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terça-feira, 30 de abril de 2024

O levantar dos mortos vivos

 


Quando minha senha foi exibida no grande telão, indicando o guichê número 3, o cansaço acumulado pela longa espera dissipou-se no momento em que vi a recepcionista. Era uma visão e tanto, mas não por motivos convencionais. Não, não era porque ela fosse particularmente bonita, embora pudesse ter sido em vida. O que eu tinha à minha frente era o cadáver de uma mulher jovem, talvez na casa dos vinte anos, com cabelos loiros quase platinados — quiçá efeito da decomposição. Seus olhos castanhos eram opacos, e a pele, um cinza pálido.

Ela me sorriu — e surpreendentemente ainda possuía todos os dentes, bem conservados, sem sinais de putrefação. Talvez fosse por isso que antigamente se fazia análise dental para identificar os mortos. Hoje, porém, bastava perguntar diretamente a eles. Desde o evento macabro em que os mortos começaram a sair de seus túmulos, vê-los andando pelas ruas, fazendo compras e até dirigindo não era mais tão chocante. Contudo, encontrá-los exercendo funções que antes eram ocupadas apenas por vivos ainda me deixava perplexo.

"Você é a senha número 60, não é mesmo? Atendimento normal, não preferencial? Para consulta?" ela disparou uma sequência de perguntas, às quais apenas assenti com a cabeça. Com sua mão esquelética — era possível ver partes dos ossos expostos aqui e ali —, ela me indicou para que me sentasse. Obedeci automaticamente.

"Trouxe sua carteirinha do plano? E a carteira de identidade?" perguntou a recepcionista, enquanto seus dedos esguios e pálidos dançavam sobre o teclado do computador com uma agilidade surpreendente para sua aparência desgastada.

"Trouxe sim," respondi, retirando as carteiras do plano de saúde e de identidade da minha bolsa e entregando-as a ela, tentando cautelosamente evitar contato com sua mão fria e cinzenta.

"Sempre acho isso engraçado, sabe?" ela comentou, apontando para a carteira do plano com suas longas unhas, que pareciam mais frágeis do que letais.

"Engraçado?" perguntei, franzindo o cenho em confusão.

"Sim. Lembro que em vida me desdobrava para pagar isso. Recordo a burocracia para ter uma cirurgia autorizada... Acabei pagando do meu próprio bolso e pensei em pedir reembolso depois. Foi terrível! E não, não foi por essa cirurgia que morri, se é o que você está pensando. Morri afogada, durante as férias; muita bebida e uma idiota necessidade de tomar um banho noturno na praia," explicou ela, com uma expressão sombria em seu rosto decomposto, enquanto digitava e escaneava documentos. Enquanto falava, notei que um de seus dedos se desprendeu, caindo silenciosamente sobre o balcão. Com uma destreza surpreendente, ela rapidamente o recolocou no lugar, continuando sua tarefa como se nada tivesse acontecido.

"Oh..." disse, embora não estivesse de fato curioso sobre a causa de sua morte. "Mas agora você não precisa pagar um plano, o que é bom," comentei, incerto.

"Você acha mesmo que eles vão deixar de lucrar com outro mercado consumidor que está surgindo, ou emergindo dos túmulos, se posso dizer assim?" ela riu, sua risada vibrante, mas um pouco rouca, quem sabe por que as cordas vocais não estivessem funcionando tão bem.

"Temos um plano especial para nós," ela revelou, entregando a carteira do meu plano para mim e retirando algo do bolso do seu blazer. Era um cartão magnético, muito semelhante ao meu, mas de coloração preta e com um símbolo de caveira. As letras douradas diziam "Plano de Saúde Necro".

"Mantendo os mortos vivos bem cuidados," li em voz alta, erguendo as sobrancelhas.

"Pois é, o lema parece meio cringe, mas eles fazem isso mesmo... Embalsamamentos regulares, restauração de tecidos, substituição de partes..."

"Substituição..." murmurei, ainda surpreso com aquelas informações.

"Olha só..." Ela apontou para a orelha onde um grande brinco em forma de libélula estava pendurado. "Perdi minha orelha original mês passado, então há um banco de partes... e ganhei uma nova. Você nem percebe, né?"

"Er... Pois é!" respondi, mas ao observar melhor a orelha, notei que a cor era de um tom de cinza diferente, e agora que ela mencionava, era possível ver marcas tênues de costura onde o tecido havia sido implantado.

"Bem, a consulta..." comecei, tentando retornar ao motivo de estar ali.

"Oh! Sim, claro... Quase esqueci. O tempo parece passar mais devagar para nós, os mortos, sabe? Sem sentir fome, frio ou sono... Às vezes, as coisas parecem se desenrolar em câmera lenta!" ela riu novamente e eu forcei um sorriso. Não sabia bem como responder a isso, mas não me parecia uma vida, ou melhor, uma morte, assim tão divertida.

"Você pode ir. O consultório é o número 5, no fim do corredor!" disse ela com um sorriso. Enquanto falava, outro recepcionista, que também percebi ser um morto-vivo, passou por trás dela carregando pastas de documentos. Era um homem muito magro, quase esquelético — e isso poderia ser interpretado literalmente. Ele arrastava a perna enquanto caminhava, de modo que esbarrou na cadeira da recepcionista com quem eu conversava. Esse movimento fez com que um dos seus olhos saltasse para fora.

"Droga, Frank! Já pedi para tomar mais cuidado por onde anda!" ela reclamou, colocando rapidamente o olho de volta no lugar. Frank apenas emitiu um grunhido, que interpretei como um pedido de desculpas.

Eu me levantei e me afastei rapidamente, rumo ao consultório. De fato, as coisas haviam mudado muito desde que os mortos-vivos passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Mas eu ainda estava me acostumando a vê-los trabalhando... Digo, eles estão mortos, não deveriam estar aproveitando uma espécie de aposentadoria? Mas, pelo visto, o governo não concordou em deixar essa grande massa de cadáveres andando por aí sem pagar impostos...

"Consultório 5..." murmurei enquanto percorria um corredor mal iluminado à procura do consultório mencionado. Encontrei a porta com um grande número 5 ao centro. Bati e ouvi uma voz que ecoava de seu interior, soando distante e estranhamente etérea. Quando entrei, levei um grande susto.

"Oh! Senhor Cabral, como vai? Veio para fazer seu check-up anual?" A voz familiar soou através da sala, vindo do meu médico habitual. Ele costumava ser um homem de estatura mediana, meio careca e com uma figura levemente arredondada, sempre vestido em sua impecável bata branca. Porém, naquele momento, sua aparência era extraordinariamente peculiar: ele se materializava diante de mim como uma figura quase translúcida. Embora seus traços distintos e seu sorriso acolhedor ainda estivessem lá, seu corpo parecia composto mais de memórias do que de matéria, oscilando entre o visível e o invisível, como se estivesse suspensa entre dois mundos. A luz do consultório passava suavemente através de sua forma espectral, destacando o contorno nebuloso onde deveria estar seu corpo físico.

"Você morreu?" perguntei, quase gritando, enquanto tentava controlar as batidas do meu coração.

"Deu para perceber, não é?" ele riu, sua risada ecoando pelo estreito consultório. "Pois bem, morri alguns meses atrás. Infelizmente, sou do grupo seleto de mortos-vivos sem corpo, um espírito, se posso dizer assim. Mas não se preocupe, ainda posso exercer minha profissão!"

"Q-que bom..." disse, forçando uma risada.

"Confesso que demorei um pouco para aprender a manipular objetos... Mas, uma vez que você compreende a lógica do ectoplasma e da materialização, tudo se torna mais fácil!" Para provar isso, ele pegou o estetoscópio que estava sobre a mesa, colocou-o em si mesmo, ajustando os auriculares sobre suas orelhas translúcidas. "Agora, vamos começar nossa consulta, sim?"

Assenti, receoso, mas ao final, deveria me acostumar com esses novos tempos em que vida e morte se tornaram uma só.


sábado, 27 de abril de 2024

Caldeirão das Pizzas

 



A bola de cristal no balcão começou a iluminar-se e a piscar ritmicamente, lançando reflexos prismáticos pelas paredes enegrecidas do estabelecimento. De um canto sombrio, emergiu uma figura esguia e ágil. Com dedos longos e finos, nariz pontiagudo e orelhas alongadas, ela se destacava na penumbra. A criatura vestia uma camiseta desbotada com o logo de uma banda de rock, e seus cabelos arrepiados tingidos de um roxo vibrante balançavam ao correr. Chegando ao balcão, rapidamente posicionou uma escadinha de madeira escura e subiu com agilidade, ficando ao nível da esfera cintilante. Com um toque de seu dedo indicador, a bola brilhou intensamente, revelando uma figura diminuta em seu interior.

"Boa noite, aqui é o Caldeirão das Pizzas, qual seria o seu pedido?" anunciou a criatura, com uma voz esganiçada que soava quase robótica, fruto da repetição constante dessa saudação.

"Oi..." respondeu a figurinha, claramente projetada dentro da bola, "Estou organizando uma festa aqui em casa, um Sabbat [1]com as amigas..."

"Sim, sim," interrompeu a funcionária, demonstrando uma impaciência comedida, "Qual será o pedido?"

"Qual é a promoção de hoje?" perguntou a cliente, sua voz ecoando ligeiramente através da bola de cristal.

"Hoje é sábado, então temos o especial das bruxas," explicou a funcionária, olhando para um folheto ao lado da bola de cristal. "Com a compra de uma pizza gigante da Floresta Encantada, você ganha uma pizza média de Fogo das Bruxas."

"Sem refrigerante?" indagou a cliente.

"Não, o refrigerante não está incluído na promoção," respondeu a funcionária em um tom monótono.

"Pois bem, acho que vou querer... Espera, o que exatamente é esse sabor Fogo das Bruxas?"

"É uma pizza coberta com queijo derretido infundido com pó de rubi e faíscas de pimenta infernal. Cada mordida solta pequenas labaredas encantadas," informou automaticamente a funcionária.

"Labaredas? Isso parece perigoso!" exclamou a cliente, levando a mão ao rosto. A bola de cristal, mostrando apenas uma miniatura da cliente, não permitia ver bem sua expressão, mas era evidente que ela estava assustada.

"Não se preocupe, as chamas não são tão grandes assim... Não chegam nem a acionar o alarme de incêndio," garantiu a funcionária.

"Pois bem, vou querer a promoção.

"Você prefere retirar na loja ou deseja delivery?" perguntou a funcionária, com um leve eco em sua voz, amplificado pelas paredes de pedra cobertas de musgo da pizzaria.

"Delivery, por favor. Vocês entregam via dragão, ou..." hesitou a cliente, uma nota de esperança em sua voz.

"Nossas opções hoje incluem uma bruxa que voa em vassoura e um vampiro que entrega em sua forma de morcego. Nosso dragão está de folga, mas garantimos entregas rápidas e seguras," explicou a funcionária.

"Então está bem, quero delivery mesmo."

"Qual o endereço?"

"Esquina da Poção com a Vassoura, Edifício Encantado, apartamento número 7. Fica perto do cemitério central."

"Certo..." A funcionária anotou o endereço em um pergaminho antigo. Uma caneta mágica dançava sobre o papel sob o olhar relaxado da criatura. "O Caldeirão das Pizzas agradece seu pedido e sua preferência, até logo."

Com um toque suave na bola de cristal, a imagem do cliente desapareceu antes mesmo de poder dizer adeus.

"Sai uma promoção!" gritou a funcionária, estalando os dedos. O pergaminho enrolou-se sozinho e flutuou em direção à cozinha. Em seguida, ela se apoiou no balcão e retirou do bolso uma mini bola de cristal, na qual começou a assistir vídeos de goblins[2] e trolls[3] realizando danças coreografadas. A bola projetava as imagens em uma nuvem tridimensional acima dela, e ela ria, completamente entretida pelas travessuras das criaturas.

~**~

"Cheire isso aqui..." sugeriu o alquimista e pizzaiolo, um jovem alto com cabelos multicoloridos que brilhavam sob a luz fraca do estabelecimento. Vestindo uma camiseta regata e um avental com a frase "faço maldições, logo existo", ele estendeu um pequeno recipiente para sua assistente. Ela, uma feiticeira de estatura média, com cabelos negros como a mais profunda noite e um vestido roxo brilhante, hesitou antes de aproximar-se. Enquanto abria a massa da próxima pizza, sua expressão era mista entre curiosidade e cautela.

"O que é isso?" perguntou ela, antes de arriscar uma inalação do pó esbranquiçado e cinzento contido no recipiente. Já tinha aprendido que cheirar ou provar algo que seu chefe lhe entregava poderia ser arriscado, lembrando-se do incidente em que se transformou em sapo.

"São ossos moídos! Estou preparando a pizza de Lich[4], preciso saber se ainda estão bons," explicou ele, verificando a textura do pó entre seus dedos.

"São ossos de mortos, acho que a validade é a última coisa com que devemos nos preocupar," respondeu ela, espiando a pizza mencionada, que estava coberta com queijo envelhecido em catacumbas.

"E o molho especial de almas? Não está faltando?"

"Estou preparando," ela apontou para uma panela onde uma substância esbranquiçada e translúcida fervia. De tempos em tempos, pequenos gritos fantasmagóricos escapavam da mistura, enchendo o ar com um eco sobrenatural.

"Promoção saindo!" gritou alguém da recepção, e logo um pergaminho encantado veio flutuando, prendendo-se num quadro à frente dos pizzaiolos, onde outros pedidos já pendiam de forma organizada.

"Espero que ela não tenha desligado a bola de cristal na cara do cliente outra vez..." murmurou o alquimista com um suspiro resignado, lembrando-se das reclamações e das avaliações negativas que a pizzaria vinha recebendo nos aplicativos e sites. Curiosamente, as críticas raramente mencionavam a qualidade da comida, focando-se mais nos deslizes no atendimento.

"Você poderia demiti-la," sugeriu a feiticeira, esboçando um sorriso enquanto pegava um grande pote repleto de fungos mágicos luminescentes, destinados à pizza Floresta Encantada.

"Não posso! Você sabe disso... Ela é sobrinha da minha cunhada. Disseram que ela precisava de um emprego para se estabilizar na vida, depois de terminar a escola de duendes."

"Então, vamos ter que aguentar as avaliações ruins," concluiu a feiticeira com uma expressão conformada.

"Bem, vamos compensar isso fazendo as melhores pizzas!" exclamou o alquimista, tentando injetar um tom otimista na conversa. Colocando luvas protetoras, ele se dirigiu a um pote de barro posicionado perto da fornalha, onde as pizzas eram assadas. Ao abrir o pote, uma onda de calor infernal invadiu a apertada cozinha. Com movimentos ágeis, ele retirou uma das cobiçadas pimentas infernais e rapidamente a jogou em uma tigela cheia de gelo. O choque térmico causou um vapor espesso que se espalhou pelo ambiente, adicionando um toque dramático à preparação da famosa pizza Fogo das Bruxas.

~**~

Aqui está uma versão revisada e aprimorada do texto, com descrições mais detalhadas do ambiente, das ações e dos novos personagens:

O som de pequenas explosões e faíscas emergia da extremidade de uma vassoura flutuante, onde normalmente estariam as cerdas.

"Está com algum defeito no escapamento?" perguntou um jovem pálido com marcas de acne no rosto, vestindo roupas escuras enquanto saboreava uma lata de refrigerante de sangue tipo O.

"Não... é só uma troca de óleo para lubrificar as cerdas. Antes eu usava óleo de intestino de lagartixa, mas desta vez optei por algo mais econômico, com óleo de formiga de fogo..." explicou a bruxa ruiva, vestida com roupas de motoqueira, incluindo couro, calças justas e botas de cano alto. Ela coçava a cabeça, nervosa, enquanto observava sua vassoura ainda emitindo explosões e faíscas.

"É o que dá querer economizar," comentou o vampiro. "Eu nunca faço isso."

"E você nem precisa, só se transforma em morcego!" contra-atacou a bruxa, enquanto o outro rapaz apenas sorria, exibindo caninos afiados.

"Saindo os pedidos!" exclamou uma duende funcionária, equilibrando várias caixas quadradas de pizza enquanto abria a porta do beco lateral da pizzaria, onde os entregadores se reuniam. Ela segurava as caixas com uma mão e uma mini bola de cristal com a outra, distraída assistindo a um vídeo de uma elfa aplicando maquiagem e contando histórias de terror sobre caçadores humanos de criaturas mágicas. Absorta, tropeçou nas próprias pernas, lançando as caixas pelo ar.

Rapidamente, a bruxa sacou sua varinha e congelou as caixas em plena queda.

"Francamente, preste atenção!" repreendeu.

A duende não respondeu, apenas estalou os dedos, fazendo com que pergaminhos com os endereços voassem em direção ao vampiro e à bruxa. Ao fazer isso, voltou para o interior da loja sem sequer dizer desculpas.

"Que garota irritante!" resmungou a bruxa, arrumando os pedidos e amarrando as pizzas em um suporte em sua vassoura. Enquanto isso, o vampiro descartou sua lata vazia e transformou-se em um grande morcego, segurando as pizzas com as patas.

"Cuidado, ela é parente do chefe da pizzaria! E ainda por cima, é só uma adolescente!"

"Aborrecente, isso sim!" disse a bruxa, montando em sua vassoura e acelerando em alta velocidade, deixando um rastro de faíscas e explosões.

O morcego logo a seguiu, voando de maneira mais silenciosa sobre o céu noturno e estrelado da cidade.



[1] O termo "Sabbat" refere-se a uma reunião festiva de bruxas e, às vezes, outros praticantes de magia, celebrada principalmente em datas específicas que marcam a mudança das estações e outros eventos astronômicos importantes. Essas celebrações estão enraizadas em tradições pagãs e neopagãs, como o Wicca, e são momentos para rituais, feitiçaria, e fortalecimento de laços comunitários. O Sabbat pode envolver danças, cantos, feitiços e a conexão com a natureza, celebrando a continuidade da vida e os ciclos da Terra.

[2] Goblins são criaturas pequenas e astutas comumente encontradas no folclore europeu e em muitas histórias de fantasia moderna. Eles são frequentemente retratados como sendo maliciosos ou travessos, com uma aparência grotesca e comportamento imprevisível. Nos contos de fadas e mitos, goblins podem ser tanto benignos quanto malevolentes, às vezes causando problemas para os humanos ou guardando tesouros escondidos. Em muitas narrativas, eles são habilidosos em artesanato e magia, sendo capazes de criar poções mágicas e artefatos encantados.

[3] Trolls são criaturas mitológicas originárias da mitologia nórdica e escandinava, famosas por sua força bruta e uma aparência muitas vezes intimidadora. Em várias histórias, eles vivem em cavernas ou montanhas e são conhecidos por sua aversão à luz do sol, que pode transformá-los em pedra. Na literatura e cinema modernos, os trolls podem variar bastante em termos de personalidade e intelecto, desde seres terríveis e perigosos até personagens mais cômicos e menos ameaçadores.

[4] Um Lich é um tipo de morto-vivo encontrado em muitas tradições de fantasia, conhecido principalmente por sua poderosa magia e a capacidade de manter a imortalidade através de encantamentos necromânticos. Um Lich era originalmente um mago ou feiticeiro que usou feitiços proibidos para vincular sua alma a um objeto conhecido como "filactério". Enquanto este objeto permanecer intacto, o Lich pode regenerar seu corpo, tornando-o quase impossível de ser destruído. Liches são frequentemente retratados como antagonistas em histórias de aventura e magia, sendo temidos por sua magia negra e sede de poder.

sábado, 20 de abril de 2024

Fangtastic Celebrations

 


As folhas começavam a se desprender da majestosa árvore em frente à casa de Kyle Wilson, um ritual anual que marcava o início do outono. Através da janela panorâmica de seu quarto, ele observava a tapeçaria natural se transformar; as folhas abandonavam o vibrante verde da primavera e do verão para assumir tonalidades de um avermelhado profundo, âmbar reluzente e marrom terroso.

Enquanto a natureza seguia seu curso inevitável, Kyle notava seus pais dando vida ao jardim com decorações de Halloween: caveiras, fantasmas e outras figuras feitas de papelão ou plástico. Os objetos pareciam antiquados, desgastados não por algum truque de design, mas pela realidade do tempo; esses enfeites haviam sido usados e reusados ao longo de anos pela família Wilson.

O cenário era, em si, um pedaço palpável de nostalgia, um vislumbre de outonos passados que aquecia o coração. No entanto, uma onda de ansiedade varria o estômago de Kyle, enchendo-o de um desconforto indefinível. Ele se lembrava de que, exatamente naquele período do ano anterior, havia deixado a universidade e voltado para a casa dos pais, após abandonar o curso de Direito. Agora, cada folha que caía, cada enfeite que surgia no jardim, servia como um lembrete irritante, um alarme silencioso, de que um ano inteiro havia passado desde que tomara aquela decisão transformadora.

"O que vou fazer agora?" Kyle se perguntava em voz alta. A questão havia se repetido em sua mente durante todos esses meses, mas naquele dia em particular, o peso da indagação se tornava insuportavelmente mais pesado, mais desesperador. Foi nesse exato instante que seu celular irrompeu com um toque estridente. O som era a música tema do filme "Psicose," e fez seu coração saltar. Resmungando, Kyle atendeu o telefone, percebendo que seus pais haviam mudado o toque do aparelho, sem sua permissão, para entrar no espírito do Halloween.

"Sim?" Ele respondeu, sem conseguir ocultar a frustração em sua voz.

"Kyle? Liguei em um mau momento? Você já está sofrendo com uma dor de estômago por excesso de doces?" Uma voz familiar indagou.

"Tia Mary?" Ele franziu o cenho. Era raro receber uma ligação dela; na verdade, nem sabia que ela tinha seu número de telefone. Tia Mary era o tipo de pessoa que aparecia de surpresa à sua porta, trazendo presentes estranhos e histórias ainda mais peculiares. Sua mãe, irmã de Mary, a descrevia como um espírito livre, descrição com a qual Kyle concordava plenamente.

"Quem mais seria? Não reconhece mais a sua tia favorita?"

Um sorriso se formou nos lábios de Kyle, trazendo um leve alívio ao seu ânimo.

"Bem, faz algum tempo que não os visito... então, entendo o lapso de memória," ela continuou. "Mas mesmo assim, sou sua única tia!"

"Desculpe, Tia Mary. Claro que me lembro de você. Como poderia esquecer? O que me surpreende é você me ligar... Aconteceu algo?" Kyle quis saber.

"Sim, aconteceu algo! Estou precisando de ajuda!" exclamou ela, instigando uma onda de apreensão em Kyle.

"O que houve? Existe algo em que eu possa ser útil?"

"Absolutamente! É exatamente por isso que estou te ligando. Você é o único que pode me ajudar, meu sobrinho querido!" A cada palavra dela, a curiosidade e a desconfiança de Kyle cresciam. O que poderia ser tão urgente que ele fosse o único capaz de ajudar?

"Você ainda está desempregado, certo?" inquiriu Tia Mary, fazendo Kyle franzir novamente o cenho.

"Er... sim, estou."

"Perfeito!" exclamou ela, agora visivelmente animada.

Um calafrio sutil percorreu a espinha de Kyle, preenchendo-o com uma mistura de antecipação e incerteza.

~**~

 

O carro tremia e balançava, como se estivesse dançando uma valsa caótica com a estrada esburacada e selvagem pela qual avançavam. Kyle segurava firmemente a alça acima da janela, no lado do passageiro, enquanto tentava decifrar a tela do celular com sua outra mão. O mapa mostrava um percurso que ele só podia descrever como "rumo ao desconhecido." Ao seu lado, Tia Mary, uma mulher de cabelos ruivos indisciplinados tingidos com mechas prateadas e óculos estilo 'fundo de garrafa', emitia exclamações entusiasmadas, como se estivesse domando um touro selvagem.

"Tia Mary, você tem certeza absoluta de que estamos indo para o lugar certo? Tem certeza de que pegou o endereço correto?" indagou Kyle, já sentindo o enjoo subir por seu estômago.

"Completamente! Meu chefe adora lugares assim, remotos e inóspitos. Combina perfeitamente com o espírito do Halloween, você não acha?" ela respondeu, visivelmente animada.

"Ah, sério? Você acha que capotar em uma estrada empoeirada faz parte do espírito do Halloween? Porque esse é o jeito mais rápido de chegar ao nosso destino de final de estrada, ou melhor, final de vida! Quem precisa de sangue falso e cicatrizes de maquiagem quando você pode ser o astro de um acidente real e autêntico? Ganharíamos o primeiro prêmio em qualquer concurso de fantasias... claro, assumindo que sobrevivemos para contar a história e dançar 'Thriller' na tal festa!" Kyle retrucou, seu tom impregnado de irritação. A resposta arrancou de Tia Mary uma gargalhada quase maníaca, que soou ainda mais estranha em meio ao balanço frenético do carro.

Felizmente, o chacoalhar do carro cessou após algum tempo. De maneira abrupta, Tia Mary freou o veículo, fazendo com que Kyle fosse arremessado para a frente devido à inércia. Se não fosse pelo cinto de segurança, ele teria sido catapultado através do para-brisa.

"Chegamos!" exclamou Tia Mary, vibrante. Kyle então teve a chance de realmente observar o lugar onde haviam parado. Abaixando o vidro da janela, ele notou que estavam em uma extensa clareira, cercada por uma floresta densa e escura. Erguendo-se como uma visão imponente no centro estava uma grande mansão de estilo vitoriano. A construção, nitidamente antiga, parecia desafiar o tempo, mantendo-se altiva e imponente em sua solidão.

"Isso... parece o cenário de um filme de terror," murmurou Kyle. "Só faltam a chuva, a névoa e os trovões."

"Ah, mas meu chefe garantiu que no dia 31 tudo isso vai acontecer, para tornar tudo mais autêntico para a grande noite!" afirmou Tia Mary. Kyle a encarou como se ela fosse louca. Como poderia o tal chefe controlar ou prever o clima para o fim de outubro?

"Já que estamos falando de seu trabalho... e de seu chefe," Kyle começou, introduzindo o tópico que deveriam ter explorado antes de ele concordar com essa odisseia de carro rumo ao desconhecido.

"Nosso trabalho e nosso chefe, querido. Afinal, você agora é meu colega de trabalho, esqueceu?" retrucou Tia Mary, já saindo do carro, sem dar espaço para mais perguntas. Desconcertado, Kyle se desvencilhou rapidamente do cinto de segurança e seguiu sua tia, ávido por mais informações. Ele queria entender que tipo de empresa era essa, o que exatamente fariam lá e quem era esse misterioso chefe. Sim, ele havia concordado com algo sem ter o mínimo conhecimento do contexto em que estava se inserindo.

"Devia ter pensado duas vezes antes de deixar o desespero ofuscar meu bom senso e cautela," murmurou Kyle para si mesmo, enquanto saía do carro e se encaminhava em direção à imponente mansão que poderia muito bem ganhar o título de mal-assombrada. Um alívio momentâneo o invadiu ao perceber que não estavam sozinhos; outros veículos, desde carros modernos a trailers, adornavam o espaço amplo em frente à mansão. Cada um deles ostentava um logotipo peculiar: um morcego rosa. Certamente não algo que Batman usaria para seu sinal noturno.

Sua tia lhe havia dito de forma um tanto vaga que trabalhava para uma empresa chamada "Fangtastic Celebrations", especializada em organizar festas e eventos. No entanto, Kyle jamais imaginou que tais celebrações ocorreriam em um local tão inóspito e misterioso.

O jovem também não pôde deixar de notar as figuras peculiares que seriam seus futuros colegas de trabalho. Eles carregavam caixas e diversos materiais em direção à mansão. Alguns estavam envoltos em ataduras da cabeça aos pés, como múmias em movimento. Outros exibiam uma quantidade impressionante de pelos cobrindo seus corpos, e curiosamente, usavam o que pareciam ser coleiras em seus pescoços. Era tudo extraordinariamente estranho, amplificando as já altas reservas de Kyle quanto à aventura em que se metera.

"Er... Tia Mary..." Kyle chamou, sua voz tingida de nervosismo. Sua tia se virou para ele, olhando por baixo dos seus óculos de lentes espessas, que quase pareciam um par de lupas.

"O que foi, Kyle? Já está com saudades de casa?" ela questionou, um sorriso largo iluminando seu rosto.

"Não é exatamente saudade o que estou sentindo..." Kyle murmurou, desviando de uma dupla peculiar de trabalhadores que carregavam pesadas caixas de som. O primeiro, um homem de pele levemente esverdeada e salpicada de verrugas, tinha uma toalha pendurada no pescoço que, Kyle poderia jurar, ocultava guelras. A segunda, uma mulher extraordinariamente alta, ostentava uma vasta cabeleira roxa que parecia brilhar à luz do sol.

"Tia... O que... são..." Kyle começou a formular a pergunta que borbulhava em sua mente, mas foi abruptamente interrompido. As imponentes portas da frente da mansão se abriram de súbito, e de lá emergiu um rapaz com um visual chamativo. Ele usava um roupão cor-de-rosa brilhante, um chapéu de sol adornado com lantejoulas reluzentes, calças de couro incrivelmente apertadas e pantufas da mesma cor rosa do roupão. Seus óculos escuros eram quase um escudo, ocultando seus olhos, e sua pele era de uma palidez quase etérea.

"Diga-me, para que serve o dia, hein? Só para me dar dor de cabeça e irritação? E esse sol! Ele não se enxerga? Porque eu o enxergo muito bem, ou melhor, não enxergo! Se eu olhar para ele, sinto minha pele queimar, literalmente! Eu digo a vocês, dia e sol são coisas superestimadas! Quem precisa deles?" o homem esbravejava, como se realizasse um monólogo para uma audiência invisível em um teatro imaginário.

"As plantas..." Kyle achou-se respondendo, embora soubesse que todo aquele discurso deveria ser apenas uma série de perguntas retóricas. O homem virou-se para ele, visivelmente surpreso por alguém ousar interromper sua lamentação.

"Desculpe, como é?" ele questionou, aproximando-se de Kyle, que se esforçou para não recuar ao perceber a estatura impressionante da figura.

"E-eu quis dizer que as plantas necessitam de luz para realizar fo-fotossíntese. Ao fazer isso, elas p-produzem açúcares que serão consumidos por outros organismos na ca-cadeia alimentar, incluindo nós. Portanto, a luz é fundamental para a manutenção da vida na Terra," gaguejou Kyle, nervoso sob o olhar penetrante do enigmático homem. Embora, na verdade, fosse difícil dizer se ele realmente o estava encarando; aqueles óculos escuros tornavam tudo muito incerto.

Alguns segundos que se estenderam como eternidades preencheram o ar tenso da entrada da mansão. Kyle engolia a seco, seus olhos fixos no homem à sua frente que parecia agora perdido em pensamentos profundos. Sua tia, notavelmente nervosa, roía as unhas — uma imagem perturbadora, considerando que até então ela havia sido o retrato da despreocupação. Quem era esse homem para desencadear tal inquietação nela? Kyle temia estar frente a frente com seu futuro chefe, e temia ainda mais ter causado uma péssima primeira impressão.

"Você tem um ponto válido," finalmente disse o homem vestido em rosa exuberante. "Vamos dizer que eu também sou afetado pelos benefícios da luz solar indiretamente, já que também faço parte dessa cadeia alimentar. Sou, você poderia dizer, um predador no topo da cadeia, um consumidor de... presas especiais, se me entende." Ele abaixou os óculos escuros apenas o suficiente para travar seus olhos nos de Kyle. Foi nesse instante que Kyle percebeu as írises avermelhadas e decididamente inumanas do homem, fazendo com que soltasse um guincho abafado de horror.

"Vampiro?" sussurrou Kyle, surpreso com a sua própria conclusão.

"Mary, minha querida..." O homem pareceu ignorar o efeito que sua revelação teve sobre Kyle e virou-se para a tia dele. "Então este é o meu novo empregado? Seu adorável sobrinho, Kyle Wilson?"

"Adorável?" Kyle não conseguiu esconder a indignação em sua voz, superando o receio e medo que sentira segundos antes.

"Sim, adorável. Sua tia fez questão de me mostrar todas as suas fotos de infância e usou com entusiasmo o adjetivo 'adorável' para descrever você, Sr. Wilson," o homem respondeu com um sorriso, revelando caninos proeminentes. "Devo dizer que ainda estou ponderando sobre a adequação desse adjetivo..."

"O quê? Isso terá algum impacto na minha contratação ou não?" Kyle se viu perguntando isso, mesmo diante das claras evidências da natureza sobrenatural do ser à sua frente. Independentemente do quanto a vestimenta rosa-choque do homem pudesse amenizar sua aura sombria, a necessidade urgente de Kyle por um emprego parecia ser o fator predominante em sua mente.

"Sr. Wilson, você deve ter notado que a minha empresa é um tanto peculiar," começou o homem, que Kyle agora sabia ser um vampiro. Ele fez uma pausa dramática antes de continuar, "Ao contratar um humano," aqui ele deu ênfase especial à palavra 'humano', "nós geralmente seguimos um procedimento de indicações. Isso é para evitar tanto o pânico quanto complicações legais. Além disso, somos uma empresa com fortes laços familiares; valorizamos tanto a nossa própria privacidade quanto a daqueles que nos contratam."

"E o que isso tem a ver com minhas fotos de bebê?" Kyle indagou, cruzando os braços sobre o peito. Sim, uma parte da sua mente estava gritando para ele focar no fato de estar conversando com um vampiro, uma criatura conhecida por se alimentar de humanos. No entanto, outra parte de sua consciência estava completamente indignada com o uso impróprio de suas fotos de infância em um processo seletivo do qual ele não tinha a mínima ideia de que fazia parte.

"Bem, sua tia também me apresentou seu portfólio," disse o vampiro, parecendo ignorar intencionalmente as perguntas de Kyle sobre suas fotos.

"Meu portfólio?" Kyle lançou um olhar para sua tia, que sorriu de forma culpada. Ele se lembrava vagamente do portfólio que tinha feito durante o ensino médio, quando ainda considerava a faculdade de artes visuais. Seus pais não se opuseram, mas seus professores e o conselheiro acadêmico se esforçaram para dissuadi-lo. Eles enfatizavam que, com seu histórico escolar cheio de notas altas, ele deveria aspirar a algo mais 'respeitável'. Foi assim que acabou se inscrevendo em Direito, o que levou a sua subsequente desilusão e falta de motivação na vida.

"Sim, humano. Seu portfólio de arte. Muito impressionante, aliás. Gostei particularmente dos homens meio pelados," disse o vampiro com um sorriso amplo, fazendo com que Kyle corasse da cabeça aos pés, rivalizando com seus cabelos ruivos.

"Eram esboços de estátuas gregas e romanas!" Kyle exclamou, um pouco mais alto do que pretendia.

"Então seja, mas devo dizer que fiquei impressionado. E minha empresa precisa justamente desse olhar artístico. Eu normalmente cuido dessa parte, como Mary bem sabe, mas é impossível estar em todos os lugares ao mesmo tempo. E não, a onisciência não é um dos meus dons vampíricos," disse ele, começando a caminhar em direção ao interior luxuoso da mansão, gesticulando para que Kyle e Mary o seguissem.

Ao entrar, Kyle ficou perplexo com o interior da residência. Um grandioso lustre de cristal pendia majestosamente sobre o hall de entrada. Duas escadarias simétricas, adornadas com corrimãos de madeira entalhada, levavam ao segundo andar, cujo conteúdo ainda era um mistério. Grandes janelas de vitrais, ainda que embaçadas pelo pó dos anos, banhavam o ambiente com uma luz multicolorida que parecia incomodar seu novo chefe vampiro.

Eles foram conduzidos a um vasto salão de festas. As janelas do salão eram ocultadas por pesadas cortinas empoeiradas e mofadas. Ali, Kyle observou alguns funcionários, envoltos em ataduras que pareciam tão antigas quanto as cortinas, limpando o chão e espanando as paredes e móveis. A apatia com que realizavam o trabalho fez Kyle suspeitar que a meta não era realmente tornar a mansão impecável; afinal, uma festa temática de Halloween se beneficiaria de um certo ar de descuido.

"O que vocês pensam que estão fazendo?" o vampiro praticamente berrava, horrorizado, ao ver outros funcionários. Um deles poderia ser descrito como uma múmia, mas trajava roupas de hip-hop. O outro, um homem alto e musculoso, com pelos cobrindo grande parte de seu corpo, tinha olhos de um tom dourado peculiar. Ambos estavam pintando a área em torno da ampla lareira da sala, usando uma cor absolutamente inadequada: azul bebê.

"Quantas vezes já disse a vocês que essas cores não são apropriadas para uma festa de Halloween?" O vampiro levou a mão ao rosto, massageando as têmporas. Depois, virou-se para Kyle. "Explique para eles, Kyle. Este sol está me dando uma enxaqueca terrível!" resmungou o vampiro, acenando para que o jovem humano tomasse a palavra.

Pego de surpresa, Kyle hesitou momentaneamente. Não só estava assumindo uma responsabilidade para a qual não estava preparado, mas também estava diante de criaturas sobrenaturais poderosas. E se elas reagissem mal ao que ele tinha a dizer? Sua tia, ao seu lado, fez um sinal de 'ok' com a mão, o que ele interpretou como um incentivo para falar.

"As cores tradicionais do Halloween são laranja, preto, roxo e verde. O laranja é associado à colheita e ao outono, enquanto o preto representa a morte e o desconhecido, refletindo o espírito sombrio do feriado. O roxo está ligado ao místico e ao sobrenatural, e o verde remete a monstros e bruxas. Cores pastéis como rosa claro, azul bebê e amarelo claro são geralmente consideradas inadequadas para a ocasião, pois são muito suaves e não condizem com o tema," explicou Kyle, sentindo o suor frio percorrer seu corpo.

"Faz sentido," concordou a múmia. "Mas a culpa é toda do Larry, ele que escolheu essa tinta."

"Bem, eu sou um lobisomem. Vejo o mundo principalmente em tons de azul e amarelo e não consigo distinguir entre vermelho e verde. Como esperam que eu escolha um bom esquema de cores?" rosnou Larry em sua defesa. "Só fiz isso porque você, Ramses XII, estava com preguiça de pegar a tinta!"

"Eu só não queria sujar minhas ataduras," resmungou Ramses XII, embora segurasse um pincel e tivesse manchas de tinta azul espalhadas por suas ataduras, o que tornava sua desculpa bastante fraca.

"Vê o que eu tenho que suportar?" o vampiro lamentou, exagerando o drama em sua voz para Kyle. "Não posso ficar de olho em cada pequeno detalhe. Ainda tenho que organizar outros aspectos da festa, como o buffet e negociar o cachê das bandas que vão se apresentar. De qualquer forma, Gaspar?"

Com um estalar de dedos, uma pasta contendo documentos levitou até suas mãos. Kyle vislumbrou uma figura etérea e esbranquiçada, com uma forma vagamente humanoide, flutuando brevemente no ar enquanto transportava o objeto. Seria um fantasma?

"Então, aqui estão os planos para a decoração da mansão," disse o vampiro, passando a pasta para um Kyle ainda perplexo e ansioso. "Sua tarefa é garantir que tudo aconteça conforme planejado. Supervisione e evite desastres!" Ele disse isso com um olhar reprovador em direção à tinta azul que escorria pela parede.

"Eu... eu não tenho experiência com..." Kyle começou, mas foi interrompido pelo som estridente da música "Feed My Frankenstein" de Alice Cooper. Seu chefe prontamente atendeu seu telefone e iniciou uma conversa numa língua estrangeira.

"Você vai dar conta do recado! Lembra quando você era responsável pelo grêmio estudantil? As festas e eventos que você organizava eram incríveis!" Tia Mary sussurrou, seus olhos brilhando com entusiasmo enquanto levantava os polegares em sinal de aprovação. Antes que Kyle pudesse contestar, apontando a discrepância entre organizar atividades em uma escola de ensino médio e uma mansão, ela foi interrompida pelo chefe da empresa. Um aceno sutil da cabeça deu a entender que era hora de uma reunião. Tia Mary se afastou rapidamente, deixando Kyle sozinho, agarrando uma pasta volumosa de documentos com ambas as mãos.

"Esperem!" Kyle exclamou, fazendo um esforço hercúleo para manter o pânico fora de sua voz. "Eu nem sei o seu nome!" referiu-se ao vampiro, que era seu novo chefe. Até então, não haviam sido formalmente apresentados, embora fosse óbvio que o vampiro soubesse muito mais sobre Kyle do que o contrário.

"Ah, é verdade..." o vampiro entregou seu celular para Tia Mary e se aproximou de Kyle. A proximidade fazia o coração de Kyle acelerar, tanto pela diferença de altura quanto pela aura sobrenatural que emanava daquele homem.

"Meu nome é Maximus Vrykolakas, mas todos aqui me chamam de Max," disse ele, inclinando-se graciosamente para pegar a mão de Kyle e beijá-la suavemente. "É um prazer tê-lo conosco, Kyle Wilson."

O gesto teria sido quase romântico se não fosse por uma série de eventos inesperados que se desenrolaram quase que instantaneamente. Primeiro, um pedaço de reboco do teto despencou, acertando Max e derrubando seu chapéu elegante. Em seguida, os papéis da pasta de Kyle se espalharam pelo chão; segurá-la com uma mão só por tanto tempo havia sido uma tarefa impossível.

Nesse cenário de caos absoluto, Kyle não pôde conter uma risada. Estava, sem dúvida, em uma situação completamente inusitada. Max olhou para ele, seus cabelos salpicados de pedaços de reboco e seus óculos escuros agora descansando no chão, e também sorriu. Era, sem dúvida, uma forma bastante peculiar de começar o primeiro dia de trabalho.

 

~**~

 

Os dias subsequentes deslizaram com uma surpreendente falta de estresse, uma revelação que pegou Kyle de surpresa. Apesar de conviver com uma variedade eclética de seres sobrenaturais — criaturas que poderiam facilmente figurar nos pesadelos de qualquer pessoa comum — ele rapidamente notou que, no final das contas, eles eram muito semelhantes aos seres humanos. Traziam consigo anseios e desejos, peculiaridades e hobbies, e até mesmo receios e temores. De alguma forma, aquelas diferenças flagrantes, tanto físicas quanto místicas, tornaram-se quase triviais.

Ele se pegou desenvolvendo laços genuínos com essas entidades improváveis. Jantava com a equipe de decoração, debatia cinematografia — curiosamente evitando o gênero de terror — e trocava impressões sobre séries de TV, músicas e até memes do YouTube. Uma camaradagem que ele não previra, mas que agora se tornava uma parte cativante de seu dia a dia.

À medida que o final do mês se aproximava, o progresso na decoração da mansão assumia um ritmo quase vertiginoso. Claro, contar com a magia de bruxas e bruxos, a força bruta de lobisomens e a incansável assistência de fantasmas certamente acelerava as coisas muito além do que seria humanamente possível.

Mas o que realmente maravilhou Kyle foi o ressurgimento de uma sensação há muito esquecida: a pura e simples diversão. E enquanto ele se perdia nesse devaneio, sentado no trailer que dividia com sua Tia Mary, saboreando o seu café da manhã, uma notificação bizarra chamou sua atenção.

Sem qualquer aviso, a pequena TV do trailer se ligou espontaneamente. A tela mostrava a imagem de um poço sombrio. Ele assistiu, estupefato, mas não apavorado, enquanto uma mulher com longos cabelos negros escondendo seu rosto saía daquele poço de maneira desconcertante. Ela avançou em direção à tela em um ritmo lento e cambaleante. Então, de maneira tão surreal quanto perturbadora, a figura emergiu completamente, caindo desajeitadamente no estreito espaço da cozinha do trailer.

"Bom dia, Sadako," cumprimentou Kyle, surpreso pela própria calma e naturalidade. Esse contraste com seu primeiro encontro — preenchido pelo tipo de terror que congela o sangue — não passou despercebido. Ele estava começando a se adaptar a este novo mundo, e talvez, apenas talvez, estivesse até começando a gostar dele.

"Olá, Kyle", sussurrou a mulher, levantando-se delicadamente. Ela afastou o longo cabelo do rosto, prendendo-o atrás da orelha e revelando uma face asiática de beleza surpreendente, embora com uma palidez quase azulada.

"O que temos agendado para hoje?" Kyle indagou, saboreando um croissant e oferecendo outro a Sadako, que aceitou com sua típica hesitação.

"Kyle, você não conferiu o calendário? Hoje é 31 de outubro... Halloween", disse ela, seu sussurro suave ainda presente. "Vim te avisar que Max estava à sua procura para organizar sua fantasia."

"Já estamos no dia 31?" Ele expressou surpresa, conferindo a data em seu celular e ficando atônito com a confirmação visual. "Bem, as decorações estão praticamente prontas..."

"Estão completas, Kyle. Gaspar e os fantasmas deram os últimos retoques ontem à noite", informou ela, saboreando seu croissant em pequenas mordidas.

"Uau... Já é dia 31..." murmurou, ainda desacreditado. "Espera, você disse que Max está me procurando? Ele mencionou uma fantasia?"

"Sim, foi o que ele disse", confirmou Sadako.

"Mas... Por quê?" A pergunta de Kyle pairava no ar quando, subitamente, a porta do trailer se abriu com um rangido suave e Max adentrou o espaço. Ele agora trajava uma vestimenta menos extravagante do que no primeiro dia em que se conheceram, mas ainda assim, distinta. Vestia um moletom rosa com o símbolo da empresa – um morcego rosa estilizado – bordado no peito, calças folgadas da mesma coloração e nos pés, exibia sandálias com estampas de gatinhos, um detalhe que Kyle notou quase imediatamente. Os cabelos escuros de Max estavam ocultos sob um boné.

"Kyle! Que bom que está acordado!" Exclamou Max, com uma energia contagiante, aproximando-se rapidamente e acenando para Sadako. "Temos muita coisa para fazer!"

"A decoração já terminou, eu imagino que não tenho nada para..." Kyle começou, mas foi interrompido por Max.

"Não, isso! Temos que nos arrumar para a festa. Eu já encomendei a minha fantasia, agora devemos pensar na sua. Sinto muito por não termos discutido isso antes! Eu realmente esqueci, mas sem problemas, ainda temos tempo," tagarelava Max, gesticulando com as mãos, sua animação era palpável.

"Espera, Max... Eu vou participar da festa?" Kyle inquiriu, franzindo o cenho, uma pontada de surpresa tingindo sua voz.

"Óbvio que vai participar. Todos os funcionários vão participar. Mas você é um caso especial..." Max falou, seus olhos brilhantes fixando-se nos de Kyle, que ainda parecia confuso com a situação.

"Sou?" Kyle elevou o croissant em direção à boca, mas antes que pudesse dar uma mordida, Max se aproximou, mordiscando o referido croissant, causando uma pausa cômica no gesto de Kyle.

"Sim..." sussurrou Max, seus olhos ainda fixos nos de Kyle com uma intensidade que fez o coração do humano acelerar, não de medo, mas de uma excitação inusitada. "Você é o meu convidado, o meu par para a festa."

"Vou voltar para a TV," anunciou subitamente Sadako, "não vou ficar aqui segurando vela." Dizendo isso, ela adentrou de maneira sobrenatural na referida TV, ainda segurando seu croissant meio comido.

Kyle pigarreou, sentindo-se levemente embaraçado, mas Max sorria, imperturbável frente à insinuação feita pela assistente do humano.

"E... Que fantasia devo usar?" indagou Kyle, sentindo-se estranhamente tímido diante de Max.

"Devemos usar fantasias combinando! Eu escolhi uma fantasia de Homens de Preto, só que, em vez de preto, vou usar rosa... Você poderia se fantasiar de... sei lá... um extraterrestre? Um ET rosa!" brincou o vampiro, arrancando um sorriso dos lábios de Kyle.

"Deixe que eu escolha minha fantasia, sim? Não confio nas suas sugestões... E nada de rosa!" enfatizou Kyle, deixando-se ser conduzido pelo já elétrico vampiro.

~**~

Apesar de ter dedicado semanas a fio decorando a mansão, nada o tinha preparado para o espetáculo visual que agora se desdobrava diante de seus olhos. A mansão resplandecia sob a incandescência de luzes roxas e laranjas que lançavam um brilho etéreo sobre a estrutura. Parte da mansão havia sido cuidadosamente reformada, mantendo-se algumas janelas quebradas e resquícios de poeira e teias de aranha como toques de um charme decadente. O contraste entre o antigo e o novo era evidente: paredes recém-pintadas e papel de parede renovado se fundiam harmoniosamente ao ambiente envelhecido. Um véu de névoa fantasmagórica envolvia o ambiente, criando uma atmosfera misteriosa e inquietante. A cereja do bolo era um pequeno cemitério cenográfico que fora incorporado à paisagem ao redor do edifício, complementado por uma chuva suave e o estrondo ocasional de trovões ao longe. Era evidente que Max tinha conseguido conjurar o ambiente perfeito para a festa de Halloween.

Max, o anfitrião impecável, ostentava um terno rosa chique, óculos escuros estilosos e empunhava uma réplica perfeita de uma das armas icônicas do filme Homens de Preto em uma mão. Na outra, segurava um guarda-chuva, oferecendo abrigo a Kyle, que, com um toque de humor, optara por se fantasiar de Conde Drácula, só para provocar uma pitada de irritação em Max.

"Pelo menos você está mais atraente que Bela Lugosi," comentou Max, com um brilho travesso nos olhos ao ver o resultado final da fantasia de Kyle. O traje de Kyle era uma mistura de elegância e tradicionalismo, com uma capa negra longa e aveludada, um colete carmesim ricamente bordado, e uma camisa de linho branca. A maquiagem pálida e os caninos afiados completavam o visual, tornando a provocação a Max ainda mais deliciosa.

Kyle absorvia a atmosfera vibrante que envolvia o ambiente. A presença dos convidados, uma mistura eclética de seres sobrenaturais e humanos, criava um mosaico visual fascinante. Cada figura, adornada com fantasias criativas, contribuía para o cenário festivo e inclusivo. A festa estava aberta a todos, um testemunho vivo de diversidade e aceitação. Uma onda de orgulho inundou Kyle ao contemplar o resultado final de seu esforço, mas essa emoção foi tingida por uma pitada de apreensão. Ele fora contratado apenas para esse evento. O que o futuro lhe reservava? Será que voltaria para a monotonia de sua vida anterior, abrigado na casa dos pais, desprovido de perspectivas emocionantes?

"Você sabe," Max começou a falar, hesitante, "tenho outro evento para organizar. Será uma festa de Ação de Graças para uma família de... bem, perus gigantes. Sim, é estranho, mas eles pagam bem. Seria interessante... se você quisesse... participar de mais um projeto insano da minha empresa. Compreendo se não quiser... Afinal, você deve ter outras cois..."

"Eu quero!" Kyle exclamou, interrompendo o tagarelar nervoso de Max. "Eu adoraria trabalhar em mais projetos loucos ao seu lado... Max."

A face de Max se iluminou com um sorriso radiante, que fez o coração de Kyle palpitar um pouco mais rápido. O rubor que tingiu as bochechas de Kyle não pôde ser ocultado, mesmo sob a camada generosa de maquiagem que tornava sua pele pálida.

"Fico feliz... E... Que tal comemorar isso, hum? Temos uma festa de Halloween para aproveitar!" Max exclamou, já arrastando Kyle entusiasticamente para o interior da mansão, onde a música ecoava pelas salas e corredores, prometendo uma noite inesquecível.

Entre a Chuva e o Sol

  "Você tem certeza de que ela é realmente competente?" "Sim, pelo menos é o que dizem...", seu assessor lhe infor...