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sábado, 20 de abril de 2024

A arte do julgamento

 



Os sussurros sobre a chegada de um novo artista à corte de Luís XIV em Versalhes corriam como brisas inquietas através dos corredores ornamentados e salões opulentos do palácio. Em uma era em que a majestade real patrocinava as ciências, as letras e as artes com uma liberalidade sem precedentes, cada novo rosto era um acréscimo à tapeçaria viva que tecia a glória do Rei Sol. Por trás dessa façanha cultural, havia um projeto ambicioso: a arte, meticulosamente orquestrada e oficialmente endossada, era o bastião da grandiosidade real, um instrumento de poder incontestável.

O Château de Versailles, uma vez um modesto pavilhão de caça herdado de Luís XIII, havia sido transformado sob o comando de Luís XIV em um ícone da monarquia absoluta francesa, um palácio deslumbrante que irradiava o esplendor do poder político. Com a orientação visionária de mestres como Louis Le Vau, Jules Hardouin-Mansart, Charles Le Brun e André Le Nôtre, o palácio e seus jardins passaram por expansões e embelezamentos sem igual, culminando em uma manifestação arquitetônica de luxo, ordem e harmonia.

A chegada do novo artista, no entanto, estava envolta em um manto de mistério. A escolha de recebê-lo sob o véu da noite gerava um misto de curiosidade e inquietação entre os habitantes do palácio. Em uma noite gélida de outono, o ar crispado pela expectativa, centenas de servos se reuniram à espera da carruagem que traria a mais recente adição à corte. À medida que a meia-noite se aproximava, uma carruagem modestamente iluminada surgiu ao longe, puxada por cavalos de aparência robusta e majestosa, cujos cascos ecoavam poderosamente contra o caminho de cascalho.

À medida que a carruagem avançava, os olhos do misterioso artista deveriam vislumbrar os jardins meticulosamente desenhados por André Le Nôtre, um espetáculo de engenhosidade humana e beleza natural. Esses jardins, um triunfo da simetria, ordem e beleza, estendiam-se diante do palácio como um testemunho vivo do controle absoluto do rei sobre a natureza.

Quando a carruagem finalmente se imobilizou diante do grandioso portal, um silêncio expectante pairou sobre a multidão de servos reunidos, cada um antecipando o momento de revelação. No entanto, antes que pudessem se adiantar para cumprir seu dever, uma figura imponente desceu não da cabine destinada aos passageiros, mas da posição do cocheiro. Vestido em um longo sobretudo de veludo negro, adornado com discretos detalhes em fio de ouro que capturavam a escassa luz noturna, o homem possuía uma estatura e presença que comandavam atenção imediata.

Seus olhos, de um amarelo profundo e quase dourado, brilhavam com um esplendor sinistro sob a noite enluarada, lançando um olhar que paralisou os servos com uma mistura de confusão e temor. A pele do homem, de um tom ébano rico e raro na corte francesa, sugeria uma origem distante, talvez das colônias francesas na África ou do Novo Mundo, conferindo-lhe um ar de exotismo e mistério.

Com um gesto autoritário, ele abriu a porta da carruagem, desvelando o aguardado artista de maneira dramática. Em Versalhes, onde o status e a linhagem eram tão críticos quanto o talento, a chegada de um artista raramente provocava tal cerimonial. No entanto, a comitiva reunida parecia suspender essas convenções, preparada para recepcionar a figura emergente com uma deferência quase nobre.

A surpresa se aprofundou quando, do interior da carruagem, um jovem de não mais de 18 anos fez sua aparição não com a cautela esperada, mas com um salto ágil e despreocupado, ignorando completamente a pequena escada e o banco meticulosamente posicionados para facilitar seu desembarque.

Sua pele, de um branco alabastro, contrastava vivamente com o dourado opulento que permeava o Palácio de Versalhes, uma palidez tão marcante que quase sugeria fragilidade, não fosse por sua expressão radiante e a vitalidade que seus gestos insinuavam. Os cabelos loiros, longos e despojadamente amarrados com uma fita de um verde vibrante, evocavam a luminosidade do verão, enquanto seus olhos azuis claros refletiam a serenidade de um céu sem nuvens.

Contrariando todas as expectativas da corte, sua vestimenta era um estudo de simplicidade e praticidade: uma camisa de algodão puro, calças de um verde sutil que caíam soltas sobre suas pernas e, mais chocante ainda, calçava sandálias, um desvio audacioso das botas e sapatos de fivela que dominavam os corredores de Versalhes. Essa escolha de indumentária não apenas desafiava as convenções da moda francesa, mas também se apresentava como um manifesto silencioso de sua origem e independência estrangeiras.

“Aqui é bem mais frio do que imaginei...” ele observou, dirigindo-se ao seu acompanhante de pele ébano, cuja expressão impassível não revelava resposta. A admiração, porém, era evidente em sua voz ao acrescentar, “Mas de fato é algo grande, como você tinha me dito.” Seu francês, embora impecável, carregava um sotaque exótico que confundia os ouvintes, uma melodia estrangeira que entrelaçava suas palavras com um charme misterioso.

Dirigindo-se a outro acompanhante, um jovem que parecia deslocado entre os servos, com seus cabelos negros e olhos escuros brilhando contra a pele pálida – vestido com a elegância da nobreza francesa, mas servindo humildemente ao pintor. A presença deste jovem, tão adequadamente vestido e, no entanto, agindo como um servo, adicionava uma camada de intriga à já fascinante chegada do artista.

O chefe dos servos da corte, um homem de estatura imponente e postura impecável, avançou com passos medidos em direção ao recém-chegado artista. Com uma reverência cuidadosa, ele anunciou: “Monsieur Phoebus Crepuscule, Sua Majestade o aguarda.”

A resposta de Phoebus, no entanto, desencadeou uma onda de choque entre os presentes. “Oh! Ele realmente permaneceu desperto à minha espera? Na correspondência, fiz questão de expressar que um encontro pela manhã seria de meu agrado. Seria possível postergar nossa audiência?” Sua indiferença causou um frisson de horror entre os servos e até entre os membros da guarda real, pois tal ousadia era inconcebível na presença do Rei Sol, cujas ordens eram inquestionáveis.

O jovem servo do artista, vestido com trajes que denotavam sua posição de nobreza, tocou discretamente a manga de algodão de Phoebus, buscando atrair sua atenção. “Creio...” começou ele, com um tom de hesitação, “que seria prudente atender ao chamado de Sua Majestade.”

Phoebus ponderou por um momento, acariciando seu queixo com uma expressão de reflexão profunda, enquanto o chefe dos servos mantinha-se em sua posição de respeito, aguardando a resposta do visitante audacioso. A insolência do jovem artista poderia facilmente resultar em um destino sombrio nas masmorras. O que havia de tão excepcional naquele estrangeiro?

“Está bem, encontrarei o rei. Afinal, é melhor resolvermos isso logo,” concluiu Phoebus, soltando uma risada despreocupada e segurando a mão do servo que lhe havia aconselhado, iniciando sua caminhada em direção ao encontro real. Eles eram seguidos de perto pelo imponente servo de olhos dourados, cuja presença silenciosa e intimidadora parecia emanar uma aura de desaprovação.

Enquanto Phoebus e sua comitiva adentravam o esplendor da corte de Luís XIV em Versalhes, eles atravessaram o magnífico Vestíbulo de Mármore. Este espaço imponente, com suas colunas robustas e o chão mosaico em mármore preto e branco, era um prelúdio da grandiosidade que se desdobraria diante deles. Os tetos, adornados com afrescos que exaltavam as vitórias e o governo de Luís XIV, eram complementados por bustos e esculturas de mármore que retratavam os monarcas franceses predecessores, criando uma ponte silenciosa entre o passado glorioso e o presente majestoso.

Ao prosseguir, encontraram-se na deslumbrante Galeria dos Espelhos, o coração pulsante de Versalhes. Este salão majestoso, alinhado com 357 espelhos que enfrentam as janelas opostas, captava a luz do sol durante o dia, criando uma aura dourada que agora, sob o manto da noite, transformava-se em um brilho suave e etéreo, graças à iluminação cuidadosamente planejada. Os afrescos no teto, obra-prima de Charles Le Brun, narravam as façanhas do reinado de Luís XIV.

Conforme avançavam, cada salão que atravessavam era dedicado a um deus ou planeta, reforçando a imposição da divindade do rei sobre seu domínio terreno. O Salão de Apolo, em particular, destacava-se não apenas como a sala do trono, onde Luís XIV orquestrava os assuntos do estado, mas também como um santuário para as artes, cercado por pinturas e esculturas que celebravam sua grandeza. Foi neste ponto que Phoebus, com sua curiosidade inata e despreocupação característica, fez uma pausa, contemplando o salão com um brilho de interesse em seus olhos.

"Salão de Apolo, hein? Isso é irônico, não acha?" comentou Phoebus, arrancando um olhar de urgência de seu companheiro, que o puxava suavemente, tentando incitar a continuidade de sua caminhada.

"Por favor, mantenha a voz baixa... O que pensarão os outros? Estamos aqui a serviço, não para suscitar escândalos," repreendeu o servo em um sussurro, um tom incomum para a relação entre mestre e serviçal. A tensão entre eles sugeria uma familiaridade que transcendia as convenções sociais, surpreendendo outros servos com a audácia da interação.

"Mas é Apolo! Não encontra humor na situação, Luís? Considerando as circunstâncias..." Phoebus continuou, com um sorriso que iluminava seu rosto, imperturbável pela repreensão.

Luís, o servo, corou levemente sob o escrutínio de seus companheiros e com um puxão mais firme, conduziu Phoebus adiante, um gesto que, embora apressado, carregava uma camada de cumplicidade e entendimento mútuo.

A comitiva de Phoebus avançou pelos corredores do Palácio de Versalhes, um labirinto de esplendor e grandeza, cujas paredes eram enfeitadas com tapeçarias ricas e obras de arte de valor inestimável. À medida que se aproximavam dos Aposentos Reais, o ambiente tornava-se ainda mais imponente, cada passo os levando mais perto da presença do monarca supremo.

Os aposentos do rei, estrategicamente posicionados para saudar o nascer do sol, serviam como o cenário perfeito para o encontro com Luís XIV. Com 45 anos, o Rei Sol emanava uma aura de majestade e autoridade indiscutíveis, uma encarnação viva do absolutismo monárquico e da grandiosidade barroca que marcava sua era. Rodeado pela opulência que ele mesmo ordenara criar, Luís XIV era o epicentro do poder, não apenas na França, mas em toda a Europa.

Vestido em trajes que exibiam a riqueza e o esmero de seu reinado, o rei trajava um casaco finamente bordado com fios dourados, adornado por pedras preciosas que capturavam a luz, criando um espetáculo visual. Uma camisa de linho branco, com rendas elaboradas, espreitava por debaixo do casaco, e uma capa real, talvez de um veludo azul profundo ou vermelho sangue, repousava sobre seus ombros, bordada com o símbolo do sol, em homenagem ao seu apelido. Seu cabelo, meticulosamente arrumado, e uma peruca encaracolada, seguindo a moda da nobreza, completavam sua aparência.

Ao entrar nos aposentos do rei, Phoebus, com sua habitual descontração, rompeu o silêncio reverencial. "Devo dizer que admiro o seu estilo e apreço pelas artes. O trajeto desde a entrada até aqui foi, indubitavelmente, uma experiência peculiar," disse, violando sem cerimônia as rígidas normas de etiqueta da corte. Em Versalhes, era esperado que os visitantes demonstrassem sua submissão e respeito ao rei através de uma reverência profunda, mantendo-se em silêncio a menos que fossem diretamente abordados pelo monarca.

A ousadia de Phoebus provocou um murmúrio de desaprovação entre cortesãos e guardas, muitos dos quais pareciam prontos para intervir. No entanto, Luís XIV, com um gesto tranquilo, silenciou os presentes e, para surpresa de todos, recebeu o comentário do artista com um sorriso.

"É com prazer que vejo Versalhes despertar um apreço artístico em vós, Monsieur Crepuscule," respondeu o rei, demonstrando uma tolerância e um interesse que desafiavam as expectativas.

"Vejo que fiz bem em aceitar o convite de minha mãe para este encontro. Parece ser algo que irá me entreter mais do que esperava," comentou Phoebus com um tom de voz relaxado "Falando nisso, creio que seria sensato discutirmos nosso assunto em particular, não concorda?" Sua sugestão, acompanhada de um gesto amplo e expressivo em direção à multidão que preenchia o aposento, destacou o quão público era aquele momento supostamente íntimo.

A sugestão de Phoebus para uma conversa privada com o Rei Sol poderia ser considerada audaciosa, até mesmo ultrajante, para os padrões da época. Apesar da importância já demonstrada pela recepção grandiosa concedida a ele e do fato de o próprio monarca não ter demonstrado ofensa perante suas maneiras pouco convencionais, havia limites para a indulgência. No entanto, a resposta de Luís XIV surpreendeu a todos mais uma vez.

"Está correto, Monsieur Crepuscule. O que temos a discutir é, de fato, bastante delicado. Prefiro que conversemos a sós," declarou o rei, sua voz ressoando com autoridade incontestável. Diante de tal ordem direta do soberano, nenhum dos cortesãos, servos ou guardas ousou objetar. Com reverências profundas, uma após a outra, as figuras que compunham a audiência real se retiraram do aposento, deixando o rei e o artista em uma privacidade que poucos poderiam reivindicar.

"Meus subordinados se retiraram, contudo, observo que os seus permanecem," comentou o rei, direcionando seu olhar primeiro para o alto servo de olhos dourados, cuja postura impassível e falta de reverência constituíam uma quebra das normas cortesãs, desafiando o monarca com um olhar direto. Em seguida, sua atenção desviou-se para o outro servo, cuja aparência e vestimentas refletiam a elegância imposta pela moda da corte, um contraste notável com a simplicidade do traje de seu mestre. Este servo mantinha o rosto baixo, possivelmente em reconhecimento da autoridade real que seu companheiro desdenhava.

"Diferente dos seus, meus acompanhantes estão inteiramente cientes do assunto que nos ocupa, eliminando qualquer motivo para preocupação," replicou Phoebus, com um sorriso que rasgava seu rosto, revelando caninos inusitadamente proeminentes.

"Quanto ao propósito de minha visita, venho por um pedido feito por minha mãe. Segundo entendi, vossa majestade deseja se juntar a nós... tornar-se um filho da noite. Irônico, considerando-se que você se denomina Rei Sol," provocou Phoebus, sua voz carregada de sarcasmo. A audácia de suas palavras forçou Luís XIV a controlar-se para não convocar a guarda real, consciente de que, frente à entidade sobrenatural diante dele, talvez nem seus mais valentes guerreiros fossem suficientes.

"Desejo a imortalidade," confessou o rei, esforçando-se para manter firmeza em sua voz. "Acredito ser merecedor, dada a magnitude de minhas conquistas, como deve ter observado."

"De fato, fui eu quem foi escolhido dentre todos os meus irmãos e irmãs por minha mãe para esta tarefa," disse Phoebus, esboçando um sorriso que fez o monarca sentir um arrepio inesperado. "E há mais uma razão. Você anunciou à sua corte que sou um artista, o que é verdade. Minha presença aqui não é mera desculpa ou justificativa para visitar Versalhes. Como artista, é por meio da minha arte que julgarei se você está apto a se juntar à nossa exclusiva linhagem. Pretendo pintar um retrato seu."

A proposta deixou o rei visivelmente surpreso. Embora não fosse estranho ser o sujeito de retratos, a ideia de ser avaliado por meio de um deles era inovadora e, de certa forma, desconcertante. "Como exatamente serei julgado por um retrato?" ponderou Luís XIV.

"Levarei dois dias para completar," continuou Phoebus, desviando seu olhar para a janela. A luz da lua, filtrando-se através dela, lançava uma luminosidade etérea sobre o ambiente.

"Dois dias? Isso parece impossível," murmurou o rei com ceticismo. Artistas de sua corte, como Hyacinthe Rigaud, conhecidos por seus retratos meticulosamente detalhados, dedicavam meses a uma única peça.

"Dois dias," reafirmou Phoebus, voltando seu olhar penetrante para o Rei Luís XIV. Seus olhos, anteriormente de um azul sereno, agora exibiam um tom vermelho sangue, instilando um frio visceral no soberano. "Em dois dias, concluirei seu retrato. Nos encontraremos todas as noites no salão que você denomina de Apolo. Após esse período, proferirei meu veredicto sobre seu desejo de se tornar um vampiro."

E assim, sob a promessa enigmática de Phoebus, o destino do Rei Sol foi irrevogavelmente selado.

 

o Rei Sol encontrava-se em um estado de tensão não provocado pelo peso das insígnias de seu poder ou pelo rigor das formalidades cortesãs, mas pela atmosfera enigmática que Phoebus, o vampiro artista, havia instaurado. Embora familiarizado com o tédio que poderia acompanhar as longas sessões de pose para retratos, a experiência atual distanciava-se radicalmente de qualquer coisa que o monarca tivesse vivenciado antes.

Posando em seu trono, Luís XIV estava adornado com suas vestes mais suntuosas, completas com as joias mais deslumbrantes e uma peruca impecavelmente estilizada, tudo meticulosamente escolhido para impressionar o artista de natureza sobrenatural. Contudo, o esplendor de sua aparência pouco contribuía para aliviar o peso da ansiedade que o dominava, uma tensão que emanava não das formalidades da corte, mas do próprio Phoebus e do clima sobrenatural que ele havia criado.

Phoebus, despido de convenções tanto quanto de sua camisa, trabalhava descalço sobre o piso frio do Salão de Apolo. Por sua ordem, o espaço fora isolado do resto do palácio, transformando-se em um ateliê privativo onde apenas as chamas trêmulas das velas rompiam a escuridão, projetando sombras dançantes nas paredes cobertas por tapeçarias históricas. As janelas estavam ocultas sob pesados tecidos, garantindo que nenhum olhar curioso perturbasse a sacralidade do processo criativo.

O rei observava, fascinado e apreensivo, enquanto Phoebus dançava em um transe artístico, suas mãos movendo-se com uma velocidade sobrenatural, alternando entre pincéis embebidos em uma tinta de propriedades mutáveis. A substância parecia viva, mudando de cor e textura ao capricho do vampiro, um fenômeno que cativava e aterrorizava Luís XIV em igual medida.

Os servos, movendo-se como sombras, traziam novas cores para alimentar a frenética criação do artista. E, nos momentos em que Phoebus mergulhava o pincel na paleta, seus olhos transformavam-se, adquirindo um brilho vermelho intenso, desprovido de qualquer vestígio de humanidade, enquanto presas ameaçadoras e sedutoras delineavam-se em seu sorriso.

Os dois dias, ou mais precisamente, duas noites, transcorreram de forma tão vertiginosa que o Rei Luís XIV chegou a questionar se estava imerso em algum tipo de sonho ou febre delirante. Ao término da segunda noite, conforme o vampiro artista havia predito, a obra estava completa.

"Inacreditável..." murmurou o rei, sua voz permeada por um misto de incredulidade e fascínio.

"Por favor, venha ver..." convidou Phoebus, gesto com as mãos manchadas de tinta em direção à tela ainda oculta da visão do monarca. Com passos apressados, impulsionados tanto pela curiosidade quanto pela ansiedade, Luís XIV aproximou-se para desvendar o mistério da pintura.

O que ele encontrou diante de seus olhos foi um choque, uma sensação de horror que permeou seu ser. A tela revelava sua figura sobre o trono, mas divergia radicalmente dos retratos anteriores, nos quais se via imbuído de uma superioridade quase divina. Ao contrário, o retrato apresentava um realismo grotesco: as rugas e imperfeições de sua pele eram visíveis, até mesmo ridicularizadas pelo uso excessivo de pó branco de arroz. Mas o elemento sobrenatural era ainda mais perturbador. O trono era retratado como se fosse construído de ossos, cercado por figuras doentes e famintas estendendo suas mãos em direção às suas vestes luxuosas. No fundo, cenas de guerras e cobradores de impostos agredindo camponeses e a classe trabalhadora para financiar conflitos e a própria construção de Versalhes, retratada como um palácio erguido sobre restos humanos.

A pintura pulsava com uma vida sinistra, exalando odores de podridão, carne, excrementos e sangue, uma aura palpável de morte e sofrimento que emanava da tela.

Tremendo, o rei buscou um lenço para cobrir a boca e o nariz, tentando se proteger da representação aterradora diante dele. "Que pintura horrenda... O que isso significa?" perguntou a si mesmo, confuso e aterrorizado.

"Sabe o que acho curioso nisso tudo..." começou Phoebus, quebrando o silêncio pesado com sua presença quase esquecida. "Não incluí nenhum sol neste retrato... Não vi nenhuma luz emanando de vossa majestade, apesar de fazer tanta questão de associar-se a esse astro tão luminoso no céu."

"Essa pintura... Ela é uma falsidade," proclamou o rei, sua voz embargada por repúdio ressoando através do Salão de Apolo em Versalhes.

"Mentira? Veja bem, eu não me dedico a pintar falácias... Diferentemente de seus artistas, devo salientar," retrucou o vampiro, esboçando um sorriso irônico.

"O que você está insinuando? Que eu sou o monstro retratado nesta obra? Que este será o meu legado?" O monarca, visivelmente exasperado, confrontou Phoebus. "Quem é você para me julgar? Você me associa à morte... mas é sabido que sua espécie leva a morte por onde passa. Hipócrita. Esta é a sua conclusão após seu julgamento? Eu sou um dos maiores governantes da França! Minhas conquistas falam por si!"

Phoebus, com um gesto descompromissado, limpou um de seus pincéis em um recipiente de água, que gradualmente adquiriu uma tonalidade de vermelho intenso, desprendendo um aroma metálico que lembrava sangue.

"Eu fui encarregado de julgá-lo, e assim o fiz."

"E o que isso significa? Exijo conhecer seu veredicto! Ordeno que..." A fala do rei foi abruptamente interrompida por um golpe surpresa de Phoebus, que o derrubou ao chão. O monarca, adornado em sua armadura de cavalaria para o retrato, sentiu o metal amassar com o impacto. Ele tentou clamar por sua guarda, mas seus olhos se fixaram no vampiro que agora se posicionava sobre seu peito, exibindo um sorriso predatório.

"Sabe, minha mãe não me enviou aqui, nem me incumbiu desta tarefa. Fui eu quem solicitou essa missão, movido pela curiosidade. Desejava conhecer o homem que se intitula Rei Sol. Eu tinha que encontrar aquele que leva o nome do astro que mais venero... Sim, é de conhecimento comum que nós, vampiros, deveríamos temer o sol. Que seus raios nos queimam, que ele representa a morte para nós. Mas eu, eu amo o sol. Admiro o que ele simboliza, o que significa. E sempre fiz questão de enaltecer a magnificência do nosso astro rei. Por isso, quando fui transformado, escolhi o nome de Apolo, ou Phoebus. E ao chegar aqui, ao testemunhar este salão e toda a sua construção ornada com ouro e representações solares... Ah, como eu me deleitei e ao mesmo tempo desprezei! Como desejei acabar com sua vida no instante em que o vi..."

O rei observava a cena com terror refletido em seus olhos, sentindo uma dor aguda no peito. O desejo pela imortalidade, suplicado à senhora dos mistérios, agora parecia uma escolha precipitada ao trazer o vampiro para dentro dos muros de seu palácio.

"Minha mãe tem um apreço por coletar espécimes notáveis da humanidade, buscando preservar certas linhagens," disse Phoebus, agora mais conhecido como Apolo, com uma voz carregada de resignação. Seus olhos vermelhos se desviaram para uma figura ao lado, enquanto gestos com a mão ainda manchada de tinta sinalizavam para o servo de vestes aristocráticas se aproximar.

"Então, você vai me transformar? Serei finalmente imortal?" perguntou o monarca, um fio de esperança cortando o terror que sentia momentos antes.

"Você reconhece este rapaz?" Apolo inquiriu, provocando no rei um olhar de perplexidade. A presença do servo naquele diálogo crucial parecia deslocada.

"Eu disse que ele não se lembraria..." murmurou o servo, baixando o olhar, o que instigou ainda mais a curiosidade do rei. Ele deveria conhecer o jovem?

"Este é Luís. Enviado como soldado para Flandres, atualmente sob ocupação francesa, como bem sabe. Lá, mesmo adoentado, lutou para recuperar a estima de seu pai. Eventualmente, foi ordenado que Luís se retirasse para Lille para recuperar sua saúde... e lá ele deveria ter morrido aos 16 anos, não fosse por mim," Apolo desvendou a história com uma calma perturbadora.

"Luís..." O nome ecoou nos lábios do rei, o mesmo de seu próprio nome.

"Luís de Bourbon, ou Conde de Vermandois, título que você lhe concedeu após legitimar seu filho bastardo..." o vampiro elucidou, lançando uma nova luz sobre o jovem.

"Você... o transformou?" A percepção do rei mudou ao notar as feições vampirescas no rosto do jovem, os olhos de um vermelho profundo e os caninos pontiagudos que se revelavam em um sorriso.

"Minha mãe desejava alguém da linhagem real francesa em nossa família, mas nunca especificou que precisava ser o rei..." Apolo revelou, imergindo o Rei Sol em um abismo de desespero.

"Então, é agora que você decide me matar? Como uma forma de vingança?" murmurou o monarca, sua voz baixa vibrando com um misto de resignação e medo.

"E por que eu desperdiçaria tal oportunidade?" respondeu o vampiro com uma risada sarcástica. "Não, você vai viver... Viverá por muito tempo. Assistirá aos seus filhos, seus herdeiros, desaparecerem diante de seus olhos... Enquanto você, isolado pela eternidade de sua própria existência, continuará aqui. Não como um imortal, não. Você envelhecerá, sofrerá como qualquer ser humano e morrerá como o mortal que é... Longe de ser um deus." As palavras do vampiro foram sussurradas diretamente no ouvido do rei, carregando o peso de uma profecia sombria ou talvez apenas a cruel realidade do futuro que o aguardava.

O monarca ficou imóvel, consumido pela incerteza. Após essas palavras proféticas, uma escuridão o envolveu completamente. Quando despertou, estava banhado pelos raios solares que inundavam o salão, a luz do dia trazendo uma sensação de calor que contrastava com o frio implacável que o dominava por dentro... E lá estava a tela, seu retrato, colocado à sua frente, tão vivaz e perturbador como o seu pior pesadelo.

A simpatia de São João

 


Ela arrumou uma pequena mesa em sua casa com cuidado e atenção aos detalhes. Cobriu-a com uma toalha limpa, delicadamente estampada com margaridas coloridas. Além disso, cuidadosamente arranjou os copos e talhares sob a mesa, criando uma mesa posta para duas pessoas. Na cabeceira, duas velas foram acesas, trazendo uma atmosfera acolhedora e romântica ao ambiente.

Com todo o carinho, ela começou a servir os pratos típicos nordestinos do período junino. As comidas juninas são uma verdadeira festa para os sentidos, repletas de sabores autênticos e ingredientes que remetem à tradição e cultura. Ela preparou uma seleção de iguarias irresistíveis, que proporcionam uma experiência gastronômica única. Entre os pratos, destacam-se a canjica, o arroz doce e a pamonha.

Tudo estava organizado com cuidado e precisão. Joana tinha feito tudo de acordo com o ritual. No entanto, ela não pretendia comer o que fora servido, nem estava esperando alguém. Na verdade, há muito tempo ela não tinha companhia. Com quase 40 anos, sentia a pressão social para encontrar o que chamam de "alma gêmea". A maioria de suas amigas estava casada, grávida ou já tinha filhos. E Joana? Era considerada a solteirona pela qual todos sentiam pena e fofocavam.

Mas hoje seria diferente. Era véspera de São João, uma data especial, e o momento ideal para colocar em prática uma antiga tradição de adivinhação. Segundo suas pesquisas e relatos das anciãs de sua família, quando Joana fosse dormir, ela teria um sonho revelador sobre o homem com quem iria se casar no futuro.

Tudo estava preparado e agora só restava que ela se deitasse para dormir. Ansiosa, Joana deitou-se na cama, aguardando o que seu sonho revelaria. Ela se lembrava de que era importante ter cuidado ao interpretar o sonho. Se ela aparecesse à mesa, compartilhando uma refeição ao lado do noivo, isso indicaria que se casaria. Apenas essa revelação já traria um certo alívio, renovando suas esperanças para o futuro de sua vida amorosa.

Deitada, Joana fixou o olhar no teto. A porta do quarto encontrava-se entreaberta, permitindo que a suave luz das velas na sala de estar projetasse sombras no teto. As sombras dançavam e ganhavam vida, formando figuras enigmáticas que pareciam contar histórias ocultas. Era como se um espetáculo misterioso se desenrolasse acima dela. Joana se questionava se poderia desvendar algum presságio a partir dessas figuras sombrias. Seriam elas mensageiras de seu futuro? Quando finalmente alcançaria o sono? E se a inquietude a mantivesse acordada? Seria esse um sinal de que nunca encontraria seu par, que o amor seria um destino negado?

Então, ela ouviu: o som dos talheres raspando nos pratos, o ruído dos copos sendo preenchidos com líquido, o arrastar das cadeiras. Joana sentiu seu coração acelerar. Será que alguém havia invadido sua casa? Isso só poderia demonstrar o quão azarada ela era.

No entanto, se fossem realmente ladrões, será que eles se dariam ao luxo de parar para comer o jantar cuidadosamente preparado por ela? Não seria mais provável que eles estivessem interessados em vasculhar a casa em busca de riquezas? Com essas dúvidas pairando em sua mente, Joana tomou coragem e decidiu se levantar, caminhando lentamente em direção à sala.

Havia de fato alguém sentado à mesa. No entanto, a iluminação, mesmo com as velas acesas, não era suficiente para identificar as feições ou a vestimenta da pessoa. Joana apenas sabia que se tratava de um homem.

Joana esperou para ouvir se havia mais alguém na residência, mas não ouviu nada. Aparentemente, só havia aquele homem, que se empanturrar com as oferendas preparadas por ela.

Agora, Joana sentia-se irritada. Ela tinha se esforçado muito para montar todo aquele cenário e não permitiria que tudo fosse destruído por um desconhecido mal-educado.

Determinada, ela se aproximou da mesa, fazendo as velas tremerem, o que tornou o ambiente ainda mais escuro e sinistro. No entanto, o homem parecia não notar a presença de Joana.

Ele comia vorazmente, parecendo um faminto desesperado. Utilizava tanto os talheres quanto as mãos, devorando a comida de forma quase animalesca. Joana podia ouvir claramente o som alto e intenso de sua mastigação, ecoando pela pequena sala. Cada mordida parecia ressoar de forma perturbadora, preenchendo o ambiente com um ruído desconcertante.

Enquanto isso, as velas tremiam e vibravam, mesmo sem a presença de qualquer corrente de ar. A chama dançava de maneira inquieta, lançando sombras sinistras pelas paredes.

"Quem é você?", exigiu Joana, determinada a descobrir a identidade do indivíduo. O sujeito parou abruptamente. Mesmo estando próximo, sua forma não se delineava nitidamente. Era como se fosse uma sombra, uma figura misteriosa que desafiava a compreensão lógica.

Além disso, algo estranho acontecia: vozes começaram a ecoar na escuridão. O som parecia surgir de todos os cantos da sala. As velas, apesar de fornecerem uma fraca iluminação à mesa, não ajudavam a dissipar a obscuridade que parecia ter se intensificado no restante do ambiente.

"Salve, Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!", entoaram as vozes roucas. Era como se estivessem cantando, mas de uma forma arrepiante e sinistra.

"A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas", as vozes ecoavam, agora em gemidos e choros. Eram sons horríveis, que penetravam os ouvidos de Joana como lâminas afiadas. Desesperada e aterrorizada, ela cobriu os ouvidos com as mãos, lutando contra a confusão que tomava conta de sua mente.

"Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei", as vozes prosseguiam com seu canto aterrorizante, envolvendo o ambiente em uma atmosfera sinistra.

Mesmo em meio ao caos e ao pavor, Joana conseguiu identificar. Aquela era a oração da Salve Rainha, a qual supostamente deveria ter recitado antes de dormir, como parte do ritual. Ela deveria entoar essa oração até um certo ponto... mas o ponto exato escapava de sua memória.

De repente, o homem misterioso soltou uma risada perturbadora. Era uma risada estranha, mais animalesca do que humana, ecoando pelo espaço com um tom enlouquecedor.

"Quem é você?", exigiu Joana, gritando para além das vozes, tentando se fazer ouvir acima do caos.

"Ora, Joana... você me chamou, não é mesmo? Essa refeição é para mim", falou o ser misterioso. O fogo das velas se intensificou, aumentando bruscamente a iluminação da mesa.

"E, depois deste desterro, nos mostrai..."

Enquanto as vozes continuavam seu cântico macabro, Joana finalmente pôde ver as feições daquele que estava sentado à sua mesa, desfrutando da comida que ela mesma havia preparado. Um grito de agonia escapou dos lábios de Joana.

Subitamente, as velas se apagaram, mergulhando a sala em total escuridão.



A loja

 


Cidade Alta, conhecida também pelo seu epíteto de Centro, ergue-se como o bairro primordial da vibrante cidade de Natal, orgulhosamente ostentando a honra de ser o primeiro a ser fundado na capital, numa data tão simbólica quanto o Natal de 1599. As ruas da Cidade Alta, pulsavam com vida comercial, eram bordadas por uma tapeçaria de lojas diversas, estendendo-se ao longo da majestosa Avenida Rio Branco e serpenteando pela Rua João Pessoa. Nas suas imediações, o passado e o presente se entrelaçam: lojas de variados tipos e prestigiosas instituições financeiras contam histórias de um tempo em que este era o coração incontestável do comércio natalense.

Contudo, como se presencia em muitos capítulos da história, a Cidade Alta hoje enfrenta uma maré de mudanças. A concorrência acirrada e a migração de clientes e comerciantes para os colossais shoppings centers da capital e para o resiliente bairro do Alecrim provocaram uma queda na sua atividade comercial outrora florescente. A pandemia de COVID-19, um golpe inesperado e avassalador, fechou as cortinas de muitos estabelecimentos, deixando nas ruas ecos de um passado mais próspero.

Neste cenário de lojas cerradas e ruas que murmuram memórias de dias mais movimentados, a missão de encontrar uma loja específica na Cidade Alta parecia, para ela, repleta de incongruências. Não era a visão das fachadas abandonadas que o inquietava; era algo mais sutil, escondido nas entrelinhas das instruções que recebera. Buscar a loja à noite, precisamente à meia-noite, e com a janela de uma única hora até o soar da 1h da madrugada, transformava a tarefa em algo quase místico. Era um jogo de esconde-esconde no véu da noite, onde o destino era uma loja misteriosa, escondida nas sombras próximas à Praça André de Albuquerque, um ponto de referência que parecia ser mais do que apenas um marco geográfico.

Ela caminhava pela praça com um terror sutil pulsando em suas veias, segurando firmemente o papel com instruções meticulosamente transcritas de uma conversa no WhatsApp — uma troca de mensagens com uma pessoa que conhecia apenas por intermédio de outra. Essa pessoa distante prometia ser a chave para desvendar e remediar os problemas que pesavam sobre ela.

A praça, o coração geodésico da cidade e seu marco zero, estava povoada por figuras que a sociedade muitas vezes opta por não enxergar. Mendigos e moradores de rua adornavam o cenário com suas presenças marcadas pelas adversidades da vida. Alguns vagueavam com um olhar perdido, capturados em seus próprios labirintos mentais. Outros, solitários, buscavam companhia na amargura de uma garrafa partilhada — uma garrafa de plástico que, enganosamente semelhante a um refrigerante, guardava um líquido incolor e alcoólico que prometia um esquecimento temporário. E ainda havia os que, entregues às sombras, se deixavam levar por vícios mais escuros.

Enquanto ela avançava, uma tremura sutil a acompanhava, e um rosário de pragas silenciosas tecia-se em sua mente. Ela questionava a própria sanidade por se encontrar ali, naquela situação, encarando o perigo potencial da noite e do desconhecido.

Ela murmurava palavras de encorajamento, uma ladainha para acalmar os batimentos descompassados de seu coração. "Mas vale a pena... se o que a loja oferecer for real, tudo valerá a pena." Era um sussurro leve, uma carícia na turbulência de sua inquietação.

A penumbra da noite era parcimoniosa, concedendo apenas vislumbres sob a luz frugal dos postes. Foi nessa atmosfera opaca que uma voz rouca rompeu o silêncio. "Olá, mocinha... Tá perdida, é?" Um vulto se aproximava, oscilando como uma chama ao vento. Ela mal podia discernir sua forma na escassa iluminação.

"Eu..." Ela recuou, a urgência de sua busca chocando-se com a cautela. Já era meia-noite, e cada minuto escorria como areia entre os dedos. "Eu estou à procura de algo..."

"Posso ajudar... com certeza posso..." A figura se aproximava, e o odor de álcool preenchia o ar, uma presença pungente. "Venha cá, deixe o Tio Chico ver você melhor. Não vou te machucar..."

“Você sabe onde fica a loja chamada... Arandu Pyharegua[1]?" As palavras escaparam apressadas de seus lábios, tropeçando apenas na pronúncia do nome, ainda incerto em sua língua.

O homem estacou como se tivesse sido atingido por um raio invisível. "Arandu... Você disse?" Sua voz era agora um sopro, e seu corpo, antes invasivo, recuava. "O que você quer com... isso?”

Determinada, ela sabia que não devia satisfações a ninguém. Por que deveria justificar a busca por uma loja enigmática, ausente do Google Maps e sem vestígios digitais como uma página no Instagram? Não estava ali para explicar suas razões a um estranho, para revelar por que seguia instruções que a maioria consideraria insanas, tudo para curar o que a afligia. Não, ela não tinha essa obrigação. Com firmeza, mas sem revelar sua ansiedade, ela perguntou:

"Então, você sabe onde fica a loja? Pode me dizer onde ela...?"

Antes que pudesse terminar a frase, o homem, como se tocado pelo sopro gelado do medo, virou-se e desapareceu na noite, deixando-a com uma mistura de confusão e frustração.

Eram trinta minutos após a meia-noite e o desespero começava a se entranhar em seu ânimo. Os vultos que antes povoavam a praça agora se esquivavam, recuando como se ela fosse portadora de alguma maldição invisível. Em meio a essa rejeição súbita e à crescente ansiedade, algo extraordinário aconteceu: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, um marco da praça, começou a se iluminar de dentro para fora.

A igreja, um monumento de tempos idos, exibia uma fachada que harmonizava a austeridade colonial com retoques de modernidade. As paredes eram dominadas pelo branco puro, em contraste com os detalhes amarelos que realçavam com delicadeza as janelas, cornijas e o frontão. Era uma construção sólida e digna, com janelas de pedra de molduras discretas e persianas de madeira, remanescentes da arquitetura eclesiástica do Brasil colonial.

À direita, a torre do sino se erguia, adornada com ondulações e volutas do barroco, terminando em um pináculo afilado. O relógio, que antes parecia congelado no tempo, agora girava com um ímpeto inusitado.

Ela protegeu os olhos com a mão, ofuscada pelo súbito brilho que emanava do templo, perplexa diante de um fenômeno que desafiava qualquer razão. Qual missa seria celebrada a tal hora? E ainda mais estranho era o fato de que as portas da igreja, apesar do espetáculo luminoso, continuavam intransigentemente fechadas.

"Mas... o que está acontecendo?" Ela murmurou para si mesma, já que os moradores de rua que anteriormente ocupavam a praça haviam desaparecido. Sim, não restava mais ninguém; a praça e as ruelas adjacentes estavam desoladoramente vazias.

De repente, outra fonte de luz cortou a escuridão, em contraponto à igreja, do outro lado da praça. Ali surgia o contorno de uma loja que não estava ali antes, com uma entrada convidativa que se abria diretamente para a calçada. Estava banhada em luz, quase ofuscante em sua intensidade. Ela tentava, em vão, discernir alguma característica distintiva daquela loja — um letreiro, um design peculiar, um logotipo — ou mesmo a cor de suas paredes e detalhes de sua vitrine. No entanto, uma voz interna, um sussurro intuitivo, a impelia em direção àquela luz, dizendo-lhe que era exatamente o lugar que procurava em sua missão.

Ela avançou, decidida, e cruzou o limiar da loja. O contraste era gritante: do lado de fora, a luz era tão intensa que quase a cegou, mas agora, adentrando o que parecia ser um estabelecimento comercial, ela foi engolida por uma escuridão quase tangível. A escuridão era tão completa que ela se viu obrigada a buscar refúgio na luz do celular, acionando a lanterna para dissipar as sombras que a rodeavam. A luminosidade que ainda emanava da igreja era inútil aqui; parecia haver uma barreira invisível que impedia que qualquer facho daquele brilho invadisse o interior da enigmática loja.

"Ô de casa? Alguém?" Sua voz soou frágil, tremendo na vastidão escura. Uma pontada de dúvida a assaltou, uma voz interna sussurrando que talvez fosse um erro ter vindo.

"Bem-vinda", sussurrou uma voz a seu lado, causando-lhe um sobressalto. Ela não havia percebido ninguém até então, mas agora vislumbrava uma figura: uma mulher de estatura baixa, com uma leve curvatura nos ombros que sinalizava uma idade avançada. Seus cabelos, longos e lisos, eram de um negro tão intenso que se confundiam com as sombras que os envolviam. Seus olhos, porém, eram um contraste vivo; brilhavam com uma luz própria, semelhante a brasas tenazes que se recusam a se apagar, remanescentes de uma fogueira de São João há muito esquecida.

"Fico feliz que tenha encontrado minha loja", continuou a mulher, sua voz possuía uma qualidade melódica e, ao mesmo tempo, carregava uma profundidade que parecia reverberar pelo espaço confinado. Era curioso, pois o local não parecia ter as dimensões necessárias para gerar ecos.

"Eu... S-sim... Eu também estou feliz", ela conseguiu responder, ainda parcialmente imobilizada pela surpresa. Por um instante, o impulso de fugir a dominou. Seus olhos desviaram-se brevemente para a porta, mas foram rapidamente atraídos de volta pelo som de palmas. A mulher estava aplaudindo, e a cada batida, a loja se iluminava mais, não pela ignição de lâmpadas, mas por velas que se acendiam magicamente, suas chamas dançando à vida sem a intervenção de um único fósforo.

Ela franziu o cenho, esfregando os olhos na tentativa de compreender a visão diante de si. Parecia estar em uma loja, ou melhor, em um espaço repleto de estantes abarrotadas com recipientes de todas as formas e matizes. Contudo, o conteúdo dos frascos permanecia um enigma; fosse pelo vidro embaçado ou pela camada de sujeira, era impossível discernir o que estava selado em seu interior.

"Então, qual é o seu desejo, Luana?" a mulher indagou, assumindo seu posto atrás de um balcão, onde começou a esfregar um dos recipientes com um pano que mais parecia contribuir para a sujeira do que para a limpeza.

"Como você sabe o meu nome?" ela perguntou, alarmada, apegando-se ao seu celular como um talismã.

"Isso importa? Você veio até aqui, à meia-noite, em busca de uma loja que só abre neste horário... Não é o momento para se preocupar com tais detalhes, filha," respondeu a proprietária, sem levantar o olhar para sua cliente.

"Eu... Bem... Me disseram que você pode resolver problemas. Realizar desejos. Curar doenças," disse ela, com a voz desvanecendo quase em um sussurro nas últimas palavras.

"Então, te informaram corretamente," a mulher replicou, interrompendo a fricção em um frasco para começar em outro, com a mesma atenção meticulosa.

"Eu..." Ela umedecia os lábios, reunindo coragem para articular as palavras que carregava consigo, pesadas como pedras no coração. "Estou morrendo... Recebi um prognóstico com poucos meses de vida. Por isso, vim até aqui, na esperança de que você pudesse me curar."

"Ah, eu percebi o odor pútrido da morte assim que você cruzou a soleira. Eles estavam certos sobre você, parece. Às vezes cometem erros... Fazem a previsão de morte e o fim não vem. Mas no seu caso, a previsão foi acertada," disse a dona da loja, sua voz desprovida de qualquer traço de compaixão, o que fez o semblante de Luana perder ainda mais a cor ante suas palavras.

"Você pode me curar?" Luana insistiu, sua voz tremulava, embargada pela emoção que lutava para conter.

A mulher finalmente a encarou, e mesmo com a loja agora iluminada pelo fogo místico das velas, o brilho em seus olhos continuava a arder intensamente. "Há um preço a ser pago. Não sei se já te informaram sobre isso," ela declarou. Nesse instante, o som de batidas ressoou da igreja, cujas portas permaneciam inabalavelmente fechadas. Luana sentiu um arrepio de temor.

"Bem... Não me disseram nada," ela admitiu, uma corrente gelada parecendo escorrer ao longo de sua espinha.

“Eu tenho algum dinheiro guardado na conta corrente e na poupança..." ela começou, já estendendo a mão em direção à bolsa para buscar o cartão de crédito. No fundo, questionava-se se aquela figura enigmática aceitaria um pagamento via Pix, embora a loja tivesse um ar tão ancestral que parecia improvável que houvesse ali uma máquina de cartão.

"Basta um nome," disse a mulher, esboçando um sorriso onde o branco dos dentes reluzia. "O nome de uma criança que você conheça."

"Uma criança?" Luana exclamou, o medo súbito cristalizando-se em sua voz.

"Como você, eu padeço de uma condição... incurável," a dona da loja confessou, retomando a tarefa de limpar um recipiente, este notavelmente maior e, para o desconforto de Luana, visivelmente ocupado por um líquido de tom rubro-escuro. "Para aliviar meus sintomas, preciso consumir certas... partes do corpo humano."

Com um gesto tranquilo, ela destampou o recipiente, e um odor fétido, misturado com o cheiro metálico do sangue, invadiu o ar. As batidas vindas da porta da igreja intensificaram-se, ecoando pela praça com um ritmo quase desesperado.

Luana levou a mão à boca, nauseada pela revelação.

"Fígados," continuou a mulher, imperturbável diante do horror de Luana. "Mas não de qualquer um — apenas fígados infantis servem ao meu propósito." Ela falava com um interesse mórbido, vertendo o líquido escuro em um copo sujo, os lábios umedecidos pela antecipação do banquete macabro.

"Fígados..." Luana ecoou em um sussurro, sua voz quase se perdendo no ar carregado da loja.

"Sim, fígados. Mas sua anuência é essencial," disse a mulher, saboreando o líquido do copo com uma avidez que deixou Luana estática. Ela se sentia estranhamente ancorada ao chão, as pernas pesadas como chumbo, a saída da loja uma miragem distante.

"Não posso prosseguir sem o seu consentimento. São as regras do meu... tratamento," continuou a mulher, limpando a boca manchada de vermelho com um dos panos encardidos sobre o balcão. "E não se iluda pensando que minha própria enfermidade me impede de curar a sua. O mal que me aflige não tem nexo com as doenças dos mortais. Por isso, fique tranquila... Você pode ser curada. O custo, no entanto, é o nome de uma criança que você conheça. Apenas isso."

Os segundos se arrastavam enquanto Luana ponderava sua escolha. A mulher havia desviado o olhar, ocupada novamente em limpar outro recipiente. Luana reparou, com um arrepio, que cada frasco na loja continha o mesmo líquido vermelho-escuro que ela havia visto ser derramado no copo. Como não percebera isso antes? Seriam todos provenientes de fígados? A situação era tão surreal... Talvez fosse apenas um delírio, uma alucinação provocada pelo tumor que os médicos alertaram que poderia acontecer.

Se tudo não passasse de um sonho ou um pesadelo, qual seria o problema em dizer um nome? Não seria real. Poderia ser o filho da sua irmã, o bebê do seu primo, as gêmeas da vizinha, o filho do seu chefe... Ou até aquelas crianças anônimas do condomínio, cujos nomes e famílias eram desconhecidos. Qualquer um deles serviria, não é verdade?

Contudo, a questão moral se impunha: era justo fazer tal troca? Consentir com isso? Ela ansiava por mais tempo de vida, por experiências ainda não vividas, por sonhos não realizados — e ter filhos era um deles.

O retumbar das batidas da igreja amplificava-se, ecoando em um ritmo que parecia imitar as aceleradas batidas de seu coração.

"E então? Qual será sua decisão? A meia-noite não dura para sempre," pressionou a proprietária da loja, a impaciência tingindo sua voz. "E devo alertá-la que não estou sempre aqui. Minha loja se move, sou chamada para outros lugares, outros estados..."

As palavras da mulher se misturavam à cacofonia de dúvidas que inundavam a mente de Luana. O constante bater que vinha da igreja não lhe concedia um momento de paz para ponderar. Era uma chance única...

Com os lábios secos, Luana passou a língua por eles. Abriu a boca. E então, ela falou.

No exato momento em que sua voz se projetou, o sino da igreja soou, um som poderoso que vibrava pelas paredes e preenchia o espaço. Estranhamente, as badaladas pareciam entrelaçar-se com sons que lembravam o choro de crianças.

 



[1] Arandu pyharegua em guarani significa Sabedoria da Noite.

 


Entre a Chuva e o Sol

  "Você tem certeza de que ela é realmente competente?" "Sim, pelo menos é o que dizem...", seu assessor lhe infor...