eu retornaria do mundo dos mortos de alguma forma, seja como zumbi, Lich ou, neste caso, fantasma." Ao dizer isso, seu tom exalava uma certa vaidade, quase como se ele estivesse se gabando de sua forma espectral. Ele era jovem e atraente, um tipo que, quando vivo, sem dúvida atraía muita atenção.

"Ao assinar esse contrato, você estará livre!" reiterou o mago ancião, cujos asseclas já começavam a cercar Luna e Orion.

"Livre? Minha liberdade estará atrelada ao contrato," Orion retrucou, apontando para o pergaminho enrolado nas mãos do mago. "Imagino que você tenha incluído algumas cláusulas aí para me tornar submisso e, em resumo, seu servo, não é mesmo?"

"Orion, todo familiar é um servo. Você já está morto; não deveria ter outras perspectivas além de servir como um familiar," falou o mago, com um tom de condescendência que Luna imediatamente desaprovou. Era o mesmo tom que ela havia ouvido quando implorou por uma segunda chance após o incidente com a explosão.

“Luna, você é uma IMI, seu futuro não está associado a magia” foi essa as palavras proferidas pelo avaliador que perfuraram o seu coração e destruíram o seu sonho.

"Bem, isso você não sabe!" interrompeu Luna, para a surpresa tanto de Orion quanto do mago. "Ele pode muito bem querer apenas ser um fantasma e aproveitar sua existência etérea. Ele não é obrigado a ser um familiar se não quiser. E definitivamente não deveria ser perseguido por pessoas como você o tempo todo!"

"Menina... O que você sabe? E por que você está aqui? Obviamente você busca algo...” O mago líder indagou, avançando em direção a Luna com uma expressão astuta. Ele tentou enfiar sua mão na bolsa dela de forma abrupta, mas Luna reagiu com um chute instintivo. A ação enviou uma onda de indignação elétrica através dos seguidores do mago, que murmuraram entre si.

"Vocês realmente são de uma falta de educação extrema. Furtando objetos de jovens aparentemente indefesas,” comentou Orion, claramente desaprovando a atitude do mago. Luna, ainda agitada, tentou chutá-lo também, mas seu pé atravessou a perna espectral de Orion, quase a fazendo perder o equilíbrio e cair para trás. Foi paradoxal, já que o fantasma ainda a segurava pelo braço. A única explicação lógica era que Orion devia ter alguma capacidade de controlar a tangibilidade de seu corpo.

"Que droga...” Luna resmungou, irritada e ainda mais contrariada ao perceber o sorriso contido no rosto de Orion.

"Veja, ó grande e glorioso necromante, ela também possui um contrato de familiar. Ela também busca controlá-lo!” anunciou o mago líder, sua voz tingida de triunfo. Ele segurava um pergaminho, roubado da bolsa da garota.

"'Eu não vim aqui por ele!'” Luna retrucou rapidamente, defendendo-se. "Existem outros magos, bruxas e feiticeiros neste cemitério que eu poderia tentar convencer a se tornar meu familiar. Até fiz uma lista!'” Ela então exibiu um pedaço de papel com alguns nomes escritos.

Orion, fazendo uma expressão teatralmente ferida, arrebatou a lista das mãos de Luna. "Isso dói, sabe? Tenho certeza de que eu seria uma opção muito melhor do que... Quem é essa? A bruxa vidente Mãe Diná? Eu sou muito mais interessante do que ela! E essa aqui, Cuca... Ela é uma bruxa em forma de jacaré! Você gostaria de ter algo assim como seu familiar? Que gosto peculiar..."

"Espera um pouco, acho que a decisão deveria ser minha, não é mesmo?” Luna falou, sua voz vibrando com indignação crescente e um toque de embaraço por ter suas intenções tão publicamente expostas.

"Obviamente, ela não possui a sabedoria ou a maturidade necessárias para requisitar Orion, ou qualquer um desses outros fantasmas em sua lista!" o mago líder zombou, seu riso ecoando com arrogância e fazendo Luna corar até as orelhas. "Você realmente acredita que pode simplesmente se aproximar desses seres gloriosos e famosos e pedir que assinem um contrato? Quem você pensa que é?"

Luna mordeu seu lábio inferior, sua mente um redemoinho de dúvidas e incertezas. Ela estava consciente de suas limitações, mas será que estava condenada ao fracasso desde o início?

"Espera um momento!" interrompeu um dos discípulos do mago ancião. "Eu reconheço essa garota. Ela é uma descendente do grande Merlin! Ela revelou seus poderes há alguns dias!"

Luna sentiu um nó se formar em seu estômago, amaldiçoando-se internamente por não ter se disfarçado melhor. Em meio ao caos, ela se esquecera de ocultar seu rosto com o capuz. Seus cabelos castanhos ondulados, com mechas de um tom lilás discreto, e seus intensos olhos verdes, uma característica marcante em sua linhagem, estavam completamente expostos.

"Ah, uma Merlin, aqui?" Orion a examinou com um olhar renovado, seu interesse claramente aguçado.

"Não se impressione tanto, nobre necromante," o mago líder advertiu, seu tom carregado de escárnio. "Se ela é de fato a referida descendente de Merlin, não é algo digno de celebração. Afinal, ela foi responsável por causar uma grande explosão. Ela é um 'Indivíduo Magicamente...'."

"Meu nome é Luna!" a jovem interrompeu, a indignação borbulhando em sua voz. "E o que importa se vocês me rotulam como IMI? Eu ainda sou capaz de praticar magia!"

"Presumo que só com um familiar," o mago ancião retrucou, um sorriso mordaz esticando seus lábios finos. "Quanto desespero... E quanta infantilidade. Quem iria querer se aliar a uma IMI?"

Cada palavra dele parecia ser uma farpa que perfurava a confiança já frágil de Luna, mas ela manteve o olhar firme, determinada a não se deixar abater por sua crueldade.

"Isso sim é fascinante!" Orion exclamou, puxando Luna mais para perto de si. Seus olhos azuis, quase luminosos na penumbra, encontraram os olhos verdes da jovem com uma expressão de genuína admiração. Embora não pudesse sentir calor vindo do espectral corpo de Orion, Luna percebeu seu coração acelerar, seus sentidos inesperadamente aguçados devido à proximidade.

"Orion! Você não deve realmente querer essa menina, que mal pode ser chamada de bruxa, como sua parceira! Eu, por outro lado, sou um mago renomado. A necromancia é uma das minhas especialidades. Ao meu lado, você..." o mago líder começou, sua voz tingida de um nervosismo que denunciava seu desconforto por estar sendo ignorado.

"Ao seu lado, eu provavelmente morreria de tédio. Ou deveria dizer, morreria de novo," retrucou Orion, desviando sua atenção para o mago que o incomodava.

"Agora, ela... Bem, ela parece ser uma companhia muito mais intrigante, talvez até algo mais," continuou Orion, seu olhar se desviando brevemente para uma Luna visivelmente corada.

"E-eu não sou algum tipo de passatempo para você! E quem disse que eu te quero como parceiro? Ou como familiar? Ou... qualquer coisa!" Luna gaguejou, tentando inutilmente controlar o turbilhão de emoções e a sensação de borboletas em seu estômago.

"Isso não vai acontecer!" rosnou o mago líder, tirando da manga de sua longa túnica um punhal de prata que parecia emanar uma bruma mágica. "Orion pertence a mim!"

Para Luna, tudo parecia se desenrolar em câmera lenta. Ela viu o mago e seus discípulos avançando em sua direção. Orion, ao seu lado, fez um gesto amplo com sua mão livre — a outra ainda segurava Luna — e alguns dos ocultistas foram lançados a vários metros de distância. Era um claro indício de que, mesmo sendo um fantasma, Orion ainda detinha poderes mágicos. No entanto, o ataque do mago líder, armado com sua arma amaldiçoada, estava perigosamente próximo.

Foi então que Luna sentiu seu poder despertar. Tal como ocorrera há alguns dias, esse despertar se manifestou em forma de uma explosão colossal. O estrondo arrasou a área, desarraigando árvores, destruindo túmulos e estátuas e deixando uma profunda cratera no lugar onde estiveram. Até a neblina, que parecia ser uma constante na atmosfera do cemitério, foi momentaneamente dispersa, permitindo que raios de sol iluminassem o cenário caótico.

Luna tossiu, levantando uma nuvem de poeira ao seu redor, e então percebeu que ainda estava de mãos dadas com Orion. Não simplesmente segurando, mas seus dedos estavam entrelaçados como se estivessem conectados de alguma forma especial.

"Isso foi incrível! Você acha que consegue fazer de novo?" Orion perguntou, sua voz soando mais como a de uma criança maravilhada do que como a de um poderoso espírito necromante.

"Acho que não seria prudente repetir essa performance," Luna respondeu, examinando o cenário ao seu redor. Ela viu que os magos, embora cobertos por destroços ou lançados para as bordas da cratera, ainda estavam vivos. Um suspiro de alívio escapou de seus lábios.

Subitamente, algo começou a flutuar pelo ar, movendo-se em direção a eles. Era o pergaminho dela, o contrato para vincular-se a um familiar. Com um simples gesto da mão, Orion fez o documento pousar delicadamente em sua palma aberta.

"Bem, acho que devo assinar isto aqui," disse Orion, e Luna olhou para ele, seus olhos verdes arregalados em incredulidade.

"Assinar? O quê? Eu não vim aqui para...," ela começou a objetar.

"Você veio buscar um familiar para estabilizar esse seu poder formidável, não foi? E precisa de um familiar poderoso. Acho que me encaixo bem nessa descrição. Além disso, que poder você tem! Merlin ficaria orgulhoso," interrompeu Orion, um sorriso suave iluminando seu rosto etéreo.

"Merlin teria vergonha, isso sim... Ninguém na minha família jamais precisou de um familiar. Nenhum deles era um IMI," Luna murmurou, baixando os olhos para o chão.

"Ah, mas quem pode dizer se Merlin não era um IMI, só que com outro nome? Eram tempos diferentes; pessoas com grande poder eram apenas consideradas excepções. Eu me lembro de quando Merlin buscou seu próprio familiar, um dragão grande e rabugento," retrucou Orion, capturando a atenção de Luna mais uma vez.

"Você conheceu Merlin?" Luna indagou, surpresa tingindo suas palavras. A ideia de que seu antepassado pudesse ter sido um IMI como ela — algo que nem mesmo sua irmã Catharina sabia — a deixava boquiaberta.

"Posso contar mais depois que assinar este contrato, o que me diz?" Orion estalou os dedos, materializando no ar uma pena cuja ponta estava mergulhada em tinta vermelha.

"Você realmente quer ser meu familiar? Meu parceiro?" Luna questionou, quase como se temesse que aquilo fosse um sonho fugaz.

"Eu adoraria. Algo me diz que ficar ao seu lado será uma aventura e tanto," Orion respondeu, e no rosto de Luna brotou um sorriso radiante.

Com um aceno de cabeça, Luna deu seu consentimento. A pena deslizou pelo pergaminho, e o contrato foi solenemente assinado. No instante em que a tinta tocou o papel, ambos sentiram que algo mais estava selado ali — não apenas uma parceria mágica, mas talvez também um sentimento mais profundo, ainda indefinido. Embora ainda não conseguissem distinguir o que era, eles sabiam que teriam todo o tempo do mundo para descobrir.

Fangtastic Celebrations

 


As folhas começavam a se desprender da majestosa árvore em frente à casa de Kyle Wilson, um ritual anual que marcava o início do outono. Através da janela panorâmica de seu quarto, ele observava a tapeçaria natural se transformar; as folhas abandonavam o vibrante verde da primavera e do verão para assumir tonalidades de um avermelhado profundo, âmbar reluzente e marrom terroso.

Enquanto a natureza seguia seu curso inevitável, Kyle notava seus pais dando vida ao jardim com decorações de Halloween: caveiras, fantasmas e outras figuras feitas de papelão ou plástico. Os objetos pareciam antiquados, desgastados não por algum truque de design, mas pela realidade do tempo; esses enfeites haviam sido usados e reusados ao longo de anos pela família Wilson.

O cenário era, em si, um pedaço palpável de nostalgia, um vislumbre de outonos passados que aquecia o coração. No entanto, uma onda de ansiedade varria o estômago de Kyle, enchendo-o de um desconforto indefinível. Ele se lembrava de que, exatamente naquele período do ano anterior, havia deixado a universidade e voltado para a casa dos pais, após abandonar o curso de Direito. Agora, cada folha que caía, cada enfeite que surgia no jardim, servia como um lembrete irritante, um alarme silencioso, de que um ano inteiro havia passado desde que tomara aquela decisão transformadora.

"O que vou fazer agora?" Kyle se perguntava em voz alta. A questão havia se repetido em sua mente durante todos esses meses, mas naquele dia em particular, o peso da indagação se tornava insuportavelmente mais pesado, mais desesperador. Foi nesse exato instante que seu celular irrompeu com um toque estridente. O som era a música tema do filme "Psicose," e fez seu coração saltar. Resmungando, Kyle atendeu o telefone, percebendo que seus pais haviam mudado o toque do aparelho, sem sua permissão, para entrar no espírito do Halloween.

"Sim?" Ele respondeu, sem conseguir ocultar a frustração em sua voz.

"Kyle? Liguei em um mau momento? Você já está sofrendo com uma dor de estômago por excesso de doces?" Uma voz familiar indagou.

"Tia Mary?" Ele franziu o cenho. Era raro receber uma ligação dela; na verdade, nem sabia que ela tinha seu número de telefone. Tia Mary era o tipo de pessoa que aparecia de surpresa à sua porta, trazendo presentes estranhos e histórias ainda mais peculiares. Sua mãe, irmã de Mary, a descrevia como um espírito livre, descrição com a qual Kyle concordava plenamente.

"Quem mais seria? Não reconhece mais a sua tia favorita?"

Um sorriso se formou nos lábios de Kyle, trazendo um leve alívio ao seu ânimo.

"Bem, faz algum tempo que não os visito... então, entendo o lapso de memória," ela continuou. "Mas mesmo assim, sou sua única tia!"

"Desculpe, Tia Mary. Claro que me lembro de você. Como poderia esquecer? O que me surpreende é você me ligar... Aconteceu algo?" Kyle quis saber.

"Sim, aconteceu algo! Estou precisando de ajuda!" exclamou ela, instigando uma onda de apreensão em Kyle.

"O que houve? Existe algo em que eu possa ser útil?"

"Absolutamente! É exatamente por isso que estou te ligando. Você é o único que pode me ajudar, meu sobrinho querido!" A cada palavra dela, a curiosidade e a desconfiança de Kyle cresciam. O que poderia ser tão urgente que ele fosse o único capaz de ajudar?

"Você ainda está desempregado, certo?" inquiriu Tia Mary, fazendo Kyle franzir novamente o cenho.

"Er... sim, estou."

"Perfeito!" exclamou ela, agora visivelmente animada.

Um calafrio sutil percorreu a espinha de Kyle, preenchendo-o com uma mistura de antecipação e incerteza.

~**~

 

O carro tremia e balançava, como se estivesse dançando uma valsa caótica com a estrada esburacada e selvagem pela qual avançavam. Kyle segurava firmemente a alça acima da janela, no lado do passageiro, enquanto tentava decifrar a tela do celular com sua outra mão. O mapa mostrava um percurso que ele só podia descrever como "rumo ao desconhecido." Ao seu lado, Tia Mary, uma mulher de cabelos ruivos indisciplinados tingidos com mechas prateadas e óculos estilo 'fundo de garrafa', emitia exclamações entusiasmadas, como se estivesse domando um touro selvagem.

"Tia Mary, você tem certeza absoluta de que estamos indo para o lugar certo? Tem certeza de que pegou o endereço correto?" indagou Kyle, já sentindo o enjoo subir por seu estômago.

"Completamente! Meu chefe adora lugares assim, remotos e inóspitos. Combina perfeitamente com o espírito do Halloween, você não acha?" ela respondeu, visivelmente animada.

"Ah, sério? Você acha que capotar em uma estrada empoeirada faz parte do espírito do Halloween? Porque esse é o jeito mais rápido de chegar ao nosso destino de final de estrada, ou melhor, final de vida! Quem precisa de sangue falso e cicatrizes de maquiagem quando você pode ser o astro de um acidente real e autêntico? Ganharíamos o primeiro prêmio em qualquer concurso de fantasias... claro, assumindo que sobrevivemos para contar a história e dançar 'Thriller' na tal festa!" Kyle retrucou, seu tom impregnado de irritação. A resposta arrancou de Tia Mary uma gargalhada quase maníaca, que soou ainda mais estranha em meio ao balanço frenético do carro.

Felizmente, o chacoalhar do carro cessou após algum tempo. De maneira abrupta, Tia Mary freou o veículo, fazendo com que Kyle fosse arremessado para a frente devido à inércia. Se não fosse pelo cinto de segurança, ele teria sido catapultado através do para-brisa.

"Chegamos!" exclamou Tia Mary, vibrante. Kyle então teve a chance de realmente observar o lugar onde haviam parado. Abaixando o vidro da janela, ele notou que estavam em uma extensa clareira, cercada por uma floresta densa e escura. Erguendo-se como uma visão imponente no centro estava uma grande mansão de estilo vitoriano. A construção, nitidamente antiga, parecia desafiar o tempo, mantendo-se altiva e imponente em sua solidão.

"Isso... parece o cenário de um filme de terror," murmurou Kyle. "Só faltam a chuva, a névoa e os trovões."

"Ah, mas meu chefe garantiu que no dia 31 tudo isso vai acontecer, para tornar tudo mais autêntico para a grande noite!" afirmou Tia Mary. Kyle a encarou como se ela fosse louca. Como poderia o tal chefe controlar ou prever o clima para o fim de outubro?

"Já que estamos falando de seu trabalho... e de seu chefe," Kyle começou, introduzindo o tópico que deveriam ter explorado antes de ele concordar com essa odisseia de carro rumo ao desconhecido.

"Nosso trabalho e nosso chefe, querido. Afinal, você agora é meu colega de trabalho, esqueceu?" retrucou Tia Mary, já saindo do carro, sem dar espaço para mais perguntas. Desconcertado, Kyle se desvencilhou rapidamente do cinto de segurança e seguiu sua tia, ávido por mais informações. Ele queria entender que tipo de empresa era essa, o que exatamente fariam lá e quem era esse misterioso chefe. Sim, ele havia concordado com algo sem ter o mínimo conhecimento do contexto em que estava se inserindo.

"Devia ter pensado duas vezes antes de deixar o desespero ofuscar meu bom senso e cautela," murmurou Kyle para si mesmo, enquanto saía do carro e se encaminhava em direção à imponente mansão que poderia muito bem ganhar o título de mal-assombrada. Um alívio momentâneo o invadiu ao perceber que não estavam sozinhos; outros veículos, desde carros modernos a trailers, adornavam o espaço amplo em frente à mansão. Cada um deles ostentava um logotipo peculiar: um morcego rosa. Certamente não algo que Batman usaria para seu sinal noturno.

Sua tia lhe havia dito de forma um tanto vaga que trabalhava para uma empresa chamada "Fangtastic Celebrations", especializada em organizar festas e eventos. No entanto, Kyle jamais imaginou que tais celebrações ocorreriam em um local tão inóspito e misterioso.

O jovem também não pôde deixar de notar as figuras peculiares que seriam seus futuros colegas de trabalho. Eles carregavam caixas e diversos materiais em direção à mansão. Alguns estavam envoltos em ataduras da cabeça aos pés, como múmias em movimento. Outros exibiam uma quantidade impressionante de pelos cobrindo seus corpos, e curiosamente, usavam o que pareciam ser coleiras em seus pescoços. Era tudo extraordinariamente estranho, amplificando as já altas reservas de Kyle quanto à aventura em que se metera.

"Er... Tia Mary..." Kyle chamou, sua voz tingida de nervosismo. Sua tia se virou para ele, olhando por baixo dos seus óculos de lentes espessas, que quase pareciam um par de lupas.

"O que foi, Kyle? Já está com saudades de casa?" ela questionou, um sorriso largo iluminando seu rosto.

"Não é exatamente saudade o que estou sentindo..." Kyle murmurou, desviando de uma dupla peculiar de trabalhadores que carregavam pesadas caixas de som. O primeiro, um homem de pele levemente esverdeada e salpicada de verrugas, tinha uma toalha pendurada no pescoço que, Kyle poderia jurar, ocultava guelras. A segunda, uma mulher extraordinariamente alta, ostentava uma vasta cabeleira roxa que parecia brilhar à luz do sol.

"Tia... O que... são..." Kyle começou a formular a pergunta que borbulhava em sua mente, mas foi abruptamente interrompido. As imponentes portas da frente da mansão se abriram de súbito, e de lá emergiu um rapaz com um visual chamativo. Ele usava um roupão cor-de-rosa brilhante, um chapéu de sol adornado com lantejoulas reluzentes, calças de couro incrivelmente apertadas e pantufas da mesma cor rosa do roupão. Seus óculos escuros eram quase um escudo, ocultando seus olhos, e sua pele era de uma palidez quase etérea.

"Diga-me, para que serve o dia, hein? Só para me dar dor de cabeça e irritação? E esse sol! Ele não se enxerga? Porque eu o enxergo muito bem, ou melhor, não enxergo! Se eu olhar para ele, sinto minha pele queimar, literalmente! Eu digo a vocês, dia e sol são coisas superestimadas! Quem precisa deles?" o homem esbravejava, como se realizasse um monólogo para uma audiência invisível em um teatro imaginário.

"As plantas..." Kyle achou-se respondendo, embora soubesse que todo aquele discurso deveria ser apenas uma série de perguntas retóricas. O homem virou-se para ele, visivelmente surpreso por alguém ousar interromper sua lamentação.

"Desculpe, como é?" ele questionou, aproximando-se de Kyle, que se esforçou para não recuar ao perceber a estatura impressionante da figura.

"E-eu quis dizer que as plantas necessitam de luz para realizar fo-fotossíntese. Ao fazer isso, elas p-produzem açúcares que serão consumidos por outros organismos na ca-cadeia alimentar, incluindo nós. Portanto, a luz é fundamental para a manutenção da vida na Terra," gaguejou Kyle, nervoso sob o olhar penetrante do enigmático homem. Embora, na verdade, fosse difícil dizer se ele realmente o estava encarando; aqueles óculos escuros tornavam tudo muito incerto.

Alguns segundos que se estenderam como eternidades preencheram o ar tenso da entrada da mansão. Kyle engolia a seco, seus olhos fixos no homem à sua frente que parecia agora perdido em pensamentos profundos. Sua tia, notavelmente nervosa, roía as unhas — uma imagem perturbadora, considerando que até então ela havia sido o retrato da despreocupação. Quem era esse homem para desencadear tal inquietação nela? Kyle temia estar frente a frente com seu futuro chefe, e temia ainda mais ter causado uma péssima primeira impressão.

"Você tem um ponto válido," finalmente disse o homem vestido em rosa exuberante. "Vamos dizer que eu também sou afetado pelos benefícios da luz solar indiretamente, já que também faço parte dessa cadeia alimentar. Sou, você poderia dizer, um predador no topo da cadeia, um consumidor de... presas especiais, se me entende." Ele abaixou os óculos escuros apenas o suficiente para travar seus olhos nos de Kyle. Foi nesse instante que Kyle percebeu as írises avermelhadas e decididamente inumanas do homem, fazendo com que soltasse um guincho abafado de horror.

"Vampiro?" sussurrou Kyle, surpreso com a sua própria conclusão.

"Mary, minha querida..." O homem pareceu ignorar o efeito que sua revelação teve sobre Kyle e virou-se para a tia dele. "Então este é o meu novo empregado? Seu adorável sobrinho, Kyle Wilson?"

"Adorável?" Kyle não conseguiu esconder a indignação em sua voz, superando o receio e medo que sentira segundos antes.

"Sim, adorável. Sua tia fez questão de me mostrar todas as suas fotos de infância e usou com entusiasmo o adjetivo 'adorável' para descrever você, Sr. Wilson," o homem respondeu com um sorriso, revelando caninos proeminentes. "Devo dizer que ainda estou ponderando sobre a adequação desse adjetivo..."

"O quê? Isso terá algum impacto na minha contratação ou não?" Kyle se viu perguntando isso, mesmo diante das claras evidências da natureza sobrenatural do ser à sua frente. Independentemente do quanto a vestimenta rosa-choque do homem pudesse amenizar sua aura sombria, a necessidade urgente de Kyle por um emprego parecia ser o fator predominante em sua mente.

"Sr. Wilson, você deve ter notado que a minha empresa é um tanto peculiar," começou o homem, que Kyle agora sabia ser um vampiro. Ele fez uma pausa dramática antes de continuar, "Ao contratar um humano," aqui ele deu ênfase especial à palavra 'humano', "nós geralmente seguimos um procedimento de indicações. Isso é para evitar tanto o pânico quanto complicações legais. Além disso, somos uma empresa com fortes laços familiares; valorizamos tanto a nossa própria privacidade quanto a daqueles que nos contratam."

"E o que isso tem a ver com minhas fotos de bebê?" Kyle indagou, cruzando os braços sobre o peito. Sim, uma parte da sua mente estava gritando para ele focar no fato de estar conversando com um vampiro, uma criatura conhecida por se alimentar de humanos. No entanto, outra parte de sua consciência estava completamente indignada com o uso impróprio de suas fotos de infância em um processo seletivo do qual ele não tinha a mínima ideia de que fazia parte.

"Bem, sua tia também me apresentou seu portfólio," disse o vampiro, parecendo ignorar intencionalmente as perguntas de Kyle sobre suas fotos.

"Meu portfólio?" Kyle lançou um olhar para sua tia, que sorriu de forma culpada. Ele se lembrava vagamente do portfólio que tinha feito durante o ensino médio, quando ainda considerava a faculdade de artes visuais. Seus pais não se opuseram, mas seus professores e o conselheiro acadêmico se esforçaram para dissuadi-lo. Eles enfatizavam que, com seu histórico escolar cheio de notas altas, ele deveria aspirar a algo mais 'respeitável'. Foi assim que acabou se inscrevendo em Direito, o que levou a sua subsequente desilusão e falta de motivação na vida.

"Sim, humano. Seu portfólio de arte. Muito impressionante, aliás. Gostei particularmente dos homens meio pelados," disse o vampiro com um sorriso amplo, fazendo com que Kyle corasse da cabeça aos pés, rivalizando com seus cabelos ruivos.

"Eram esboços de estátuas gregas e romanas!" Kyle exclamou, um pouco mais alto do que pretendia.

"Então seja, mas devo dizer que fiquei impressionado. E minha empresa precisa justamente desse olhar artístico. Eu normalmente cuido dessa parte, como Mary bem sabe, mas é impossível estar em todos os lugares ao mesmo tempo. E não, a onisciência não é um dos meus dons vampíricos," disse ele, começando a caminhar em direção ao interior luxuoso da mansão, gesticulando para que Kyle e Mary o seguissem.

Ao entrar, Kyle ficou perplexo com o interior da residência. Um grandioso lustre de cristal pendia majestosamente sobre o hall de entrada. Duas escadarias simétricas, adornadas com corrimãos de madeira entalhada, levavam ao segundo andar, cujo conteúdo ainda era um mistério. Grandes janelas de vitrais, ainda que embaçadas pelo pó dos anos, banhavam o ambiente com uma luz multicolorida que parecia incomodar seu novo chefe vampiro.

Eles foram conduzidos a um vasto salão de festas. As janelas do salão eram ocultadas por pesadas cortinas empoeiradas e mofadas. Ali, Kyle observou alguns funcionários, envoltos em ataduras que pareciam tão antigas quanto as cortinas, limpando o chão e espanando as paredes e móveis. A apatia com que realizavam o trabalho fez Kyle suspeitar que a meta não era realmente tornar a mansão impecável; afinal, uma festa temática de Halloween se beneficiaria de um certo ar de descuido.

"O que vocês pensam que estão fazendo?" o vampiro praticamente berrava, horrorizado, ao ver outros funcionários. Um deles poderia ser descrito como uma múmia, mas trajava roupas de hip-hop. O outro, um homem alto e musculoso, com pelos cobrindo grande parte de seu corpo, tinha olhos de um tom dourado peculiar. Ambos estavam pintando a área em torno da ampla lareira da sala, usando uma cor absolutamente inadequada: azul bebê.

"Quantas vezes já disse a vocês que essas cores não são apropriadas para uma festa de Halloween?" O vampiro levou a mão ao rosto, massageando as têmporas. Depois, virou-se para Kyle. "Explique para eles, Kyle. Este sol está me dando uma enxaqueca terrível!" resmungou o vampiro, acenando para que o jovem humano tomasse a palavra.

Pego de surpresa, Kyle hesitou momentaneamente. Não só estava assumindo uma responsabilidade para a qual não estava preparado, mas também estava diante de criaturas sobrenaturais poderosas. E se elas reagissem mal ao que ele tinha a dizer? Sua tia, ao seu lado, fez um sinal de 'ok' com a mão, o que ele interpretou como um incentivo para falar.

"As cores tradicionais do Halloween são laranja, preto, roxo e verde. O laranja é associado à colheita e ao outono, enquanto o preto representa a morte e o desconhecido, refletindo o espírito sombrio do feriado. O roxo está ligado ao místico e ao sobrenatural, e o verde remete a monstros e bruxas. Cores pastéis como rosa claro, azul bebê e amarelo claro são geralmente consideradas inadequadas para a ocasião, pois são muito suaves e não condizem com o tema," explicou Kyle, sentindo o suor frio percorrer seu corpo.

"Faz sentido," concordou a múmia. "Mas a culpa é toda do Larry, ele que escolheu essa tinta."

"Bem, eu sou um lobisomem. Vejo o mundo principalmente em tons de azul e amarelo e não consigo distinguir entre vermelho e verde. Como esperam que eu escolha um bom esquema de cores?" rosnou Larry em sua defesa. "Só fiz isso porque você, Ramses XII, estava com preguiça de pegar a tinta!"

"Eu só não queria sujar minhas ataduras," resmungou Ramses XII, embora segurasse um pincel e tivesse manchas de tinta azul espalhadas por suas ataduras, o que tornava sua desculpa bastante fraca.

"Vê o que eu tenho que suportar?" o vampiro lamentou, exagerando o drama em sua voz para Kyle. "Não posso ficar de olho em cada pequeno detalhe. Ainda tenho que organizar outros aspectos da festa, como o buffet e negociar o cachê das bandas que vão se apresentar. De qualquer forma, Gaspar?"

Com um estalar de dedos, uma pasta contendo documentos levitou até suas mãos. Kyle vislumbrou uma figura etérea e esbranquiçada, com uma forma vagamente humanoide, flutuando brevemente no ar enquanto transportava o objeto. Seria um fantasma?

"Então, aqui estão os planos para a decoração da mansão," disse o vampiro, passando a pasta para um Kyle ainda perplexo e ansioso. "Sua tarefa é garantir que tudo aconteça conforme planejado. Supervisione e evite desastres!" Ele disse isso com um olhar reprovador em direção à tinta azul que escorria pela parede.

"Eu... eu não tenho experiência com..." Kyle começou, mas foi interrompido pelo som estridente da música "Feed My Frankenstein" de Alice Cooper. Seu chefe prontamente atendeu seu telefone e iniciou uma conversa numa língua estrangeira.

"Você vai dar conta do recado! Lembra quando você era responsável pelo grêmio estudantil? As festas e eventos que você organizava eram incríveis!" Tia Mary sussurrou, seus olhos brilhando com entusiasmo enquanto levantava os polegares em sinal de aprovação. Antes que Kyle pudesse contestar, apontando a discrepância entre organizar atividades em uma escola de ensino médio e uma mansão, ela foi interrompida pelo chefe da empresa. Um aceno sutil da cabeça deu a entender que era hora de uma reunião. Tia Mary se afastou rapidamente, deixando Kyle sozinho, agarrando uma pasta volumosa de documentos com ambas as mãos.

"Esperem!" Kyle exclamou, fazendo um esforço hercúleo para manter o pânico fora de sua voz. "Eu nem sei o seu nome!" referiu-se ao vampiro, que era seu novo chefe. Até então, não haviam sido formalmente apresentados, embora fosse óbvio que o vampiro soubesse muito mais sobre Kyle do que o contrário.

"Ah, é verdade..." o vampiro entregou seu celular para Tia Mary e se aproximou de Kyle. A proximidade fazia o coração de Kyle acelerar, tanto pela diferença de altura quanto pela aura sobrenatural que emanava daquele homem.

"Meu nome é Maximus Vrykolakas, mas todos aqui me chamam de Max," disse ele, inclinando-se graciosamente para pegar a mão de Kyle e beijá-la suavemente. "É um prazer tê-lo conosco, Kyle Wilson."

O gesto teria sido quase romântico se não fosse por uma série de eventos inesperados que se desenrolaram quase que instantaneamente. Primeiro, um pedaço de reboco do teto despencou, acertando Max e derrubando seu chapéu elegante. Em seguida, os papéis da pasta de Kyle se espalharam pelo chão; segurá-la com uma mão só por tanto tempo havia sido uma tarefa impossível.

Nesse cenário de caos absoluto, Kyle não pôde conter uma risada. Estava, sem dúvida, em uma situação completamente inusitada. Max olhou para ele, seus cabelos salpicados de pedaços de reboco e seus óculos escuros agora descansando no chão, e também sorriu. Era, sem dúvida, uma forma bastante peculiar de começar o primeiro dia de trabalho.

 

~**~

 

Os dias subsequentes deslizaram com uma surpreendente falta de estresse, uma revelação que pegou Kyle de surpresa. Apesar de conviver com uma variedade eclética de seres sobrenaturais — criaturas que poderiam facilmente figurar nos pesadelos de qualquer pessoa comum — ele rapidamente notou que, no final das contas, eles eram muito semelhantes aos seres humanos. Traziam consigo anseios e desejos, peculiaridades e hobbies, e até mesmo receios e temores. De alguma forma, aquelas diferenças flagrantes, tanto físicas quanto místicas, tornaram-se quase triviais.

Ele se pegou desenvolvendo laços genuínos com essas entidades improváveis. Jantava com a equipe de decoração, debatia cinematografia — curiosamente evitando o gênero de terror — e trocava impressões sobre séries de TV, músicas e até memes do YouTube. Uma camaradagem que ele não previra, mas que agora se tornava uma parte cativante de seu dia a dia.

À medida que o final do mês se aproximava, o progresso na decoração da mansão assumia um ritmo quase vertiginoso. Claro, contar com a magia de bruxas e bruxos, a força bruta de lobisomens e a incansável assistência de fantasmas certamente acelerava as coisas muito além do que seria humanamente possível.

Mas o que realmente maravilhou Kyle foi o ressurgimento de uma sensação há muito esquecida: a pura e simples diversão. E enquanto ele se perdia nesse devaneio, sentado no trailer que dividia com sua Tia Mary, saboreando o seu café da manhã, uma notificação bizarra chamou sua atenção.

Sem qualquer aviso, a pequena TV do trailer se ligou espontaneamente. A tela mostrava a imagem de um poço sombrio. Ele assistiu, estupefato, mas não apavorado, enquanto uma mulher com longos cabelos negros escondendo seu rosto saía daquele poço de maneira desconcertante. Ela avançou em direção à tela em um ritmo lento e cambaleante. Então, de maneira tão surreal quanto perturbadora, a figura emergiu completamente, caindo desajeitadamente no estreito espaço da cozinha do trailer.

"Bom dia, Sadako," cumprimentou Kyle, surpreso pela própria calma e naturalidade. Esse contraste com seu primeiro encontro — preenchido pelo tipo de terror que congela o sangue — não passou despercebido. Ele estava começando a se adaptar a este novo mundo, e talvez, apenas talvez, estivesse até começando a gostar dele.

"Olá, Kyle", sussurrou a mulher, levantando-se delicadamente. Ela afastou o longo cabelo do rosto, prendendo-o atrás da orelha e revelando uma face asiática de beleza surpreendente, embora com uma palidez quase azulada.

"O que temos agendado para hoje?" Kyle indagou, saboreando um croissant e oferecendo outro a Sadako, que aceitou com sua típica hesitação.

"Kyle, você não conferiu o calendário? Hoje é 31 de outubro... Halloween", disse ela, seu sussurro suave ainda presente. "Vim te avisar que Max estava à sua procura para organizar sua fantasia."

"Já estamos no dia 31?" Ele expressou surpresa, conferindo a data em seu celular e ficando atônito com a confirmação visual. "Bem, as decorações estão praticamente prontas..."

"Estão completas, Kyle. Gaspar e os fantasmas deram os últimos retoques ontem à noite", informou ela, saboreando seu croissant em pequenas mordidas.

"Uau... Já é dia 31..." murmurou, ainda desacreditado. "Espera, você disse que Max está me procurando? Ele mencionou uma fantasia?"

"Sim, foi o que ele disse", confirmou Sadako.

"Mas... Por quê?" A pergunta de Kyle pairava no ar quando, subitamente, a porta do trailer se abriu com um rangido suave e Max adentrou o espaço. Ele agora trajava uma vestimenta menos extravagante do que no primeiro dia em que se conheceram, mas ainda assim, distinta. Vestia um moletom rosa com o símbolo da empresa – um morcego rosa estilizado – bordado no peito, calças folgadas da mesma coloração e nos pés, exibia sandálias com estampas de gatinhos, um detalhe que Kyle notou quase imediatamente. Os cabelos escuros de Max estavam ocultos sob um boné.

"Kyle! Que bom que está acordado!" Exclamou Max, com uma energia contagiante, aproximando-se rapidamente e acenando para Sadako. "Temos muita coisa para fazer!"

"A decoração já terminou, eu imagino que não tenho nada para..." Kyle começou, mas foi interrompido por Max.

"Não, isso! Temos que nos arrumar para a festa. Eu já encomendei a minha fantasia, agora devemos pensar na sua. Sinto muito por não termos discutido isso antes! Eu realmente esqueci, mas sem problemas, ainda temos tempo," tagarelava Max, gesticulando com as mãos, sua animação era palpável.

"Espera, Max... Eu vou participar da festa?" Kyle inquiriu, franzindo o cenho, uma pontada de surpresa tingindo sua voz.

"Óbvio que vai participar. Todos os funcionários vão participar. Mas você é um caso especial..." Max falou, seus olhos brilhantes fixando-se nos de Kyle, que ainda parecia confuso com a situação.

"Sou?" Kyle elevou o croissant em direção à boca, mas antes que pudesse dar uma mordida, Max se aproximou, mordiscando o referido croissant, causando uma pausa cômica no gesto de Kyle.

"Sim..." sussurrou Max, seus olhos ainda fixos nos de Kyle com uma intensidade que fez o coração do humano acelerar, não de medo, mas de uma excitação inusitada. "Você é o meu convidado, o meu par para a festa."

"Vou voltar para a TV," anunciou subitamente Sadako, "não vou ficar aqui segurando vela." Dizendo isso, ela adentrou de maneira sobrenatural na referida TV, ainda segurando seu croissant meio comido.

Kyle pigarreou, sentindo-se levemente embaraçado, mas Max sorria, imperturbável frente à insinuação feita pela assistente do humano.

"E... Que fantasia devo usar?" indagou Kyle, sentindo-se estranhamente tímido diante de Max.

"Devemos usar fantasias combinando! Eu escolhi uma fantasia de Homens de Preto, só que, em vez de preto, vou usar rosa... Você poderia se fantasiar de... sei lá... um extraterrestre? Um ET rosa!" brincou o vampiro, arrancando um sorriso dos lábios de Kyle.

"Deixe que eu escolha minha fantasia, sim? Não confio nas suas sugestões... E nada de rosa!" enfatizou Kyle, deixando-se ser conduzido pelo já elétrico vampiro.

~**~

Apesar de ter dedicado semanas a fio decorando a mansão, nada o tinha preparado para o espetáculo visual que agora se desdobrava diante de seus olhos. A mansão resplandecia sob a incandescência de luzes roxas e laranjas que lançavam um brilho etéreo sobre a estrutura. Parte da mansão havia sido cuidadosamente reformada, mantendo-se algumas janelas quebradas e resquícios de poeira e teias de aranha como toques de um charme decadente. O contraste entre o antigo e o novo era evidente: paredes recém-pintadas e papel de parede renovado se fundiam harmoniosamente ao ambiente envelhecido. Um véu de névoa fantasmagórica envolvia o ambiente, criando uma atmosfera misteriosa e inquietante. A cereja do bolo era um pequeno cemitério cenográfico que fora incorporado à paisagem ao redor do edifício, complementado por uma chuva suave e o estrondo ocasional de trovões ao longe. Era evidente que Max tinha conseguido conjurar o ambiente perfeito para a festa de Halloween.

Max, o anfitrião impecável, ostentava um terno rosa chique, óculos escuros estilosos e empunhava uma réplica perfeita de uma das armas icônicas do filme Homens de Preto em uma mão. Na outra, segurava um guarda-chuva, oferecendo abrigo a Kyle, que, com um toque de humor, optara por se fantasiar de Conde Drácula, só para provocar uma pitada de irritação em Max.

"Pelo menos você está mais atraente que Bela Lugosi," comentou Max, com um brilho travesso nos olhos ao ver o resultado final da fantasia de Kyle. O traje de Kyle era uma mistura de elegância e tradicionalismo, com uma capa negra longa e aveludada, um colete carmesim ricamente bordado, e uma camisa de linho branca. A maquiagem pálida e os caninos afiados completavam o visual, tornando a provocação a Max ainda mais deliciosa.

Kyle absorvia a atmosfera vibrante que envolvia o ambiente. A presença dos convidados, uma mistura eclética de seres sobrenaturais e humanos, criava um mosaico visual fascinante. Cada figura, adornada com fantasias criativas, contribuía para o cenário festivo e inclusivo. A festa estava aberta a todos, um testemunho vivo de diversidade e aceitação. Uma onda de orgulho inundou Kyle ao contemplar o resultado final de seu esforço, mas essa emoção foi tingida por uma pitada de apreensão. Ele fora contratado apenas para esse evento. O que o futuro lhe reservava? Será que voltaria para a monotonia de sua vida anterior, abrigado na casa dos pais, desprovido de perspectivas emocionantes?

"Você sabe," Max começou a falar, hesitante, "tenho outro evento para organizar. Será uma festa de Ação de Graças para uma família de... bem, perus gigantes. Sim, é estranho, mas eles pagam bem. Seria interessante... se você quisesse... participar de mais um projeto insano da minha empresa. Compreendo se não quiser... Afinal, você deve ter outras cois..."

"Eu quero!" Kyle exclamou, interrompendo o tagarelar nervoso de Max. "Eu adoraria trabalhar em mais projetos loucos ao seu lado... Max."

A face de Max se iluminou com um sorriso radiante, que fez o coração de Kyle palpitar um pouco mais rápido. O rubor que tingiu as bochechas de Kyle não pôde ser ocultado, mesmo sob a camada generosa de maquiagem que tornava sua pele pálida.

"Fico feliz... E... Que tal comemorar isso, hum? Temos uma festa de Halloween para aproveitar!" Max exclamou, já arrastando Kyle entusiasticamente para o interior da mansão, onde a música ecoava pelas salas e corredores, prometendo uma noite inesquecível.

Entre a Chuva e o Sol

  "Você tem certeza de que ela é realmente competente?" "Sim, pelo menos é o que dizem...", seu assessor lhe infor...