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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Sobre a culpa e o direito ao ócio

 


Você já se sentiu culpado sem necessariamente ter feito algo errado? Refiro-me a um tipo específico de culpa: aquela que nos consome por dentro, que nos impede de desfrutar plenamente momentos de lazer, como assistir a um filme, dedicar-se a uma atividade relaxante ou mesmo passar tempo com amigos e familiares. Esse sentimento frequentemente nos faz questionar como usamos nosso tempo.

Imagine aquela voz incômoda, um sussurro constante em nossa mente, dizendo que deveríamos estar estudando ou trabalhando em vez de nos divertir. Essa voz nos lembra que, enquanto estamos nos permitindo um descanso, outros estão progredindo em suas carreiras ou estudos, acumulando conhecimento ou dinheiro. Esse é o tipo de culpa que estou discutindo: um sentimento persistente que nos questiona sobre o valor do lazer frente às obrigações e metas profissionais ou acadêmicas.

Este sentimento de culpa, tão visceral e perturbador, não emerge no vazio. Ele é um entrelaçamento complexo de fatores psicológicos, culturais, e até biológicos que refletem não apenas nossas escolhas pessoais, mas também as expectativas profundamente enraizadas em nossa sociedade. Nas próximas seções, exploraremos a origem da culpa através de diferentes lentes — desde as teorias da psicanálise, que desvendam conflitos internos e traumas, até os estudos etológicos, que nos mostram como até mesmo outros primatas podem experienciar emoções semelhantes. Avançaremos para entender como estruturas socioeconômicas, especialmente o neoliberalismo e o capitalismo, moldam e até exacerbam esse sentimento, fazendo-nos questionar não só o nosso direito ao descanso, mas também a nossa própria valia em face de um mundo que valoriza incessantemente a produtividade. Ao final, consideraremos como o ócio, longe de ser um mero lapso na produtividade, pode ser uma forma revolucionária de resistência e uma necessidade fundamental para o bem-estar humano.

Raízes da Culpa

Para compreender o sentimento de culpa, se faz necessário refletir sobre a complexidade dessa emoção. A culpa é uma das emoções mais profundas que os seres humanos experimentam. Originária do latim "culpa", que significa "crime" ou "falta", a culpa está historicamente ligada à responsabilidade por ações consideradas erradas ou transgressões.

Na perspectiva religiosa, a culpa emerge quando violamos normas morais ou divinas, constituindo um julgamento pessoal baseado em códigos éticos e regras religiosas. Por exemplo, o pecado é visto como uma transgressão moral contra um código divino, e a culpa é a resposta natural a essa transgressão. As religiões frequentemente oferecem rituais como confissão, perdão e penitência como formas de lidar com a culpa.

No campo da psicanálise, o sentimento de culpa é entendido como resultante do conflito entre as expectativas do superego — a parte da mente que internaliza as normas sociais e morais — e a realidade. Quando falhamos em atender às expectativas do superego, surgem sentimentos de culpa. Esse fenômeno está frequentemente associado ao Complexo de Édipo, que descreve um estágio do desenvolvimento psicológico em que a criança sente uma atração inconsciente pelo progenitor do sexo oposto e hostilidade em relação ao progenitor do mesmo sexo. A resolução desse conflito leva à formação do superego e, consequentemente, à capacidade de sentir culpa. A psicanálise busca desvendar as raízes da culpa através da análise do inconsciente e dos traumas passados.

A etologia estuda o comportamento animal, considerando os padrões de comportamento como sistemas orgânicos evoluídos ao longo do tempo para garantir a homeostase individual e coletiva. O sentimento de culpa, embora complexo, não parece ser exclusivo dos seres humanos. Não podemos afirmar com certeza se primatas experimentam exatamente o mesmo tipo de culpa que os humanos, mas existem comportamentos em espécies como chimpanzés e bonobos que sugerem expressões de culpa, tais como abaixar a cabeça, evitar contato visual e mostrar sinais de submissão após cometerem erros ou transgressões.

Estudos observacionais indicam que primatas, especialmente os chimpanzés, frequentemente exibem comportamentos de reconciliação após conflitos, o que pode ser interpretado como uma maneira de lidar com a culpa ou de restaurar relações sociais. Em algumas espécies, como os bonobos, indivíduos que monopolizam alimentos podem enfrentar agressões ou exclusão social por parte dos outros membros do grupo, o que indica uma noção de justiça e culpa relacionada ao compartilhamento de recursos.

No entanto, é importante lembrar que interpretar esses comportamentos em primatas é complexo e pode variar entre espécies. O que consideramos “culpa” em humanos pode ter nuances distintas em outras espécies, dada a nossa capacidade desenvolvida de refletir sobre ações passadas, antecipar consequências e processar emoções complexas devido à nossa linguagem e cognição avançadas.

Outro exemplo que ilustra a complexidade da culpa em animais envolve cães de estimação. Muitos donos de cães acreditam que seus animais expressam culpa quando são desobedientes; contudo, estudos científicos oferecem uma perspectiva diferente. Pesquisadores da Universidade de Cambridge observaram que os cães possuem um "olhar culpado" que não necessariamente reflete culpa real. Em experimentos, donos de cães não conseguiram determinar, com base na expressão facial de seus pets, se eles haviam desobedecido uma ordem para não comer um biscoito. Esse olhar de culpa parece ser mais uma reação à linguagem corporal do dono do que uma verdadeira consciência de ter cometido uma falha.

 

O culpado sou eu ou o Neoliberalismo? Ou o Capitalismo?

Conforme mostrando anteriormente, é comum associarmos a culpa a ações erradas que cometemos, como crimes, faltas ou transgressões. No entanto, a abordagem inicial deste texto sugere uma concepção de culpa que se desvia dessa interpretação tradicional. Aqui, a culpa não está necessariamente ligada a ser o transgressor, mas sim, em certos casos, a ser a vítima.

Neste contexto, proponho uma análise sob a perspectiva neoliberal da culpa. O neoliberalismo, uma teoria econômica que evoluiu do liberalismo clássico, adapta-se às condições da economia globalizada. Suas características principais incluem a minimização do papel do Estado na economia, a privatização de empresas estatais, a liberalização econômica e a desregulamentação. Mas, como isso se relaciona com a culpa?

O neoliberalismo influencia o sentimento de culpa de várias formas. Com sua ênfase na individualização da responsabilidade e na livre iniciativa, o neoliberalismo pode fazer com que as pessoas se sintam culpadas por não alcançarem sucesso ou por enfrentarem dificuldades financeiras. A incessante busca por sucesso e a competitividade do ambiente neoliberal também podem cultivar sentimento de culpa quando as pessoas falham em atingir metas ou se comparam desfavoravelmente com outros.

Além disso, a desregulamentação e a flexibilização das leis trabalhistas, frequentemente associadas ao neoliberalismo, podem levar a condições de trabalho precárias. Isso, por sua vez, pode induzir culpa nos trabalhadores por não serem suficientemente produtivos. Não podemos ignorar que o neoliberalismo também pode exacerbar a desigualdade econômica. Essa disparidade pode provocar sentimento de culpa tanto em quem possui mais recursos, por perceber a desigualdade existente, quanto em quem tem menos, por sentir-se incapaz de melhorar sua situação.

O capitalismo, como sistema econômico, exerce uma influência significativa na experiência de culpa. Este sistema valoriza o sucesso material, e aqueles que não atingem esse padrão frequentemente se sentem culpados por não corresponderem às expectativas sociais.

O consumismo, impulsionado tanto pelo neoliberalismo quanto pelo capitalismo, promove a constante aquisição de bens e serviços como meio de obter satisfação pessoal e status social. A cultura do "ter para ser" pode gerar culpa de várias maneiras: indivíduos podem sentir-se culpados ao perceberem o impacto ambiental de seu consumo excessivo ou ao identificarem um comportamento de compra compulsiva. Paradoxalmente, a incapacidade de consumir no mesmo nível que os outros, devido a restrições financeiras, por exemplo, também pode gerar sentimentos de exclusão e falha, alimentando ainda mais a culpa.

Na sociedade moderna, essas forças interagem de maneira a frequentemente amplificar a pressão e a culpa sobre os indivíduos. A constante exposição, através das mídias sociais e outras plataformas, aos sucessos e consumos alheios pode intensificar esses sentimentos. Além disso, a narrativa do "self-made man", amplamente propagada em discursos neoliberais e capitalistas, frequentemente ignora as desigualdades estruturais e atribui o sucesso pessoal inteiramente ao mérito individual.

Portanto, em dias chuvosos, quando desejo permanecer mais tempo na cama, a culpa muitas vezes me domina. Pensa-se que deveria estar de pé, trabalhando ou fazendo algo produtivo — na perspectiva neoliberal, produzindo, pois afinal, "tempo é dinheiro". Acabo me culpando não apenas pelo tempo dedicado ao descanso, mas também por não possuir as coisas que desejo, justamente por gastar esse valioso tempo deitado. A metáfora da formiga e da cigarra ressoa, sugerindo que sempre devemos ser como a formiga, laboriosa e produtiva.

A culpa neoliberal a revolução é o ócio!

O sentimento de culpa pode levar à tristeza, depressão e somatizações físicas. Por isso, é essencial liberar esse fardo para alcançar bem-estar físico e psicológico. Devemos refletir sobre nossas verdadeiras responsabilidades dentro do mundo em que vivemos e chegar à conclusão de que muitas vezes não somos de fato os culpados, considerando as pressões e expectativas impostas sobre nós.

Outro ponto fundamental é a valorização do ócio. O ócio não deve ser confundido com preguiça ou procrastinação. Refere-se a períodos de inatividade aparente, durante os quais a mente está livre para explorar ideias e conexões não convencionais. O sociólogo italiano Domenico De Masi cunhou o termo "ócio criativo" para descrever esse estado mental, acreditando que o ócio pode ser produtivo para a criatividade e inovação. O cérebro necessita de tempo ocioso para manter a produtividade, ganhar perspectiva e gerar ideias inovadoras.

O ócio não deve ser visto como algo negativo. É tanto um direito quanto um dever que permite o surgimento de facetas humanas não subjugadas pelo imperativo da produção. Historicamente estigmatizado, hoje sabemos que o descanso é fundamental para a saúde física e mental. Descansar com a mesma regularidade que trabalhamos nos torna mais produtivos, criativos e saudáveis.

Devemos reivindicar o direito ao ócio como parte essencial do autocuidado, uma responsabilidade que temos para preservar nossa saúde e bem-estar. O ócio não deve ser subestimado; ele é crucial para nossa liberdade e equilíbrio na sociedade contemporânea. Buscar o ócio é uma maneira de romper as amarras da culpa imposta pelo neoliberalismo e de viver de forma mais próxima de uma satisfação verdadeiramente libertadora e sem restrições.



quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Festival da hipocrisia mundial

 

A city street during the holiday season, bustling with festive decorations and busy shoppers. In the midst of this, a solitary figure, a man in worn clothing, sits beneath a bare tree on the sidewalk. He looks contemplative and slightly out of place amid the holiday cheer. The contrast between the festive atmosphere and the man's situation is stark. The scene is set in the evening with street lights and store windows casting a warm glow, while the man is in the shadows, highlighting the disparity between him and the festive surroundings. This image captures the essence of urban life during the holidays, with a focus on the contrast between celebration and solitude.

 

Ah, essa era a época do ano que ele adorava – note o sarcasmo. Nada a ver com mesas transbordando de comida, a falsidade da troca de presentes, ou o teatro da união familiar. Quem ele estava tentando enganar? Ele mal conseguia comprar um pão amanhecido, quanto mais se deliciar com um panetone gourmet. Presentes? Só se chovessem do céu. E família? Ah, essa o havia largado faz é tempo.

Por que, então, ele 'gostava' tanto dessa época? Oh, a resposta é um deleite de cinismo. Ele não chamava isso de Natal, mas sim o 'festival da hipocrisia mundial'. Era aquela época mágica do ano em que os 'bons samaritanos' saíam de suas cavernas, tomados por um falso espírito de fraternidade, atirando migalhas de caridade para se livrar da culpa acumulada. E a caridade, ah, essa só tinha valor com plateia, aplausos e um obrigado bem dramático, como se estivessem salvando o mundo. Sim, ele recebia sua cota de esmolas natalinas – restos de comida e roupas que nem os próprios doadores usariam. Um verdadeiro banquete de sobras, mas ei, melhor do que nada, certo?

Além disso, havia o lixo! Ah, o glorioso lixo gerado nesses dias festivos! Principalmente após o 24 e 25 de dezembro! Ele realmente se sentia afortunado por encontrar tantos restos, plásticos, latinhas, embrulhos, presentes descartados... Uma verdadeira mina de 'tesouros' que podia vender ou mesmo reutilizar. Ironia das ironias, essa época do ano se revelava uma das mais lucrativas para ele.

Naquele ponto, ele já nem se lembrava mais do verdadeiro significado do Natal. Afinal, sobre o que era essa festa mesmo? Uma celebração em homenagem a alguma figura importante, certamente rica, porque, afinal, todo importante tem que ostentar riqueza, certo? Não poderia ser alguém como ele... Uma pessoa esquecida, ignorada. Aquele que as pessoas evitam olhar, virando o rosto ao passar. Aquele para quem os vidros dos carros se fecham ao pedir esmolas. Reduzido a uma coisa, mais do que um ser humano, na sociedade do espetáculo e do descarte.

"Jesus!" alguém chamou. Ele ergueu os olhos do ponto onde estava sentado, à sombra de uma árvore desfolhada, no canteiro central de uma avenida movimentada.

"Viva Jesus!" uma mulher exclamava para um grupo de pedintes enquanto lhes entregava algo que parecia ser um saco de balas, mais duras que pedras. O que o surpreendia, no entanto, era ela pronunciar seu nome. Às vezes, ele quase esquecia que Jesus era como se chamava... Afinal, ninguém jamais se dirigia a ele diretamente. Insultos, sim, mas seu verdadeiro nome raramente era mencionado.

Jesus... E esses 'vivas'? O que realmente significavam? Ele se perguntava, perdido em pensamentos, enquanto a vida agitada da cidade continuava ao seu redor.

 

Conto de Nathy Maíra

 

Entre a Chuva e o Sol

  "Você tem certeza de que ela é realmente competente?" "Sim, pelo menos é o que dizem...", seu assessor lhe infor...