Os
sussurros sobre a chegada de um novo artista à corte de Luís XIV em Versalhes
corriam como brisas inquietas através dos corredores ornamentados e salões
opulentos do palácio. Em uma era em que a majestade real patrocinava as
ciências, as letras e as artes com uma liberalidade sem precedentes, cada novo
rosto era um acréscimo à tapeçaria viva que tecia a glória do Rei Sol. Por trás
dessa façanha cultural, havia um projeto ambicioso: a arte, meticulosamente
orquestrada e oficialmente endossada, era o bastião da grandiosidade real, um
instrumento de poder incontestável.
O
Château de Versailles, uma vez um modesto pavilhão de caça herdado de Luís
XIII, havia sido transformado sob o comando de Luís XIV em um ícone da
monarquia absoluta francesa, um palácio deslumbrante que irradiava o esplendor
do poder político. Com a orientação visionária de mestres como Louis Le Vau,
Jules Hardouin-Mansart, Charles Le Brun e André Le Nôtre, o palácio e seus
jardins passaram por expansões e embelezamentos sem igual, culminando em uma
manifestação arquitetônica de luxo, ordem e harmonia.
A
chegada do novo artista, no entanto, estava envolta em um manto de mistério. A
escolha de recebê-lo sob o véu da noite gerava um misto de curiosidade e
inquietação entre os habitantes do palácio. Em uma noite gélida de outono, o ar
crispado pela expectativa, centenas de servos se reuniram à espera da carruagem
que traria a mais recente adição à corte. À medida que a meia-noite se
aproximava, uma carruagem modestamente iluminada surgiu ao longe, puxada por
cavalos de aparência robusta e majestosa, cujos cascos ecoavam poderosamente
contra o caminho de cascalho.
À
medida que a carruagem avançava, os olhos do misterioso artista deveriam
vislumbrar os jardins meticulosamente desenhados por André Le Nôtre, um
espetáculo de engenhosidade humana e beleza natural. Esses jardins, um triunfo
da simetria, ordem e beleza, estendiam-se diante do palácio como um testemunho
vivo do controle absoluto do rei sobre a natureza.
Quando
a carruagem finalmente se imobilizou diante do grandioso portal, um silêncio
expectante pairou sobre a multidão de servos reunidos, cada um antecipando o
momento de revelação. No entanto, antes que pudessem se adiantar para cumprir
seu dever, uma figura imponente desceu não da cabine destinada aos passageiros,
mas da posição do cocheiro. Vestido em um longo sobretudo de veludo negro,
adornado com discretos detalhes em fio de ouro que capturavam a escassa luz
noturna, o homem possuía uma estatura e presença que comandavam atenção
imediata.
Seus
olhos, de um amarelo profundo e quase dourado, brilhavam com um esplendor
sinistro sob a noite enluarada, lançando um olhar que paralisou os servos com
uma mistura de confusão e temor. A pele do homem, de um tom ébano rico e raro
na corte francesa, sugeria uma origem distante, talvez das colônias francesas
na África ou do Novo Mundo, conferindo-lhe um ar de exotismo e mistério.
Com um
gesto autoritário, ele abriu a porta da carruagem, desvelando o aguardado
artista de maneira dramática. Em Versalhes, onde o status e a linhagem eram tão
críticos quanto o talento, a chegada de um artista raramente provocava tal
cerimonial. No entanto, a comitiva reunida parecia suspender essas convenções,
preparada para recepcionar a figura emergente com uma deferência quase nobre.
A
surpresa se aprofundou quando, do interior da carruagem, um jovem de não mais
de 18 anos fez sua aparição não com a cautela esperada, mas com um salto ágil e
despreocupado, ignorando completamente a pequena escada e o banco
meticulosamente posicionados para facilitar seu desembarque.
Sua
pele, de um branco alabastro, contrastava vivamente com o dourado opulento que
permeava o Palácio de Versalhes, uma palidez tão marcante que quase sugeria
fragilidade, não fosse por sua expressão radiante e a vitalidade que seus
gestos insinuavam. Os cabelos loiros, longos e despojadamente amarrados com uma
fita de um verde vibrante, evocavam a luminosidade do verão, enquanto seus
olhos azuis claros refletiam a serenidade de um céu sem nuvens.
Contrariando
todas as expectativas da corte, sua vestimenta era um estudo de simplicidade e
praticidade: uma camisa de algodão puro, calças de um verde sutil que caíam
soltas sobre suas pernas e, mais chocante ainda, calçava sandálias, um desvio
audacioso das botas e sapatos de fivela que dominavam os corredores de
Versalhes. Essa escolha de indumentária não apenas desafiava as convenções da
moda francesa, mas também se apresentava como um manifesto silencioso de sua
origem e independência estrangeiras.
“Aqui
é bem mais frio do que imaginei...” ele observou, dirigindo-se ao seu
acompanhante de pele ébano, cuja expressão impassível não revelava resposta. A
admiração, porém, era evidente em sua voz ao acrescentar, “Mas de fato é algo
grande, como você tinha me dito.” Seu francês, embora impecável, carregava um
sotaque exótico que confundia os ouvintes, uma melodia estrangeira que
entrelaçava suas palavras com um charme misterioso.
Dirigindo-se
a outro acompanhante, um jovem que parecia deslocado entre os servos, com seus
cabelos negros e olhos escuros brilhando contra a pele pálida – vestido com a
elegância da nobreza francesa, mas servindo humildemente ao pintor. A presença
deste jovem, tão adequadamente vestido e, no entanto, agindo como um servo,
adicionava uma camada de intriga à já fascinante chegada do artista.
O
chefe dos servos da corte, um homem de estatura imponente e postura impecável,
avançou com passos medidos em direção ao recém-chegado artista. Com uma
reverência cuidadosa, ele anunciou: “Monsieur Phoebus Crepuscule, Sua Majestade
o aguarda.”
A
resposta de Phoebus, no entanto, desencadeou uma onda de choque entre os
presentes. “Oh! Ele realmente permaneceu desperto à minha espera? Na
correspondência, fiz questão de expressar que um encontro pela manhã seria de
meu agrado. Seria possível postergar nossa audiência?” Sua indiferença causou
um frisson de horror entre os servos e até entre os membros da guarda real,
pois tal ousadia era inconcebível na presença do Rei Sol, cujas ordens eram
inquestionáveis.
O
jovem servo do artista, vestido com trajes que denotavam sua posição de
nobreza, tocou discretamente a manga de algodão de Phoebus, buscando atrair sua
atenção. “Creio...” começou ele, com um tom de hesitação, “que seria prudente
atender ao chamado de Sua Majestade.”
Phoebus
ponderou por um momento, acariciando seu queixo com uma expressão de reflexão
profunda, enquanto o chefe dos servos mantinha-se em sua posição de respeito,
aguardando a resposta do visitante audacioso. A insolência do jovem artista
poderia facilmente resultar em um destino sombrio nas masmorras. O que havia de
tão excepcional naquele estrangeiro?
“Está
bem, encontrarei o rei. Afinal, é melhor resolvermos isso logo,” concluiu
Phoebus, soltando uma risada despreocupada e segurando a mão do servo que lhe
havia aconselhado, iniciando sua caminhada em direção ao encontro real. Eles
eram seguidos de perto pelo imponente servo de olhos dourados, cuja presença
silenciosa e intimidadora parecia emanar uma aura de desaprovação.
Enquanto
Phoebus e sua comitiva adentravam o esplendor da corte de Luís XIV em
Versalhes, eles atravessaram o magnífico Vestíbulo de Mármore. Este espaço
imponente, com suas colunas robustas e o chão mosaico em mármore preto e
branco, era um prelúdio da grandiosidade que se desdobraria diante deles. Os
tetos, adornados com afrescos que exaltavam as vitórias e o governo de Luís
XIV, eram complementados por bustos e esculturas de mármore que retratavam os
monarcas franceses predecessores, criando uma ponte silenciosa entre o passado
glorioso e o presente majestoso.
Ao
prosseguir, encontraram-se na deslumbrante Galeria dos Espelhos, o coração
pulsante de Versalhes. Este salão majestoso, alinhado com 357 espelhos que
enfrentam as janelas opostas, captava a luz do sol durante o dia, criando uma
aura dourada que agora, sob o manto da noite, transformava-se em um brilho
suave e etéreo, graças à iluminação cuidadosamente planejada. Os afrescos no
teto, obra-prima de Charles Le Brun, narravam as façanhas do reinado de Luís
XIV.
Conforme
avançavam, cada salão que atravessavam era dedicado a um deus ou planeta,
reforçando a imposição da divindade do rei sobre seu domínio terreno. O Salão
de Apolo, em particular, destacava-se não apenas como a sala do trono, onde
Luís XIV orquestrava os assuntos do estado, mas também como um santuário para
as artes, cercado por pinturas e esculturas que celebravam sua grandeza. Foi
neste ponto que Phoebus, com sua curiosidade inata e despreocupação
característica, fez uma pausa, contemplando o salão com um brilho de interesse
em seus olhos.
"Salão
de Apolo, hein? Isso é irônico, não acha?" comentou Phoebus, arrancando um
olhar de urgência de seu companheiro, que o puxava suavemente, tentando incitar
a continuidade de sua caminhada.
"Por
favor, mantenha a voz baixa... O que pensarão os outros? Estamos aqui a
serviço, não para suscitar escândalos," repreendeu o servo em um sussurro,
um tom incomum para a relação entre mestre e serviçal. A tensão entre eles
sugeria uma familiaridade que transcendia as convenções sociais, surpreendendo
outros servos com a audácia da interação.
"Mas
é Apolo! Não encontra humor na situação, Luís? Considerando as
circunstâncias..." Phoebus continuou, com um sorriso que iluminava seu
rosto, imperturbável pela repreensão.
Luís,
o servo, corou levemente sob o escrutínio de seus companheiros e com um puxão
mais firme, conduziu Phoebus adiante, um gesto que, embora apressado, carregava
uma camada de cumplicidade e entendimento mútuo.
A
comitiva de Phoebus avançou pelos corredores do Palácio de Versalhes, um
labirinto de esplendor e grandeza, cujas paredes eram enfeitadas com tapeçarias
ricas e obras de arte de valor inestimável. À medida que se aproximavam dos
Aposentos Reais, o ambiente tornava-se ainda mais imponente, cada passo os
levando mais perto da presença do monarca supremo.
Os
aposentos do rei, estrategicamente posicionados para saudar o nascer do sol,
serviam como o cenário perfeito para o encontro com Luís XIV. Com 45 anos, o
Rei Sol emanava uma aura de majestade e autoridade indiscutíveis, uma
encarnação viva do absolutismo monárquico e da grandiosidade barroca que
marcava sua era. Rodeado pela opulência que ele mesmo ordenara criar, Luís XIV
era o epicentro do poder, não apenas na França, mas em toda a Europa.
Vestido
em trajes que exibiam a riqueza e o esmero de seu reinado, o rei trajava um
casaco finamente bordado com fios dourados, adornado por pedras preciosas que
capturavam a luz, criando um espetáculo visual. Uma camisa de linho branco, com
rendas elaboradas, espreitava por debaixo do casaco, e uma capa real, talvez de
um veludo azul profundo ou vermelho sangue, repousava sobre seus ombros,
bordada com o símbolo do sol, em homenagem ao seu apelido. Seu cabelo,
meticulosamente arrumado, e uma peruca encaracolada, seguindo a moda da
nobreza, completavam sua aparência.
Ao
entrar nos aposentos do rei, Phoebus, com sua habitual descontração, rompeu o
silêncio reverencial. "Devo dizer que admiro o seu estilo e apreço pelas
artes. O trajeto desde a entrada até aqui foi, indubitavelmente, uma
experiência peculiar," disse, violando sem cerimônia as rígidas normas de
etiqueta da corte. Em Versalhes, era esperado que os visitantes demonstrassem
sua submissão e respeito ao rei através de uma reverência profunda, mantendo-se
em silêncio a menos que fossem diretamente abordados pelo monarca.
A
ousadia de Phoebus provocou um murmúrio de desaprovação entre cortesãos e
guardas, muitos dos quais pareciam prontos para intervir. No entanto, Luís XIV,
com um gesto tranquilo, silenciou os presentes e, para surpresa de todos,
recebeu o comentário do artista com um sorriso.
"É
com prazer que vejo Versalhes despertar um apreço artístico em vós, Monsieur
Crepuscule," respondeu o rei, demonstrando uma tolerância e um interesse
que desafiavam as expectativas.
"Vejo
que fiz bem em aceitar o convite de minha mãe para este encontro. Parece ser
algo que irá me entreter mais do que esperava," comentou Phoebus com um
tom de voz relaxado "Falando nisso, creio que seria sensato discutirmos
nosso assunto em particular, não concorda?" Sua sugestão, acompanhada de
um gesto amplo e expressivo em direção à multidão que preenchia o aposento,
destacou o quão público era aquele momento supostamente íntimo.
A
sugestão de Phoebus para uma conversa privada com o Rei Sol poderia ser
considerada audaciosa, até mesmo ultrajante, para os padrões da época. Apesar
da importância já demonstrada pela recepção grandiosa concedida a ele e do fato
de o próprio monarca não ter demonstrado ofensa perante suas maneiras pouco
convencionais, havia limites para a indulgência. No entanto, a resposta de Luís
XIV surpreendeu a todos mais uma vez.
"Está
correto, Monsieur Crepuscule. O que temos a discutir é, de fato, bastante
delicado. Prefiro que conversemos a sós," declarou o rei, sua voz
ressoando com autoridade incontestável. Diante de tal ordem direta do soberano,
nenhum dos cortesãos, servos ou guardas ousou objetar. Com reverências
profundas, uma após a outra, as figuras que compunham a audiência real se
retiraram do aposento, deixando o rei e o artista em uma privacidade que poucos
poderiam reivindicar.
"Meus
subordinados se retiraram, contudo, observo que os seus permanecem,"
comentou o rei, direcionando seu olhar primeiro para o alto servo de olhos
dourados, cuja postura impassível e falta de reverência constituíam uma quebra
das normas cortesãs, desafiando o monarca com um olhar direto. Em seguida, sua
atenção desviou-se para o outro servo, cuja aparência e vestimentas refletiam a
elegância imposta pela moda da corte, um contraste notável com a simplicidade
do traje de seu mestre. Este servo mantinha o rosto baixo, possivelmente em
reconhecimento da autoridade real que seu companheiro desdenhava.
"Diferente
dos seus, meus acompanhantes estão inteiramente cientes do assunto que nos
ocupa, eliminando qualquer motivo para preocupação," replicou Phoebus, com
um sorriso que rasgava seu rosto, revelando caninos inusitadamente
proeminentes.
"Quanto
ao propósito de minha visita, venho por um pedido feito por minha mãe. Segundo
entendi, vossa majestade deseja se juntar a nós... tornar-se um filho da noite.
Irônico, considerando-se que você se denomina Rei Sol," provocou Phoebus,
sua voz carregada de sarcasmo. A audácia de suas palavras forçou Luís XIV a
controlar-se para não convocar a guarda real, consciente de que, frente à
entidade sobrenatural diante dele, talvez nem seus mais valentes guerreiros
fossem suficientes.
"Desejo
a imortalidade," confessou o rei, esforçando-se para manter firmeza em sua
voz. "Acredito ser merecedor, dada a magnitude de minhas conquistas, como
deve ter observado."
"De
fato, fui eu quem foi escolhido dentre todos os meus irmãos e irmãs por minha
mãe para esta tarefa," disse Phoebus, esboçando um sorriso que fez o
monarca sentir um arrepio inesperado. "E há mais uma razão. Você anunciou
à sua corte que sou um artista, o que é verdade. Minha presença aqui não é mera
desculpa ou justificativa para visitar Versalhes. Como artista, é por meio da
minha arte que julgarei se você está apto a se juntar à nossa exclusiva
linhagem. Pretendo pintar um retrato seu."
A
proposta deixou o rei visivelmente surpreso. Embora não fosse estranho ser o
sujeito de retratos, a ideia de ser avaliado por meio de um deles era inovadora
e, de certa forma, desconcertante. "Como exatamente serei julgado por um
retrato?" ponderou Luís XIV.
"Levarei
dois dias para completar," continuou Phoebus, desviando seu olhar para a
janela. A luz da lua, filtrando-se através dela, lançava uma luminosidade
etérea sobre o ambiente.
"Dois
dias? Isso parece impossível," murmurou o rei com ceticismo. Artistas de
sua corte, como Hyacinthe Rigaud, conhecidos por seus retratos meticulosamente
detalhados, dedicavam meses a uma única peça.
"Dois
dias," reafirmou Phoebus, voltando seu olhar penetrante para o Rei Luís
XIV. Seus olhos, anteriormente de um azul sereno, agora exibiam um tom vermelho
sangue, instilando um frio visceral no soberano. "Em dois dias, concluirei
seu retrato. Nos encontraremos todas as noites no salão que você denomina de
Apolo. Após esse período, proferirei meu veredicto sobre seu desejo de se
tornar um vampiro."
E
assim, sob a promessa enigmática de Phoebus, o destino do Rei Sol foi
irrevogavelmente selado.
o Rei
Sol encontrava-se em um estado de tensão não provocado pelo peso das insígnias
de seu poder ou pelo rigor das formalidades cortesãs, mas pela atmosfera
enigmática que Phoebus, o vampiro artista, havia instaurado. Embora
familiarizado com o tédio que poderia acompanhar as longas sessões de pose para
retratos, a experiência atual distanciava-se radicalmente de qualquer coisa que
o monarca tivesse vivenciado antes.
Posando
em seu trono, Luís XIV estava adornado com suas vestes mais suntuosas,
completas com as joias mais deslumbrantes e uma peruca impecavelmente
estilizada, tudo meticulosamente escolhido para impressionar o artista de
natureza sobrenatural. Contudo, o esplendor de sua aparência pouco contribuía
para aliviar o peso da ansiedade que o dominava, uma tensão que emanava não das
formalidades da corte, mas do próprio Phoebus e do clima sobrenatural que ele
havia criado.
Phoebus,
despido de convenções tanto quanto de sua camisa, trabalhava descalço sobre o
piso frio do Salão de Apolo. Por sua ordem, o espaço fora isolado do resto do
palácio, transformando-se em um ateliê privativo onde apenas as chamas trêmulas
das velas rompiam a escuridão, projetando sombras dançantes nas paredes
cobertas por tapeçarias históricas. As janelas estavam ocultas sob pesados
tecidos, garantindo que nenhum olhar curioso perturbasse a sacralidade do
processo criativo.
O rei
observava, fascinado e apreensivo, enquanto Phoebus dançava em um transe
artístico, suas mãos movendo-se com uma velocidade sobrenatural, alternando
entre pincéis embebidos em uma tinta de propriedades mutáveis. A substância
parecia viva, mudando de cor e textura ao capricho do vampiro, um fenômeno que
cativava e aterrorizava Luís XIV em igual medida.
Os
servos, movendo-se como sombras, traziam novas cores para alimentar a frenética
criação do artista. E, nos momentos em que Phoebus mergulhava o pincel na
paleta, seus olhos transformavam-se, adquirindo um brilho vermelho intenso,
desprovido de qualquer vestígio de humanidade, enquanto presas ameaçadoras e
sedutoras delineavam-se em seu sorriso.
Os
dois dias, ou mais precisamente, duas noites, transcorreram de forma tão
vertiginosa que o Rei Luís XIV chegou a questionar se estava imerso em algum
tipo de sonho ou febre delirante. Ao término da segunda noite, conforme o
vampiro artista havia predito, a obra estava completa.
"Inacreditável..."
murmurou o rei, sua voz permeada por um misto de incredulidade e fascínio.
"Por
favor, venha ver..." convidou Phoebus, gesto com as mãos manchadas de
tinta em direção à tela ainda oculta da visão do monarca. Com passos
apressados, impulsionados tanto pela curiosidade quanto pela ansiedade, Luís
XIV aproximou-se para desvendar o mistério da pintura.
O que
ele encontrou diante de seus olhos foi um choque, uma sensação de horror que
permeou seu ser. A tela revelava sua figura sobre o trono, mas divergia
radicalmente dos retratos anteriores, nos quais se via imbuído de uma
superioridade quase divina. Ao contrário, o retrato apresentava um realismo
grotesco: as rugas e imperfeições de sua pele eram visíveis, até mesmo
ridicularizadas pelo uso excessivo de pó branco de arroz. Mas o elemento
sobrenatural era ainda mais perturbador. O trono era retratado como se fosse
construído de ossos, cercado por figuras doentes e famintas estendendo suas
mãos em direção às suas vestes luxuosas. No fundo, cenas de guerras e
cobradores de impostos agredindo camponeses e a classe trabalhadora para
financiar conflitos e a própria construção de Versalhes, retratada como um
palácio erguido sobre restos humanos.
A
pintura pulsava com uma vida sinistra, exalando odores de podridão, carne,
excrementos e sangue, uma aura palpável de morte e sofrimento que emanava da
tela.
Tremendo,
o rei buscou um lenço para cobrir a boca e o nariz, tentando se proteger da
representação aterradora diante dele. "Que pintura horrenda... O que isso
significa?" perguntou a si mesmo, confuso e aterrorizado.
"Sabe
o que acho curioso nisso tudo..." começou Phoebus, quebrando o silêncio
pesado com sua presença quase esquecida. "Não incluí nenhum sol neste
retrato... Não vi nenhuma luz emanando de vossa majestade, apesar de fazer
tanta questão de associar-se a esse astro tão luminoso no céu."
"Essa
pintura... Ela é uma falsidade," proclamou o rei, sua voz embargada por
repúdio ressoando através do Salão de Apolo em Versalhes.
"Mentira?
Veja bem, eu não me dedico a pintar falácias... Diferentemente de seus
artistas, devo salientar," retrucou o vampiro, esboçando um sorriso
irônico.
"O
que você está insinuando? Que eu sou o monstro retratado nesta obra? Que este
será o meu legado?" O monarca, visivelmente exasperado, confrontou
Phoebus. "Quem é você para me julgar? Você me associa à morte... mas é
sabido que sua espécie leva a morte por onde passa. Hipócrita. Esta é a sua
conclusão após seu julgamento? Eu sou um dos maiores governantes da França!
Minhas conquistas falam por si!"
Phoebus,
com um gesto descompromissado, limpou um de seus pincéis em um recipiente de
água, que gradualmente adquiriu uma tonalidade de vermelho intenso,
desprendendo um aroma metálico que lembrava sangue.
"Eu
fui encarregado de julgá-lo, e assim o fiz."
"E
o que isso significa? Exijo conhecer seu veredicto! Ordeno que..." A fala
do rei foi abruptamente interrompida por um golpe surpresa de Phoebus, que o
derrubou ao chão. O monarca, adornado em sua armadura de cavalaria para o
retrato, sentiu o metal amassar com o impacto. Ele tentou clamar por sua
guarda, mas seus olhos se fixaram no vampiro que agora se posicionava sobre seu
peito, exibindo um sorriso predatório.
"Sabe,
minha mãe não me enviou aqui, nem me incumbiu desta tarefa. Fui eu quem
solicitou essa missão, movido pela curiosidade. Desejava conhecer o homem que
se intitula Rei Sol. Eu tinha que encontrar aquele que leva o nome do astro que
mais venero... Sim, é de conhecimento comum que nós, vampiros, deveríamos temer
o sol. Que seus raios nos queimam, que ele representa a morte para nós. Mas eu,
eu amo o sol. Admiro o que ele simboliza, o que significa. E sempre fiz questão
de enaltecer a magnificência do nosso astro rei. Por isso, quando fui
transformado, escolhi o nome de Apolo, ou Phoebus. E ao chegar aqui, ao
testemunhar este salão e toda a sua construção ornada com ouro e representações
solares... Ah, como eu me deleitei e ao mesmo tempo desprezei! Como desejei
acabar com sua vida no instante em que o vi..."
O rei
observava a cena com terror refletido em seus olhos, sentindo uma dor aguda no
peito. O desejo pela imortalidade, suplicado à senhora dos mistérios, agora
parecia uma escolha precipitada ao trazer o vampiro para dentro dos muros de
seu palácio.
"Minha
mãe tem um apreço por coletar espécimes notáveis da humanidade, buscando
preservar certas linhagens," disse Phoebus, agora mais conhecido como
Apolo, com uma voz carregada de resignação. Seus olhos vermelhos se desviaram
para uma figura ao lado, enquanto gestos com a mão ainda manchada de tinta
sinalizavam para o servo de vestes aristocráticas se aproximar.
"Então,
você vai me transformar? Serei finalmente imortal?" perguntou o monarca,
um fio de esperança cortando o terror que sentia momentos antes.
"Você
reconhece este rapaz?" Apolo inquiriu, provocando no rei um olhar de
perplexidade. A presença do servo naquele diálogo crucial parecia deslocada.
"Eu
disse que ele não se lembraria..." murmurou o servo, baixando o olhar, o
que instigou ainda mais a curiosidade do rei. Ele deveria conhecer o jovem?
"Este
é Luís. Enviado como soldado para Flandres, atualmente sob ocupação francesa,
como bem sabe. Lá, mesmo adoentado, lutou para recuperar a estima de seu pai.
Eventualmente, foi ordenado que Luís se retirasse para Lille para recuperar sua
saúde... e lá ele deveria ter morrido aos 16 anos, não fosse por mim,"
Apolo desvendou a história com uma calma perturbadora.
"Luís..."
O nome ecoou nos lábios do rei, o mesmo de seu próprio nome.
"Luís
de Bourbon, ou Conde de Vermandois, título que você lhe concedeu após legitimar
seu filho bastardo..." o vampiro elucidou, lançando uma nova luz sobre o
jovem.
"Você...
o transformou?" A percepção do rei mudou ao notar as feições vampirescas
no rosto do jovem, os olhos de um vermelho profundo e os caninos pontiagudos
que se revelavam em um sorriso.
"Minha
mãe desejava alguém da linhagem real francesa em nossa família, mas nunca
especificou que precisava ser o rei..." Apolo revelou, imergindo o Rei Sol
em um abismo de desespero.
"Então,
é agora que você decide me matar? Como uma forma de vingança?" murmurou o
monarca, sua voz baixa vibrando com um misto de resignação e medo.
"E
por que eu desperdiçaria tal oportunidade?" respondeu o vampiro com uma
risada sarcástica. "Não, você vai viver... Viverá por muito tempo.
Assistirá aos seus filhos, seus herdeiros, desaparecerem diante de seus
olhos... Enquanto você, isolado pela eternidade de sua própria existência,
continuará aqui. Não como um imortal, não. Você envelhecerá, sofrerá como
qualquer ser humano e morrerá como o mortal que é... Longe de ser um
deus." As palavras do vampiro foram sussurradas diretamente no ouvido do
rei, carregando o peso de uma profecia sombria ou talvez apenas a cruel
realidade do futuro que o aguardava.
O
monarca ficou imóvel, consumido pela incerteza. Após essas palavras proféticas,
uma escuridão o envolveu completamente. Quando despertou, estava banhado pelos
raios solares que inundavam o salão, a luz do dia trazendo uma sensação de
calor que contrastava com o frio implacável que o dominava por dentro... E lá
estava a tela, seu retrato, colocado à sua frente, tão vivaz e perturbador como
o seu pior pesadelo.