sábado, 20 de abril de 2024

A arte do julgamento

 



Os sussurros sobre a chegada de um novo artista à corte de Luís XIV em Versalhes corriam como brisas inquietas através dos corredores ornamentados e salões opulentos do palácio. Em uma era em que a majestade real patrocinava as ciências, as letras e as artes com uma liberalidade sem precedentes, cada novo rosto era um acréscimo à tapeçaria viva que tecia a glória do Rei Sol. Por trás dessa façanha cultural, havia um projeto ambicioso: a arte, meticulosamente orquestrada e oficialmente endossada, era o bastião da grandiosidade real, um instrumento de poder incontestável.

O Château de Versailles, uma vez um modesto pavilhão de caça herdado de Luís XIII, havia sido transformado sob o comando de Luís XIV em um ícone da monarquia absoluta francesa, um palácio deslumbrante que irradiava o esplendor do poder político. Com a orientação visionária de mestres como Louis Le Vau, Jules Hardouin-Mansart, Charles Le Brun e André Le Nôtre, o palácio e seus jardins passaram por expansões e embelezamentos sem igual, culminando em uma manifestação arquitetônica de luxo, ordem e harmonia.

A chegada do novo artista, no entanto, estava envolta em um manto de mistério. A escolha de recebê-lo sob o véu da noite gerava um misto de curiosidade e inquietação entre os habitantes do palácio. Em uma noite gélida de outono, o ar crispado pela expectativa, centenas de servos se reuniram à espera da carruagem que traria a mais recente adição à corte. À medida que a meia-noite se aproximava, uma carruagem modestamente iluminada surgiu ao longe, puxada por cavalos de aparência robusta e majestosa, cujos cascos ecoavam poderosamente contra o caminho de cascalho.

À medida que a carruagem avançava, os olhos do misterioso artista deveriam vislumbrar os jardins meticulosamente desenhados por André Le Nôtre, um espetáculo de engenhosidade humana e beleza natural. Esses jardins, um triunfo da simetria, ordem e beleza, estendiam-se diante do palácio como um testemunho vivo do controle absoluto do rei sobre a natureza.

Quando a carruagem finalmente se imobilizou diante do grandioso portal, um silêncio expectante pairou sobre a multidão de servos reunidos, cada um antecipando o momento de revelação. No entanto, antes que pudessem se adiantar para cumprir seu dever, uma figura imponente desceu não da cabine destinada aos passageiros, mas da posição do cocheiro. Vestido em um longo sobretudo de veludo negro, adornado com discretos detalhes em fio de ouro que capturavam a escassa luz noturna, o homem possuía uma estatura e presença que comandavam atenção imediata.

Seus olhos, de um amarelo profundo e quase dourado, brilhavam com um esplendor sinistro sob a noite enluarada, lançando um olhar que paralisou os servos com uma mistura de confusão e temor. A pele do homem, de um tom ébano rico e raro na corte francesa, sugeria uma origem distante, talvez das colônias francesas na África ou do Novo Mundo, conferindo-lhe um ar de exotismo e mistério.

Com um gesto autoritário, ele abriu a porta da carruagem, desvelando o aguardado artista de maneira dramática. Em Versalhes, onde o status e a linhagem eram tão críticos quanto o talento, a chegada de um artista raramente provocava tal cerimonial. No entanto, a comitiva reunida parecia suspender essas convenções, preparada para recepcionar a figura emergente com uma deferência quase nobre.

A surpresa se aprofundou quando, do interior da carruagem, um jovem de não mais de 18 anos fez sua aparição não com a cautela esperada, mas com um salto ágil e despreocupado, ignorando completamente a pequena escada e o banco meticulosamente posicionados para facilitar seu desembarque.

Sua pele, de um branco alabastro, contrastava vivamente com o dourado opulento que permeava o Palácio de Versalhes, uma palidez tão marcante que quase sugeria fragilidade, não fosse por sua expressão radiante e a vitalidade que seus gestos insinuavam. Os cabelos loiros, longos e despojadamente amarrados com uma fita de um verde vibrante, evocavam a luminosidade do verão, enquanto seus olhos azuis claros refletiam a serenidade de um céu sem nuvens.

Contrariando todas as expectativas da corte, sua vestimenta era um estudo de simplicidade e praticidade: uma camisa de algodão puro, calças de um verde sutil que caíam soltas sobre suas pernas e, mais chocante ainda, calçava sandálias, um desvio audacioso das botas e sapatos de fivela que dominavam os corredores de Versalhes. Essa escolha de indumentária não apenas desafiava as convenções da moda francesa, mas também se apresentava como um manifesto silencioso de sua origem e independência estrangeiras.

“Aqui é bem mais frio do que imaginei...” ele observou, dirigindo-se ao seu acompanhante de pele ébano, cuja expressão impassível não revelava resposta. A admiração, porém, era evidente em sua voz ao acrescentar, “Mas de fato é algo grande, como você tinha me dito.” Seu francês, embora impecável, carregava um sotaque exótico que confundia os ouvintes, uma melodia estrangeira que entrelaçava suas palavras com um charme misterioso.

Dirigindo-se a outro acompanhante, um jovem que parecia deslocado entre os servos, com seus cabelos negros e olhos escuros brilhando contra a pele pálida – vestido com a elegância da nobreza francesa, mas servindo humildemente ao pintor. A presença deste jovem, tão adequadamente vestido e, no entanto, agindo como um servo, adicionava uma camada de intriga à já fascinante chegada do artista.

O chefe dos servos da corte, um homem de estatura imponente e postura impecável, avançou com passos medidos em direção ao recém-chegado artista. Com uma reverência cuidadosa, ele anunciou: “Monsieur Phoebus Crepuscule, Sua Majestade o aguarda.”

A resposta de Phoebus, no entanto, desencadeou uma onda de choque entre os presentes. “Oh! Ele realmente permaneceu desperto à minha espera? Na correspondência, fiz questão de expressar que um encontro pela manhã seria de meu agrado. Seria possível postergar nossa audiência?” Sua indiferença causou um frisson de horror entre os servos e até entre os membros da guarda real, pois tal ousadia era inconcebível na presença do Rei Sol, cujas ordens eram inquestionáveis.

O jovem servo do artista, vestido com trajes que denotavam sua posição de nobreza, tocou discretamente a manga de algodão de Phoebus, buscando atrair sua atenção. “Creio...” começou ele, com um tom de hesitação, “que seria prudente atender ao chamado de Sua Majestade.”

Phoebus ponderou por um momento, acariciando seu queixo com uma expressão de reflexão profunda, enquanto o chefe dos servos mantinha-se em sua posição de respeito, aguardando a resposta do visitante audacioso. A insolência do jovem artista poderia facilmente resultar em um destino sombrio nas masmorras. O que havia de tão excepcional naquele estrangeiro?

“Está bem, encontrarei o rei. Afinal, é melhor resolvermos isso logo,” concluiu Phoebus, soltando uma risada despreocupada e segurando a mão do servo que lhe havia aconselhado, iniciando sua caminhada em direção ao encontro real. Eles eram seguidos de perto pelo imponente servo de olhos dourados, cuja presença silenciosa e intimidadora parecia emanar uma aura de desaprovação.

Enquanto Phoebus e sua comitiva adentravam o esplendor da corte de Luís XIV em Versalhes, eles atravessaram o magnífico Vestíbulo de Mármore. Este espaço imponente, com suas colunas robustas e o chão mosaico em mármore preto e branco, era um prelúdio da grandiosidade que se desdobraria diante deles. Os tetos, adornados com afrescos que exaltavam as vitórias e o governo de Luís XIV, eram complementados por bustos e esculturas de mármore que retratavam os monarcas franceses predecessores, criando uma ponte silenciosa entre o passado glorioso e o presente majestoso.

Ao prosseguir, encontraram-se na deslumbrante Galeria dos Espelhos, o coração pulsante de Versalhes. Este salão majestoso, alinhado com 357 espelhos que enfrentam as janelas opostas, captava a luz do sol durante o dia, criando uma aura dourada que agora, sob o manto da noite, transformava-se em um brilho suave e etéreo, graças à iluminação cuidadosamente planejada. Os afrescos no teto, obra-prima de Charles Le Brun, narravam as façanhas do reinado de Luís XIV.

Conforme avançavam, cada salão que atravessavam era dedicado a um deus ou planeta, reforçando a imposição da divindade do rei sobre seu domínio terreno. O Salão de Apolo, em particular, destacava-se não apenas como a sala do trono, onde Luís XIV orquestrava os assuntos do estado, mas também como um santuário para as artes, cercado por pinturas e esculturas que celebravam sua grandeza. Foi neste ponto que Phoebus, com sua curiosidade inata e despreocupação característica, fez uma pausa, contemplando o salão com um brilho de interesse em seus olhos.

"Salão de Apolo, hein? Isso é irônico, não acha?" comentou Phoebus, arrancando um olhar de urgência de seu companheiro, que o puxava suavemente, tentando incitar a continuidade de sua caminhada.

"Por favor, mantenha a voz baixa... O que pensarão os outros? Estamos aqui a serviço, não para suscitar escândalos," repreendeu o servo em um sussurro, um tom incomum para a relação entre mestre e serviçal. A tensão entre eles sugeria uma familiaridade que transcendia as convenções sociais, surpreendendo outros servos com a audácia da interação.

"Mas é Apolo! Não encontra humor na situação, Luís? Considerando as circunstâncias..." Phoebus continuou, com um sorriso que iluminava seu rosto, imperturbável pela repreensão.

Luís, o servo, corou levemente sob o escrutínio de seus companheiros e com um puxão mais firme, conduziu Phoebus adiante, um gesto que, embora apressado, carregava uma camada de cumplicidade e entendimento mútuo.

A comitiva de Phoebus avançou pelos corredores do Palácio de Versalhes, um labirinto de esplendor e grandeza, cujas paredes eram enfeitadas com tapeçarias ricas e obras de arte de valor inestimável. À medida que se aproximavam dos Aposentos Reais, o ambiente tornava-se ainda mais imponente, cada passo os levando mais perto da presença do monarca supremo.

Os aposentos do rei, estrategicamente posicionados para saudar o nascer do sol, serviam como o cenário perfeito para o encontro com Luís XIV. Com 45 anos, o Rei Sol emanava uma aura de majestade e autoridade indiscutíveis, uma encarnação viva do absolutismo monárquico e da grandiosidade barroca que marcava sua era. Rodeado pela opulência que ele mesmo ordenara criar, Luís XIV era o epicentro do poder, não apenas na França, mas em toda a Europa.

Vestido em trajes que exibiam a riqueza e o esmero de seu reinado, o rei trajava um casaco finamente bordado com fios dourados, adornado por pedras preciosas que capturavam a luz, criando um espetáculo visual. Uma camisa de linho branco, com rendas elaboradas, espreitava por debaixo do casaco, e uma capa real, talvez de um veludo azul profundo ou vermelho sangue, repousava sobre seus ombros, bordada com o símbolo do sol, em homenagem ao seu apelido. Seu cabelo, meticulosamente arrumado, e uma peruca encaracolada, seguindo a moda da nobreza, completavam sua aparência.

Ao entrar nos aposentos do rei, Phoebus, com sua habitual descontração, rompeu o silêncio reverencial. "Devo dizer que admiro o seu estilo e apreço pelas artes. O trajeto desde a entrada até aqui foi, indubitavelmente, uma experiência peculiar," disse, violando sem cerimônia as rígidas normas de etiqueta da corte. Em Versalhes, era esperado que os visitantes demonstrassem sua submissão e respeito ao rei através de uma reverência profunda, mantendo-se em silêncio a menos que fossem diretamente abordados pelo monarca.

A ousadia de Phoebus provocou um murmúrio de desaprovação entre cortesãos e guardas, muitos dos quais pareciam prontos para intervir. No entanto, Luís XIV, com um gesto tranquilo, silenciou os presentes e, para surpresa de todos, recebeu o comentário do artista com um sorriso.

"É com prazer que vejo Versalhes despertar um apreço artístico em vós, Monsieur Crepuscule," respondeu o rei, demonstrando uma tolerância e um interesse que desafiavam as expectativas.

"Vejo que fiz bem em aceitar o convite de minha mãe para este encontro. Parece ser algo que irá me entreter mais do que esperava," comentou Phoebus com um tom de voz relaxado "Falando nisso, creio que seria sensato discutirmos nosso assunto em particular, não concorda?" Sua sugestão, acompanhada de um gesto amplo e expressivo em direção à multidão que preenchia o aposento, destacou o quão público era aquele momento supostamente íntimo.

A sugestão de Phoebus para uma conversa privada com o Rei Sol poderia ser considerada audaciosa, até mesmo ultrajante, para os padrões da época. Apesar da importância já demonstrada pela recepção grandiosa concedida a ele e do fato de o próprio monarca não ter demonstrado ofensa perante suas maneiras pouco convencionais, havia limites para a indulgência. No entanto, a resposta de Luís XIV surpreendeu a todos mais uma vez.

"Está correto, Monsieur Crepuscule. O que temos a discutir é, de fato, bastante delicado. Prefiro que conversemos a sós," declarou o rei, sua voz ressoando com autoridade incontestável. Diante de tal ordem direta do soberano, nenhum dos cortesãos, servos ou guardas ousou objetar. Com reverências profundas, uma após a outra, as figuras que compunham a audiência real se retiraram do aposento, deixando o rei e o artista em uma privacidade que poucos poderiam reivindicar.

"Meus subordinados se retiraram, contudo, observo que os seus permanecem," comentou o rei, direcionando seu olhar primeiro para o alto servo de olhos dourados, cuja postura impassível e falta de reverência constituíam uma quebra das normas cortesãs, desafiando o monarca com um olhar direto. Em seguida, sua atenção desviou-se para o outro servo, cuja aparência e vestimentas refletiam a elegância imposta pela moda da corte, um contraste notável com a simplicidade do traje de seu mestre. Este servo mantinha o rosto baixo, possivelmente em reconhecimento da autoridade real que seu companheiro desdenhava.

"Diferente dos seus, meus acompanhantes estão inteiramente cientes do assunto que nos ocupa, eliminando qualquer motivo para preocupação," replicou Phoebus, com um sorriso que rasgava seu rosto, revelando caninos inusitadamente proeminentes.

"Quanto ao propósito de minha visita, venho por um pedido feito por minha mãe. Segundo entendi, vossa majestade deseja se juntar a nós... tornar-se um filho da noite. Irônico, considerando-se que você se denomina Rei Sol," provocou Phoebus, sua voz carregada de sarcasmo. A audácia de suas palavras forçou Luís XIV a controlar-se para não convocar a guarda real, consciente de que, frente à entidade sobrenatural diante dele, talvez nem seus mais valentes guerreiros fossem suficientes.

"Desejo a imortalidade," confessou o rei, esforçando-se para manter firmeza em sua voz. "Acredito ser merecedor, dada a magnitude de minhas conquistas, como deve ter observado."

"De fato, fui eu quem foi escolhido dentre todos os meus irmãos e irmãs por minha mãe para esta tarefa," disse Phoebus, esboçando um sorriso que fez o monarca sentir um arrepio inesperado. "E há mais uma razão. Você anunciou à sua corte que sou um artista, o que é verdade. Minha presença aqui não é mera desculpa ou justificativa para visitar Versalhes. Como artista, é por meio da minha arte que julgarei se você está apto a se juntar à nossa exclusiva linhagem. Pretendo pintar um retrato seu."

A proposta deixou o rei visivelmente surpreso. Embora não fosse estranho ser o sujeito de retratos, a ideia de ser avaliado por meio de um deles era inovadora e, de certa forma, desconcertante. "Como exatamente serei julgado por um retrato?" ponderou Luís XIV.

"Levarei dois dias para completar," continuou Phoebus, desviando seu olhar para a janela. A luz da lua, filtrando-se através dela, lançava uma luminosidade etérea sobre o ambiente.

"Dois dias? Isso parece impossível," murmurou o rei com ceticismo. Artistas de sua corte, como Hyacinthe Rigaud, conhecidos por seus retratos meticulosamente detalhados, dedicavam meses a uma única peça.

"Dois dias," reafirmou Phoebus, voltando seu olhar penetrante para o Rei Luís XIV. Seus olhos, anteriormente de um azul sereno, agora exibiam um tom vermelho sangue, instilando um frio visceral no soberano. "Em dois dias, concluirei seu retrato. Nos encontraremos todas as noites no salão que você denomina de Apolo. Após esse período, proferirei meu veredicto sobre seu desejo de se tornar um vampiro."

E assim, sob a promessa enigmática de Phoebus, o destino do Rei Sol foi irrevogavelmente selado.

 

o Rei Sol encontrava-se em um estado de tensão não provocado pelo peso das insígnias de seu poder ou pelo rigor das formalidades cortesãs, mas pela atmosfera enigmática que Phoebus, o vampiro artista, havia instaurado. Embora familiarizado com o tédio que poderia acompanhar as longas sessões de pose para retratos, a experiência atual distanciava-se radicalmente de qualquer coisa que o monarca tivesse vivenciado antes.

Posando em seu trono, Luís XIV estava adornado com suas vestes mais suntuosas, completas com as joias mais deslumbrantes e uma peruca impecavelmente estilizada, tudo meticulosamente escolhido para impressionar o artista de natureza sobrenatural. Contudo, o esplendor de sua aparência pouco contribuía para aliviar o peso da ansiedade que o dominava, uma tensão que emanava não das formalidades da corte, mas do próprio Phoebus e do clima sobrenatural que ele havia criado.

Phoebus, despido de convenções tanto quanto de sua camisa, trabalhava descalço sobre o piso frio do Salão de Apolo. Por sua ordem, o espaço fora isolado do resto do palácio, transformando-se em um ateliê privativo onde apenas as chamas trêmulas das velas rompiam a escuridão, projetando sombras dançantes nas paredes cobertas por tapeçarias históricas. As janelas estavam ocultas sob pesados tecidos, garantindo que nenhum olhar curioso perturbasse a sacralidade do processo criativo.

O rei observava, fascinado e apreensivo, enquanto Phoebus dançava em um transe artístico, suas mãos movendo-se com uma velocidade sobrenatural, alternando entre pincéis embebidos em uma tinta de propriedades mutáveis. A substância parecia viva, mudando de cor e textura ao capricho do vampiro, um fenômeno que cativava e aterrorizava Luís XIV em igual medida.

Os servos, movendo-se como sombras, traziam novas cores para alimentar a frenética criação do artista. E, nos momentos em que Phoebus mergulhava o pincel na paleta, seus olhos transformavam-se, adquirindo um brilho vermelho intenso, desprovido de qualquer vestígio de humanidade, enquanto presas ameaçadoras e sedutoras delineavam-se em seu sorriso.

Os dois dias, ou mais precisamente, duas noites, transcorreram de forma tão vertiginosa que o Rei Luís XIV chegou a questionar se estava imerso em algum tipo de sonho ou febre delirante. Ao término da segunda noite, conforme o vampiro artista havia predito, a obra estava completa.

"Inacreditável..." murmurou o rei, sua voz permeada por um misto de incredulidade e fascínio.

"Por favor, venha ver..." convidou Phoebus, gesto com as mãos manchadas de tinta em direção à tela ainda oculta da visão do monarca. Com passos apressados, impulsionados tanto pela curiosidade quanto pela ansiedade, Luís XIV aproximou-se para desvendar o mistério da pintura.

O que ele encontrou diante de seus olhos foi um choque, uma sensação de horror que permeou seu ser. A tela revelava sua figura sobre o trono, mas divergia radicalmente dos retratos anteriores, nos quais se via imbuído de uma superioridade quase divina. Ao contrário, o retrato apresentava um realismo grotesco: as rugas e imperfeições de sua pele eram visíveis, até mesmo ridicularizadas pelo uso excessivo de pó branco de arroz. Mas o elemento sobrenatural era ainda mais perturbador. O trono era retratado como se fosse construído de ossos, cercado por figuras doentes e famintas estendendo suas mãos em direção às suas vestes luxuosas. No fundo, cenas de guerras e cobradores de impostos agredindo camponeses e a classe trabalhadora para financiar conflitos e a própria construção de Versalhes, retratada como um palácio erguido sobre restos humanos.

A pintura pulsava com uma vida sinistra, exalando odores de podridão, carne, excrementos e sangue, uma aura palpável de morte e sofrimento que emanava da tela.

Tremendo, o rei buscou um lenço para cobrir a boca e o nariz, tentando se proteger da representação aterradora diante dele. "Que pintura horrenda... O que isso significa?" perguntou a si mesmo, confuso e aterrorizado.

"Sabe o que acho curioso nisso tudo..." começou Phoebus, quebrando o silêncio pesado com sua presença quase esquecida. "Não incluí nenhum sol neste retrato... Não vi nenhuma luz emanando de vossa majestade, apesar de fazer tanta questão de associar-se a esse astro tão luminoso no céu."

"Essa pintura... Ela é uma falsidade," proclamou o rei, sua voz embargada por repúdio ressoando através do Salão de Apolo em Versalhes.

"Mentira? Veja bem, eu não me dedico a pintar falácias... Diferentemente de seus artistas, devo salientar," retrucou o vampiro, esboçando um sorriso irônico.

"O que você está insinuando? Que eu sou o monstro retratado nesta obra? Que este será o meu legado?" O monarca, visivelmente exasperado, confrontou Phoebus. "Quem é você para me julgar? Você me associa à morte... mas é sabido que sua espécie leva a morte por onde passa. Hipócrita. Esta é a sua conclusão após seu julgamento? Eu sou um dos maiores governantes da França! Minhas conquistas falam por si!"

Phoebus, com um gesto descompromissado, limpou um de seus pincéis em um recipiente de água, que gradualmente adquiriu uma tonalidade de vermelho intenso, desprendendo um aroma metálico que lembrava sangue.

"Eu fui encarregado de julgá-lo, e assim o fiz."

"E o que isso significa? Exijo conhecer seu veredicto! Ordeno que..." A fala do rei foi abruptamente interrompida por um golpe surpresa de Phoebus, que o derrubou ao chão. O monarca, adornado em sua armadura de cavalaria para o retrato, sentiu o metal amassar com o impacto. Ele tentou clamar por sua guarda, mas seus olhos se fixaram no vampiro que agora se posicionava sobre seu peito, exibindo um sorriso predatório.

"Sabe, minha mãe não me enviou aqui, nem me incumbiu desta tarefa. Fui eu quem solicitou essa missão, movido pela curiosidade. Desejava conhecer o homem que se intitula Rei Sol. Eu tinha que encontrar aquele que leva o nome do astro que mais venero... Sim, é de conhecimento comum que nós, vampiros, deveríamos temer o sol. Que seus raios nos queimam, que ele representa a morte para nós. Mas eu, eu amo o sol. Admiro o que ele simboliza, o que significa. E sempre fiz questão de enaltecer a magnificência do nosso astro rei. Por isso, quando fui transformado, escolhi o nome de Apolo, ou Phoebus. E ao chegar aqui, ao testemunhar este salão e toda a sua construção ornada com ouro e representações solares... Ah, como eu me deleitei e ao mesmo tempo desprezei! Como desejei acabar com sua vida no instante em que o vi..."

O rei observava a cena com terror refletido em seus olhos, sentindo uma dor aguda no peito. O desejo pela imortalidade, suplicado à senhora dos mistérios, agora parecia uma escolha precipitada ao trazer o vampiro para dentro dos muros de seu palácio.

"Minha mãe tem um apreço por coletar espécimes notáveis da humanidade, buscando preservar certas linhagens," disse Phoebus, agora mais conhecido como Apolo, com uma voz carregada de resignação. Seus olhos vermelhos se desviaram para uma figura ao lado, enquanto gestos com a mão ainda manchada de tinta sinalizavam para o servo de vestes aristocráticas se aproximar.

"Então, você vai me transformar? Serei finalmente imortal?" perguntou o monarca, um fio de esperança cortando o terror que sentia momentos antes.

"Você reconhece este rapaz?" Apolo inquiriu, provocando no rei um olhar de perplexidade. A presença do servo naquele diálogo crucial parecia deslocada.

"Eu disse que ele não se lembraria..." murmurou o servo, baixando o olhar, o que instigou ainda mais a curiosidade do rei. Ele deveria conhecer o jovem?

"Este é Luís. Enviado como soldado para Flandres, atualmente sob ocupação francesa, como bem sabe. Lá, mesmo adoentado, lutou para recuperar a estima de seu pai. Eventualmente, foi ordenado que Luís se retirasse para Lille para recuperar sua saúde... e lá ele deveria ter morrido aos 16 anos, não fosse por mim," Apolo desvendou a história com uma calma perturbadora.

"Luís..." O nome ecoou nos lábios do rei, o mesmo de seu próprio nome.

"Luís de Bourbon, ou Conde de Vermandois, título que você lhe concedeu após legitimar seu filho bastardo..." o vampiro elucidou, lançando uma nova luz sobre o jovem.

"Você... o transformou?" A percepção do rei mudou ao notar as feições vampirescas no rosto do jovem, os olhos de um vermelho profundo e os caninos pontiagudos que se revelavam em um sorriso.

"Minha mãe desejava alguém da linhagem real francesa em nossa família, mas nunca especificou que precisava ser o rei..." Apolo revelou, imergindo o Rei Sol em um abismo de desespero.

"Então, é agora que você decide me matar? Como uma forma de vingança?" murmurou o monarca, sua voz baixa vibrando com um misto de resignação e medo.

"E por que eu desperdiçaria tal oportunidade?" respondeu o vampiro com uma risada sarcástica. "Não, você vai viver... Viverá por muito tempo. Assistirá aos seus filhos, seus herdeiros, desaparecerem diante de seus olhos... Enquanto você, isolado pela eternidade de sua própria existência, continuará aqui. Não como um imortal, não. Você envelhecerá, sofrerá como qualquer ser humano e morrerá como o mortal que é... Longe de ser um deus." As palavras do vampiro foram sussurradas diretamente no ouvido do rei, carregando o peso de uma profecia sombria ou talvez apenas a cruel realidade do futuro que o aguardava.

O monarca ficou imóvel, consumido pela incerteza. Após essas palavras proféticas, uma escuridão o envolveu completamente. Quando despertou, estava banhado pelos raios solares que inundavam o salão, a luz do dia trazendo uma sensação de calor que contrastava com o frio implacável que o dominava por dentro... E lá estava a tela, seu retrato, colocado à sua frente, tão vivaz e perturbador como o seu pior pesadelo.

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