sábado, 20 de abril de 2024

A loja

 


Cidade Alta, conhecida também pelo seu epíteto de Centro, ergue-se como o bairro primordial da vibrante cidade de Natal, orgulhosamente ostentando a honra de ser o primeiro a ser fundado na capital, numa data tão simbólica quanto o Natal de 1599. As ruas da Cidade Alta, pulsavam com vida comercial, eram bordadas por uma tapeçaria de lojas diversas, estendendo-se ao longo da majestosa Avenida Rio Branco e serpenteando pela Rua João Pessoa. Nas suas imediações, o passado e o presente se entrelaçam: lojas de variados tipos e prestigiosas instituições financeiras contam histórias de um tempo em que este era o coração incontestável do comércio natalense.

Contudo, como se presencia em muitos capítulos da história, a Cidade Alta hoje enfrenta uma maré de mudanças. A concorrência acirrada e a migração de clientes e comerciantes para os colossais shoppings centers da capital e para o resiliente bairro do Alecrim provocaram uma queda na sua atividade comercial outrora florescente. A pandemia de COVID-19, um golpe inesperado e avassalador, fechou as cortinas de muitos estabelecimentos, deixando nas ruas ecos de um passado mais próspero.

Neste cenário de lojas cerradas e ruas que murmuram memórias de dias mais movimentados, a missão de encontrar uma loja específica na Cidade Alta parecia, para ela, repleta de incongruências. Não era a visão das fachadas abandonadas que o inquietava; era algo mais sutil, escondido nas entrelinhas das instruções que recebera. Buscar a loja à noite, precisamente à meia-noite, e com a janela de uma única hora até o soar da 1h da madrugada, transformava a tarefa em algo quase místico. Era um jogo de esconde-esconde no véu da noite, onde o destino era uma loja misteriosa, escondida nas sombras próximas à Praça André de Albuquerque, um ponto de referência que parecia ser mais do que apenas um marco geográfico.

Ela caminhava pela praça com um terror sutil pulsando em suas veias, segurando firmemente o papel com instruções meticulosamente transcritas de uma conversa no WhatsApp — uma troca de mensagens com uma pessoa que conhecia apenas por intermédio de outra. Essa pessoa distante prometia ser a chave para desvendar e remediar os problemas que pesavam sobre ela.

A praça, o coração geodésico da cidade e seu marco zero, estava povoada por figuras que a sociedade muitas vezes opta por não enxergar. Mendigos e moradores de rua adornavam o cenário com suas presenças marcadas pelas adversidades da vida. Alguns vagueavam com um olhar perdido, capturados em seus próprios labirintos mentais. Outros, solitários, buscavam companhia na amargura de uma garrafa partilhada — uma garrafa de plástico que, enganosamente semelhante a um refrigerante, guardava um líquido incolor e alcoólico que prometia um esquecimento temporário. E ainda havia os que, entregues às sombras, se deixavam levar por vícios mais escuros.

Enquanto ela avançava, uma tremura sutil a acompanhava, e um rosário de pragas silenciosas tecia-se em sua mente. Ela questionava a própria sanidade por se encontrar ali, naquela situação, encarando o perigo potencial da noite e do desconhecido.

Ela murmurava palavras de encorajamento, uma ladainha para acalmar os batimentos descompassados de seu coração. "Mas vale a pena... se o que a loja oferecer for real, tudo valerá a pena." Era um sussurro leve, uma carícia na turbulência de sua inquietação.

A penumbra da noite era parcimoniosa, concedendo apenas vislumbres sob a luz frugal dos postes. Foi nessa atmosfera opaca que uma voz rouca rompeu o silêncio. "Olá, mocinha... Tá perdida, é?" Um vulto se aproximava, oscilando como uma chama ao vento. Ela mal podia discernir sua forma na escassa iluminação.

"Eu..." Ela recuou, a urgência de sua busca chocando-se com a cautela. Já era meia-noite, e cada minuto escorria como areia entre os dedos. "Eu estou à procura de algo..."

"Posso ajudar... com certeza posso..." A figura se aproximava, e o odor de álcool preenchia o ar, uma presença pungente. "Venha cá, deixe o Tio Chico ver você melhor. Não vou te machucar..."

“Você sabe onde fica a loja chamada... Arandu Pyharegua[1]?" As palavras escaparam apressadas de seus lábios, tropeçando apenas na pronúncia do nome, ainda incerto em sua língua.

O homem estacou como se tivesse sido atingido por um raio invisível. "Arandu... Você disse?" Sua voz era agora um sopro, e seu corpo, antes invasivo, recuava. "O que você quer com... isso?”

Determinada, ela sabia que não devia satisfações a ninguém. Por que deveria justificar a busca por uma loja enigmática, ausente do Google Maps e sem vestígios digitais como uma página no Instagram? Não estava ali para explicar suas razões a um estranho, para revelar por que seguia instruções que a maioria consideraria insanas, tudo para curar o que a afligia. Não, ela não tinha essa obrigação. Com firmeza, mas sem revelar sua ansiedade, ela perguntou:

"Então, você sabe onde fica a loja? Pode me dizer onde ela...?"

Antes que pudesse terminar a frase, o homem, como se tocado pelo sopro gelado do medo, virou-se e desapareceu na noite, deixando-a com uma mistura de confusão e frustração.

Eram trinta minutos após a meia-noite e o desespero começava a se entranhar em seu ânimo. Os vultos que antes povoavam a praça agora se esquivavam, recuando como se ela fosse portadora de alguma maldição invisível. Em meio a essa rejeição súbita e à crescente ansiedade, algo extraordinário aconteceu: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, um marco da praça, começou a se iluminar de dentro para fora.

A igreja, um monumento de tempos idos, exibia uma fachada que harmonizava a austeridade colonial com retoques de modernidade. As paredes eram dominadas pelo branco puro, em contraste com os detalhes amarelos que realçavam com delicadeza as janelas, cornijas e o frontão. Era uma construção sólida e digna, com janelas de pedra de molduras discretas e persianas de madeira, remanescentes da arquitetura eclesiástica do Brasil colonial.

À direita, a torre do sino se erguia, adornada com ondulações e volutas do barroco, terminando em um pináculo afilado. O relógio, que antes parecia congelado no tempo, agora girava com um ímpeto inusitado.

Ela protegeu os olhos com a mão, ofuscada pelo súbito brilho que emanava do templo, perplexa diante de um fenômeno que desafiava qualquer razão. Qual missa seria celebrada a tal hora? E ainda mais estranho era o fato de que as portas da igreja, apesar do espetáculo luminoso, continuavam intransigentemente fechadas.

"Mas... o que está acontecendo?" Ela murmurou para si mesma, já que os moradores de rua que anteriormente ocupavam a praça haviam desaparecido. Sim, não restava mais ninguém; a praça e as ruelas adjacentes estavam desoladoramente vazias.

De repente, outra fonte de luz cortou a escuridão, em contraponto à igreja, do outro lado da praça. Ali surgia o contorno de uma loja que não estava ali antes, com uma entrada convidativa que se abria diretamente para a calçada. Estava banhada em luz, quase ofuscante em sua intensidade. Ela tentava, em vão, discernir alguma característica distintiva daquela loja — um letreiro, um design peculiar, um logotipo — ou mesmo a cor de suas paredes e detalhes de sua vitrine. No entanto, uma voz interna, um sussurro intuitivo, a impelia em direção àquela luz, dizendo-lhe que era exatamente o lugar que procurava em sua missão.

Ela avançou, decidida, e cruzou o limiar da loja. O contraste era gritante: do lado de fora, a luz era tão intensa que quase a cegou, mas agora, adentrando o que parecia ser um estabelecimento comercial, ela foi engolida por uma escuridão quase tangível. A escuridão era tão completa que ela se viu obrigada a buscar refúgio na luz do celular, acionando a lanterna para dissipar as sombras que a rodeavam. A luminosidade que ainda emanava da igreja era inútil aqui; parecia haver uma barreira invisível que impedia que qualquer facho daquele brilho invadisse o interior da enigmática loja.

"Ô de casa? Alguém?" Sua voz soou frágil, tremendo na vastidão escura. Uma pontada de dúvida a assaltou, uma voz interna sussurrando que talvez fosse um erro ter vindo.

"Bem-vinda", sussurrou uma voz a seu lado, causando-lhe um sobressalto. Ela não havia percebido ninguém até então, mas agora vislumbrava uma figura: uma mulher de estatura baixa, com uma leve curvatura nos ombros que sinalizava uma idade avançada. Seus cabelos, longos e lisos, eram de um negro tão intenso que se confundiam com as sombras que os envolviam. Seus olhos, porém, eram um contraste vivo; brilhavam com uma luz própria, semelhante a brasas tenazes que se recusam a se apagar, remanescentes de uma fogueira de São João há muito esquecida.

"Fico feliz que tenha encontrado minha loja", continuou a mulher, sua voz possuía uma qualidade melódica e, ao mesmo tempo, carregava uma profundidade que parecia reverberar pelo espaço confinado. Era curioso, pois o local não parecia ter as dimensões necessárias para gerar ecos.

"Eu... S-sim... Eu também estou feliz", ela conseguiu responder, ainda parcialmente imobilizada pela surpresa. Por um instante, o impulso de fugir a dominou. Seus olhos desviaram-se brevemente para a porta, mas foram rapidamente atraídos de volta pelo som de palmas. A mulher estava aplaudindo, e a cada batida, a loja se iluminava mais, não pela ignição de lâmpadas, mas por velas que se acendiam magicamente, suas chamas dançando à vida sem a intervenção de um único fósforo.

Ela franziu o cenho, esfregando os olhos na tentativa de compreender a visão diante de si. Parecia estar em uma loja, ou melhor, em um espaço repleto de estantes abarrotadas com recipientes de todas as formas e matizes. Contudo, o conteúdo dos frascos permanecia um enigma; fosse pelo vidro embaçado ou pela camada de sujeira, era impossível discernir o que estava selado em seu interior.

"Então, qual é o seu desejo, Luana?" a mulher indagou, assumindo seu posto atrás de um balcão, onde começou a esfregar um dos recipientes com um pano que mais parecia contribuir para a sujeira do que para a limpeza.

"Como você sabe o meu nome?" ela perguntou, alarmada, apegando-se ao seu celular como um talismã.

"Isso importa? Você veio até aqui, à meia-noite, em busca de uma loja que só abre neste horário... Não é o momento para se preocupar com tais detalhes, filha," respondeu a proprietária, sem levantar o olhar para sua cliente.

"Eu... Bem... Me disseram que você pode resolver problemas. Realizar desejos. Curar doenças," disse ela, com a voz desvanecendo quase em um sussurro nas últimas palavras.

"Então, te informaram corretamente," a mulher replicou, interrompendo a fricção em um frasco para começar em outro, com a mesma atenção meticulosa.

"Eu..." Ela umedecia os lábios, reunindo coragem para articular as palavras que carregava consigo, pesadas como pedras no coração. "Estou morrendo... Recebi um prognóstico com poucos meses de vida. Por isso, vim até aqui, na esperança de que você pudesse me curar."

"Ah, eu percebi o odor pútrido da morte assim que você cruzou a soleira. Eles estavam certos sobre você, parece. Às vezes cometem erros... Fazem a previsão de morte e o fim não vem. Mas no seu caso, a previsão foi acertada," disse a dona da loja, sua voz desprovida de qualquer traço de compaixão, o que fez o semblante de Luana perder ainda mais a cor ante suas palavras.

"Você pode me curar?" Luana insistiu, sua voz tremulava, embargada pela emoção que lutava para conter.

A mulher finalmente a encarou, e mesmo com a loja agora iluminada pelo fogo místico das velas, o brilho em seus olhos continuava a arder intensamente. "Há um preço a ser pago. Não sei se já te informaram sobre isso," ela declarou. Nesse instante, o som de batidas ressoou da igreja, cujas portas permaneciam inabalavelmente fechadas. Luana sentiu um arrepio de temor.

"Bem... Não me disseram nada," ela admitiu, uma corrente gelada parecendo escorrer ao longo de sua espinha.

“Eu tenho algum dinheiro guardado na conta corrente e na poupança..." ela começou, já estendendo a mão em direção à bolsa para buscar o cartão de crédito. No fundo, questionava-se se aquela figura enigmática aceitaria um pagamento via Pix, embora a loja tivesse um ar tão ancestral que parecia improvável que houvesse ali uma máquina de cartão.

"Basta um nome," disse a mulher, esboçando um sorriso onde o branco dos dentes reluzia. "O nome de uma criança que você conheça."

"Uma criança?" Luana exclamou, o medo súbito cristalizando-se em sua voz.

"Como você, eu padeço de uma condição... incurável," a dona da loja confessou, retomando a tarefa de limpar um recipiente, este notavelmente maior e, para o desconforto de Luana, visivelmente ocupado por um líquido de tom rubro-escuro. "Para aliviar meus sintomas, preciso consumir certas... partes do corpo humano."

Com um gesto tranquilo, ela destampou o recipiente, e um odor fétido, misturado com o cheiro metálico do sangue, invadiu o ar. As batidas vindas da porta da igreja intensificaram-se, ecoando pela praça com um ritmo quase desesperado.

Luana levou a mão à boca, nauseada pela revelação.

"Fígados," continuou a mulher, imperturbável diante do horror de Luana. "Mas não de qualquer um — apenas fígados infantis servem ao meu propósito." Ela falava com um interesse mórbido, vertendo o líquido escuro em um copo sujo, os lábios umedecidos pela antecipação do banquete macabro.

"Fígados..." Luana ecoou em um sussurro, sua voz quase se perdendo no ar carregado da loja.

"Sim, fígados. Mas sua anuência é essencial," disse a mulher, saboreando o líquido do copo com uma avidez que deixou Luana estática. Ela se sentia estranhamente ancorada ao chão, as pernas pesadas como chumbo, a saída da loja uma miragem distante.

"Não posso prosseguir sem o seu consentimento. São as regras do meu... tratamento," continuou a mulher, limpando a boca manchada de vermelho com um dos panos encardidos sobre o balcão. "E não se iluda pensando que minha própria enfermidade me impede de curar a sua. O mal que me aflige não tem nexo com as doenças dos mortais. Por isso, fique tranquila... Você pode ser curada. O custo, no entanto, é o nome de uma criança que você conheça. Apenas isso."

Os segundos se arrastavam enquanto Luana ponderava sua escolha. A mulher havia desviado o olhar, ocupada novamente em limpar outro recipiente. Luana reparou, com um arrepio, que cada frasco na loja continha o mesmo líquido vermelho-escuro que ela havia visto ser derramado no copo. Como não percebera isso antes? Seriam todos provenientes de fígados? A situação era tão surreal... Talvez fosse apenas um delírio, uma alucinação provocada pelo tumor que os médicos alertaram que poderia acontecer.

Se tudo não passasse de um sonho ou um pesadelo, qual seria o problema em dizer um nome? Não seria real. Poderia ser o filho da sua irmã, o bebê do seu primo, as gêmeas da vizinha, o filho do seu chefe... Ou até aquelas crianças anônimas do condomínio, cujos nomes e famílias eram desconhecidos. Qualquer um deles serviria, não é verdade?

Contudo, a questão moral se impunha: era justo fazer tal troca? Consentir com isso? Ela ansiava por mais tempo de vida, por experiências ainda não vividas, por sonhos não realizados — e ter filhos era um deles.

O retumbar das batidas da igreja amplificava-se, ecoando em um ritmo que parecia imitar as aceleradas batidas de seu coração.

"E então? Qual será sua decisão? A meia-noite não dura para sempre," pressionou a proprietária da loja, a impaciência tingindo sua voz. "E devo alertá-la que não estou sempre aqui. Minha loja se move, sou chamada para outros lugares, outros estados..."

As palavras da mulher se misturavam à cacofonia de dúvidas que inundavam a mente de Luana. O constante bater que vinha da igreja não lhe concedia um momento de paz para ponderar. Era uma chance única...

Com os lábios secos, Luana passou a língua por eles. Abriu a boca. E então, ela falou.

No exato momento em que sua voz se projetou, o sino da igreja soou, um som poderoso que vibrava pelas paredes e preenchia o espaço. Estranhamente, as badaladas pareciam entrelaçar-se com sons que lembravam o choro de crianças.

 



[1] Arandu pyharegua em guarani significa Sabedoria da Noite.

 


As Crônicas de Espinhos e Espadas

 


"O dragão se foi," proclamava o panfleto, suas palavras cursivas em negrito se destacando contra o fundo. Um desenho não muito detalhado do mencionado ser reptiliano, cuspindo fogo, adornava o papel. "Esta é a sua chance! Aqueles que almejam fama e fortuna, a princesa finalmente está ao seu alcance," continuava o folheto de cor amarelada, suas letras de tamanhos e cores variadas capturando a atenção do público. O uso de tintas coloridas era raro em folhetins, normalmente reservado para livros ou itens semelhantes; a impressão de panfletos limitava-se ao padrão preto e branco.

A eficácia dessa publicidade não se devia apenas ao seu design inovador, mas ao fato de múltiplas cópias serem lançadas dos céus, cobrindo a paisagem de vilarejos e cidades próximas ao antigo castelo. Claramente, quem quer que estivesse por trás dessa empreitada havia atingido seu objetivo. Aventureiros de todos os tipos, desde nobres cavaleiros em declínio a camponeses fugindo de colheitas miseráveis, até burgueses vislumbrando potenciais lucros, todos iniciaram sua jornada rumo à princesa. A lenda dizia que ela jazia aprisionada em um sono eterno, numa torre do velho castelo, mas o beijo de seu amor verdadeiro iria pôr o fim a essa horrível maldição.

E, conforme o panfleto indicava, com o dragão agora desaparecido, era chegado o momento de agir.

***

Ele empunhava a espada ancestral, forjada para seus antepassados, nobres guerreiros que, segundo as histórias contadas por sua mãe, chegaram a servir o rei do castelo agora em ruínas. A armadura que vestia compartilhava da mesma origem gloriosa. Ambas as relíquias mostravam sinais de desgaste: uma camada sutil de ferrugem cobria a lâmina outrora brilhante, e a armadura, embora ainda imponente, apresentava manchas de oxidação e fissuras causadas pelo tempo. Afinal, havia se passado mais de 200 anos desde que o castelo fora abandonado. No entanto, longe de desanimá-lo, a idade das peças apenas reforçava sua determinação. Parecia-lhe um sinal do destino que, como descendente daqueles cavaleiros, era ele quem deveria resgatar a princesa e restaurar a glória do reino.

"Sério mesmo? No máximo que você vai conseguir com isso aí é tétano," ironizou o jovem à sua frente, bloqueando seu caminho. Este não era um mero obstáculo, mas uma criatura amaldiçoada: um bruxo de vestes longas de um verde escuro profundo, cujo chapéu pontudo lhe conferia um ar tanto sinistro quanto caricato. Seus olhos, do mesmo verde de sua vestimenta, cintilavam com malícia na semiobscuridade, enquanto seus cabelos negros como a noite caíam desordenadamente sobre os ombros.

"Recue, vil criatura! O dragão já foi derrotado, e não permitirei que um ser maligno como você tome seu lugar!" ele exclamou com firmeza.

O bruxo lançou um olhar ao redor, fingindo confusão, antes de apontar para si mesmo com a varinha. "Está falando comigo?" desafiou, um sorriso zombeteiro brotando em seus lábios.

"Sim, vê outro ser das trevas por aqui?"

"Bem, depende de como você define 'trevas'..." retrucou o bruxo, provocando a ira do jovem nobre.

"Saia da minha frente!" gritou o guerreiro, investindo com sua espada. A armadura, embora rangente e restritiva, não o impedia de brandir sua arma com força.

Com uma agilidade surpreendente, o bruxo saltou para o lado, esquivando-se do ataque. A espada cravou-se no chão com um som metálico grave.

"Acho que você está confundindo as coisas, sabe? E sinceramente, eu recomendaria que não brincasse com objetos pontudos. Eles podem, sei lá, ferir alguém..." comentou o bruxo, um traço de sarcasmo tingindo sua voz.

O nobre tentou liberar sua espada, mas a lâmina estava firmemente presa no chão de pedra. "Não estou brincando!" rosnou ele, deixando a espada para trás, preparado para confrontar o rapaz com os punhos cerrados. "Você vai se arrepender de ter atravessado o caminho de Sir Arthur!"

"Sir? Oh! Não sabia que ainda estavam condecorando cavaleiros?" A provocação era evidente na voz do bruxo.

O nobre sentiu o rosto esquentar, uma onda de vergonha o invadindo, mas seu embaraço permaneceu oculto sob o capacete. "N-não estão... O reino já não existe mais! Mas minha família provém de uma longa linhagem de nobres cavaleiros que..." Ele foi abruptamente interrompido por um impacto poderoso nas costas, o suficiente para fazê-lo tropeçar. Sentiu a armadura ceder com a força do golpe. Quem teria tamanha força? O bruxo não tinha conjurado nenhuma maldição, pelo menos não que ele tivesse visto... E o golpe veio de trás.

"Gavriel! Sinceramente, não temos tempo a perder com esses idiotas!" A repreensão veio de uma voz feminina, clara e autoritária. Ele, lutando contra a limitação de visão imposta pelo capacete antigo, virou-se para avistar uma jovem de cabelos loiros como o ouro, trajando um vestido que parecia desafiar o ambiente hostil ao seu redor. O traje era uma obra de arte, com babados meticulosamente arranjados e laços que adicionavam um charme inocente à sua aparência. O que uma dama, tão elegantemente vestida, estaria fazendo num lugar tão perigoso? E mais intrigante ainda... Ela conhecia o bruxo?

"Mas, Alice... Isso é tão divertido! Quer dizer, você viu a armadura que ele está usando?" O bruxo lutava para conter o riso, um brilho travesso exibia em seus olhos. "E toda essa conversa sobre linhagem... Nobreza... Aposto que ele é só mais um camponês. Mesmo que tenha ascendência nobre, hoje não significa nada... São apenas contos de fadas para crianças!"

O cavaleiro, ainda prostrado ao chão, sentia-se consumido por uma mistura de fúria e constrangimento. Quem era aquele bruxo para julgá-lo? Antes que conseguisse se erguer e provar sua vitalidade e nobreza através da força, uma voz grave e cavernosa, como se emergisse das profundezas da terra, o interrompeu:

"Cuidado, contos de fadas são perigosos..." A advertência fez o nobre estremecer, gelando seu corpo ao se deparar com a origem daquela voz: um imponente ser humanoide, com pele de tonalidade acinzentada, olhos pequenos e um nariz grande e achatado. Presas proeminentes saíam de sua boca, e sua cabeça parecia pertencer a um guerreiro ancestral. A musculatura robusta e as mãos enormes indicavam sua força descomunal, capazes, sem dúvida, de envolver e esmagar um crânio humano. Era um orc! O cavaleiro jamais havia visto um deles antes; esta era sua primeira vez. Embora conhecesse as histórias sobre a ferocidade desses seres, confrontar-se com um era uma experiência completamente nova.

"E deve-se lembrar o motivo de nossa presença aqui, justamente por causa das fadas... Isso não deve ser negligenciado por distrações com a população ignorante", continuou o orc. O cavaleiro, agora tremendo de medo, mal conseguia registrar as outras características do orc diante do som "tec-tec-tec" das placas de sua armadura, que vibravam em ressonância com seu tremor. Pouco notou que o orc vestia-se atipicamente para sua espécie: trajava uma camisa comprida e calças de linho, completando o visual com uma gravata. Em uma das mãos, segurava um livro, e sobre o nariz repousavam óculos, em vez das esperadas armas selvagens e bestiais.

"Karnag, como sempre, cortando o clima..." reclamou Gavriel. "Já tinha dado cabo de muitos outros antes da chegada desse aí. Apenas aliviava a tensão, sabes? Tornando nosso trabalho um pouco mais leve e divertido."

"A diversão ficará para depois que encontrarmos a princesa e cumprirmos nossa missão," retrucou o Orc, com uma serenidade gélida. "E humilhar a população não me parece correto."

"O que pretendem fazer, vilões?" indagou o cavaleiro, esforçando-se para se levantar, vencendo o medo e o peso da armadura ancestral. "Protegerei a princesa com minha vida! Ela não será de vocês!"

O bruxo soltou uma gargalhada, dando um leve cutucão em Karnag. "Diga-me que não vê a comicidade nisso.”

"Meu caro," Karnag pigarreou, esforçando-se para conter o riso. "Não almejamos a princesa, pelo menos não da maneira que imaginas."

"Sei muito bem o que desejam, criaturas nefastas! Anseiam pelo poder, pela fama, pelas riquezas que ela pode trazer, e quem sabe, até por atos impuros com a inocente e frágil princesa..."

“Pelos deuses, silêncio!" A dama interrompeu com uma voz firme. Para a surpresa do cavaleiro, ela desprendeu sua antiga espada, há tempos cravada no solo, erguendo-a com uma só mão e apontando-a em sua direção. "Quer proteger a princesa? Estamos tentando é proteger vocês dela. Acha mesmo que o dragão e tudo isto..." A dama, que se chamava Alice, gesticulou para o cenário ao redor, o grandioso salão do castelo agora em ruínas, invadido por caules grossos de plantas espinhosas e enegrecidas, além de vestígios de incêndio, possivelmente resquícios de um confronto com o dragão. "Foi uma tentativa de impedir o resgate da princesa? Não! Era para evitar que ela se libertasse e espalhasse destruição."

O cavaleiro permanecia boquiaberto, incrédulo com a destreza de uma mulher manejando a espada com tal facilidade, enquanto suas próprias mãos tremiam sob o peso da lâmina. Esta disparidade o irritava levemente e o fazia ignorar as informações dadas por Alice.

"Vilões! Protegerei a princesa a todo custo!" Ele rugiu, lançando-se em direção a Alice. A jovem, com uma graça surpreendente, segurou a barra do vestido com uma mão e, com a outra livre, desferiu um golpe ágil com a espada. O cavaleiro mal pôde ver seu próprio elmo ser cortado ao meio e lançado para longe, revelando seu rosto aos adversários.

"Alice, ele é apenas um garoto," observou Karnag, o orc, ao perceber a juventude do cavaleiro, que aparentava ter não mais que quinze anos.

"E daí? Deveria aprender a se comportar!" Alice respondeu com firmeza, antes de lançar a espada contra uma parede próxima. O cavaleiro assistiu, atônito, enquanto a lâmina cravava-se profundamente na pedra e rachava a superfície ao redor. Como poderia ela possuir tamanha força? Era inconcebível!

"Monstros... Vocês são monstros... E a princesa..." Ele murmurou, recuando.

"Chega!" interrompeu Gavriel, estalando os dedos. "Sua aventura termina aqui. Encontre seu 'felizes para sempre' em outro lugar, certo?"

A última lembrança do cavaleiro, antes de ser magicamente transportado para longe do castelo, foi o sorriso malicioso do bruxo, o olhar severo de Alice ajeitando seu vestido com elegância, e a expressão compreensiva de Karnag.

***

"Não entendo esse fascínio por princesas, reinos, monarquias... Como se houvesse algo mágico nisso. E olha que eu entendo de magia, afinal, sou um bruxo," divagava Gavriel, enquanto subiam cuidadosamente uma escada em espiral, desviando dos degraus ausentes.

"Será que sentem falta da época em que eram oprimidos pelos nobres? Quando o governo era exercido por reis e rainhas alheios, que jamais poderiam ser responsabilizados por seus erros, já que supostamente eram 'escolhidos pelos deuses' ou, neste caso, pelas fadas! Enfrentamos fome, guerras, pestes, e os monarcas pouco fizeram para ajudar. Só aumentavam os impostos e ainda por cima contribuíam para as mazelas... Quando as monarquias caíram, foi um alívio! E agora, vemos esses aventureiros correndo para os antigos castelos, buscando libertar princesas e tentar restaurar a monarquia! Não faz sentido!"

"É por isso que eu disse antes que os contos de fadas são perigosos. Eles não são apenas histórias fantasiosas; são instrumentos para propagar um ideal de mundo. Um mundo onde a monarquia é glorificada e heroína..." Karnag ponderou, compartilhando seu ponto de vista crítico.

"E nós somos os vilões neste mundo “ideal”, não é mesmo?" O bruxo acrescentou, em um tom meio tristonho, contrastando com sua característica habitualmente alegre e provocadora.

"Isso não importa!" Alice, que estava alguns degraus à frente, falou sem se virar para os companheiros. "Que eles prefiram viver em uma ilusão ou em nostalgia por uma realidade que nunca existiu e nunca vai existir. Com direito a princesas a serem salvas, reinos benevolentes, limpos e organizados... E isso só torna tudo mais perfeito para as fadas perpetuarem sua influência, isso sim!"

Sim, as fadas, seres que não se encaixam claramente em categorias de bem e mal. Podem ser caprichosas, vingativas, ou até benevolentes, dependendo de suas interações com os humanos. Com seus poderes ligados às forças da natureza, também detêm o poder de decidir sobre o destino da humanidade. Eram elas que escolhiam os reis ou rainhas, conferiam dons especiais aos seus protegidos e... Bem, o resto da humanidade poderia sofrer, enquanto seus escolhidos viviam vidas de privilégios e opulência. No entanto, isso mudou há alguns anos, com a revolução e a queda dos reinos.

"Você acha que foram as fadas que fizeram o dragão guardião desaparecer?" Gavriel questionou em um sussurro, ao alcançarem o topo da escada. Uma porta lateral os guiaria a outra torre, onde supostamente a princesa adormecida estava.

"Fadas não deveriam interferir tanto assim na ordem das coisas... Não depois da revolução," avaliou o Orc.

"Bem, com certeza foram elas que criaram esses panfletos ridículos!" Alice afirmou, exibindo um dos panfletos de propaganda em sua mão.

"De qualquer forma..." Karnag virou seu olhar para a porta e, com um gesto quase reverente, pousou sua grande mão sobre a velha maçaneta, girando-a delicadamente para não a despedaçar. "Devemos cumprir nossa missão. Sem o dragão, a Floresta de Espinhos conjurada há muitos anos pela bisavó de Gavriel, pouco fará para conter a princesa... E se algum dos pretendentes de fato conseguir alcançá-la..." Ele deixou a frase no ar, um vislumbre de apreensão e medo evidente no semblante de seus companheiros.

Ao abrir a porta, o ar frio da noite invadiu o pequeno espaço abafado e mofado onde se encontravam. O trio saiu para um corredor aberto, situado no alto do castelo, mas não estavam sozinhos.

Esferas de energia — uma rosa, uma azul e outra verde — dançavam pelo céu estrelado, soltando risadinhas que soavam como música sob a abóbada celeste. Fadas.

Com um gesto ágil e preciso, o bruxo arqueou o pulso no ar, tecendo o éter em volta. Subitamente, um pentagrama começou a se materializar diante dele, suas linhas cintilantes emergindo do nada, desenhadas com uma precisão meticulosa. O símbolo, repleto de sigilos alquímicos e runas arcanas, brilhava com uma intensidade que parecia pulsar com poder antigo e misterioso.

"Que se danem, fadas..." murmurou ele, voz carregada de desdém. De dentro do pentagrama, chamas de um verde profundo e venenoso irromperam, serpenteando pelo ar com uma vida própria. As fadas, percebendo o perigo iminente, tentaram desviar em uma coreografia aérea desesperada. No entanto, ao atingir o ponto onde antes dançavam, as chamas explodiram em um estouro de luz e som, uma das esferas luminosas — a de cor azul — foi abatida, caindo sobre o telhado enegrecido do castelo com um baque surdo.

Transformando-se diante dos olhos dos presentes, a esfera revelou uma criatura de feições delicadas e etéreas. Suas grandes orelhas pontudas se destacavam em um rosto onde olhos escuros e expressivos ocupavam a maior parte, conferindo-lhe um ar de inocência e astúcia. Seu corpo esguio estava vestido com trajes finos de um azul celestial, que realçavam sua pequenez e a aura de magia que a envolvia. As asas translúcidas, reminiscentes das de uma libélula, tremulavam suavemente em suas costas, enquanto ela inspecionava o braço ferido, de onde escorria um líquido prateado — o sangue dos seres feéricos.

"Mas que droga!" exclamou a fada, sua voz esganiçada tingida de dor e indignação, ao tocar a ferida ainda fresca.

"Irmã! Idiota! Você se deixou ser atingida!" veio a repreensão aguda da outra esfera, esta tingida de rosa vibrante.

"Você acha que eu fiz isso de propósito?" retrucou a fada ferida, sua voz elevando-se em um grito estridente.

"Não se preocupe, vou acertar as outras... Assim, todas vocês vão ficar combinando!" zombou o bruxo, reunindo mais uma vez o poder em suas mãos. Com uma nova invocação, chamas esmeraldinas mais intensas e selvagens surgiram do pentagrama, desta vez mirando as fadas remanescentes com uma precisão mortal. As chamas dançavam no ar, como feras à caça, ansiosas por devorar suas presas feéricas.

"Gavriel! Cuidado!" O alerta de Karnag ressoou poderosamente, enquanto ele estendia seu imenso braço para proteger o companheiro. Flechas zuniam pelo ar, disparadas a partir da torre do outro lado da passagem. Na torre, um jovem de cabelos castanhos e olhar determinado, trajando uma armadura moderna e brilhantemente conservada, ajustava mais flechas ao seu arco, pronto para lançá-las.

"Um pretendente..." murmurou Gavriel, entre dentes cerrados. Eles haviam se esforçado para dissuadir todos aqueles atraídos pelos panfletos para o castelo, mas um havia escapado à sua vigilância, ou talvez, ponderou Gavriel, esse fosse exatamente o pretendente que as fadas planejavam apresentar desde o início, enquanto os outros não passavam de uma mera distração.

"Acerte isso, príncipe encantado!" Alice vociferou. Com uma força surpreendente, ela arrancou um grande pedaço de pedra das antigas paredes do castelo e o arremessou com precisão devastadora. A rocha cortou o ar, dirigindo-se ao jovem arqueiro com a inevitabilidade de um cometa.

O jovem emitiu um grito surpreso, movendo-se com agilidade. Ele saltou para o lado e o projétil de pedra espatifou-se contra o chão onde ele estava momentos antes, enviando fragmentos de pedra e poeira em um raio explosivo.

O som da risada das fadas ecoou, capturando a atenção de Gavriel, que se virou abruptamente em sua direção. Um momento de distração com o pretendente poderia custar caro; ele sabia que jamais deveria subestimar esses seres etéreos. E, como se para confirmar suas suspeitas, a fada caída começou a manifestar seu poder elemental de maneira astuta. Ela convocou a umidade do ar circundante, condensando-a em gotículas de água que flutuavam ao seu redor. Com um aceno delicado, mas firme de sua mão, essas gotas se transformaram em lâminas de gelo afiadas, disparando na direção de Gavriel e Karnag com uma velocidade letal.

Gavriel, em uma resposta imediata, traçou rapidamente símbolos mágicos no ar, invocando uma barreira de fogo esverdeado. As chamas crepitaram ferozmente, derretendo as lâminas de gelo antes que pudessem atingi-los. No entanto, a ameaça estava longe de ser neutralizada.

A fada de cor verde, até então silenciosa, levantou seus braços, tecendo encantamentos que convocaram uma ventania poderosa. Karnag, percebendo o perigo iminente, cravou sua mão no chão de pedra, perfurando-o com sua força. Gavriel se agarrou ao orc, lutando para se manter no lugar contra a força do vendaval que ameaçava arrastá-los.

"Alice!" Gavriel clamou por sua companheira. Ela, mostrando uma determinação igual à de Karnag, fincou suas mãos na parede mais próxima. Com uma força surpreendente, Alice fixou seus pés contra o chão, criando rachaduras nas pedras sob o peso de sua resistência ao vendaval.

"Vocês são bem irritantes!" A fada de tonalidade rosa lançou suas palavras como uma flecha, sua frustração evidente. "Mas mesmo a sua interferência não podem adiar o destino do... Amor verdadeiro!" Suas palavras foram pontuadas por uma risada esganiçada, um som que encontrou eco nas gargalhadas de suas irmãs feéricas.

"Sim! Amor verdadeiro!" ecoou a voz do jovem pretendente, carregada com uma tonalidade sonhadora e distante. Sob a influência das fadas, tornava-se claro que ele, assim como os pretendentes que vieram antes, havia sido transformado em um assim chamado príncipe encantado, cativo de um horrendo encantamento. As fadas teciam em torno desses jovens uma teia de ilusões, fazendo-os crer que estavam perdidamente apaixonados pelas princesas, convencidos de que seu destino era sacrificar tudo para libertá-las de seu aprisionamento. Essa convicção, alimentada por magia, mergulhava cada pretendente em uma fábula pessoal de heroísmo e amor, numa busca ardente, ainda que ilusória, pela salvação de suas amadas princesas.

Ao concluir suas palavras, o príncipe encantado virou-se decisivamente, caminhando em direção à torre. As fadas, entregues à sua diversão, soltavam gargalhadas estridentes, como se estivessem perdidas em um frenesi de loucura. Se ele conseguisse encontrar a princesa e quebrar o encanto que a selava, a situação rapidamente se complicaria, tornando-se quase impossível de reverter.

Consciente da pressão do tempo e da crítica situação em que se encontravam, Gavriel sentia o peso da urgência. Ele desejava ardentemente que seu chamado emergisse claro e distinto, desafiando a caprichosa dança do vento que ameaçava dispersar suas últimas esperanças. O bruxo posicionou dois dedos contra os lábios, mantendo-se firmemente ancorado pelo robusto braço de Karnag, o orc. Inspirando profundamente, Gavriel liberou um assobio estridente e ressoante.

"Olhem só o desespero deles! Até tentando criar alguma música..." zombou a fada de tonalidade rosa.

"Isso é um assobio, irmã! Nem sempre se trata de música..." corrigiu a fada verde, com uma voz ainda mais aguda e esganiçada que a das suas irmãs.

"Irmãs! Cuidado!" a fada azul, caida devido ao ferimento anterior, gritou em alerta.

Porém, as outras fadas mal tiveram tempo de registrar o aviso. De repente, uma ave de plumagem negra como a noite surgiu, lançando-se sobre elas com garras afiadas prontas para o ataque. Era um corvo, emitindo um grasnado furioso, que enfrentava a ventania e investia contra as fadas desprevenidas pela retaguarda.

"Uma ave? Ele invocou uma ave? Que ridículo!" A fada rosa, entre risos de deboche, conjurou um raio de cor rubra em direção ao pássaro. O impacto foi tal que o corvo pareceu explodir em contato com o ataque, desintegrando-se em uma nuvem escura de penas e poeira que se dispersava no ar.

A fada rosa esboçou um sorriso de triunfo, convencida da vitória. No entanto, sua comemoração foi efêmera. Antes que pudessem perceber, a massa escura no ar começou a condensar-se novamente, reconstituindo o corvo em pleno voo. Desta vez, o pássaro, rejuvenescido pelo poder mágico, alcançou a fada verde com suas garras implacáveis, arrancando dela um grito agudo de surpresa e terror.

Com a intervenção do corvo, o vento criado pelas fadas começou a perder força.

"O pretendente está se aproximando! Temos que detê-lo agora!" Gavriel exortou.

"Estou ciente!" Alice respondeu, afastando os cabelos em desalinho provocados pelo vento com um gesto rápido de suas mãos. Sem hesitar, ela já estava a caminho da torre oposta.

O orc prontamente seguiu Alice, mas logo percebeu que Gavriel não os acompanhava. Interrompendo seu avanço, ele girou nos calcanhares, apenas para descobrir que o bruxo estava novamente imerso em sua magia, dedos e varinha se movimentavam enquanto conjurava mais pentagramas no ar.

"Preciso permanecer aqui, distraindo as fadas..." Gavriel notou o olhar preocupado de Karnag e rapidamente adicionou, "Não se preocupe comigo! Eu darei um jeito. Afinal, não estou sozinho!" Foi nesse instante que o corvo pousou majestosamente em seu ombro.

Karnag, embora relutante em deixar seu amigo para trás, compreendeu a gravidade da situação. Sabia que a missão de confrontar a princesa carregava perigos muito mais eminentes que a presença das fadas. Com um aceno de cabeça, ele retomou sua corrida, seguindo Alice.

***

"Escadas, sempre escadas... Por que sempre colocam as princesas em locais tão exaustivos para alcançar?" Alice resmungava ao encarar a escadaria em espiral que se estendia à frente, seguindo o rastro do príncipe encantado.

Karnag abriu a boca, pronto para oferecer seu ponto de vista, mas foi prontamente interrompido pela garota.

"Sim, eu entendo. As princesas não deveriam ser facilmente acessíveis. Lembro que esse foi o propósito dos revolucionários ao selarem as princesas pelos quatro cantos do mundo, anos atrás. Mas isso não me impede de reclamar, certo?" Ela erguia o vestido ligeiramente, facilitando seus movimentos pelos degraus.

"Talvez se você não estivesse de sapatos de salto alto..." Karnag não pôde deixar de comentar, observando os sapatos pouco práticos que sua companheira insistia em usar.

"Não comece, Karnag! Já tivemos essa conversa... Minha escolha de roupa e estilo não vai mudar só porque estamos em uma missão!" Alice retrucou. E, como se para provar seu ponto, ela acelerou o passo escada acima, deixando para trás o orc já ofegante com o esforço.

À medida que subiam, contornando uma das curvas da escadaria, uma flecha foi disparada em sua direção. Alice, com reflexos ágeis, desviou-se, saltando para trás e quase fazendo Karnag tropeçar ao esbarrar nele.

"Afastem-se, a princesa é minha!" A voz do pretendente ecoou da parte mais alta da escada.

"Se eu não nutrisse tanto desprezo por princesas, até poderia argumentar sobre a quão problemática é essa ideia de objetificar uma mulher a chamando de minha..." Alice murmurou, arrancando a flecha que se cravara na parede e destruindo-a ao fechar o punho sobre o eixo de madeira.

O pretendente, percebendo-se seguido de perto, soltou uma exclamação surpresa e acelerou ainda mais sua subida, com Alice e o ofegante orc pisando em seus calcanhares.

Eles haviam chegado ao topo da torre, confrontados por uma porta imponente que se erguia à sua frente. Esta não era uma simples barreira de madeira; era uma obra de arte majestosa, ornamentada com intrincados traçados esculpidos na madeira nobre, narrando a história do reino. Os relevos delicadamente talhados exibiam uma linhagem de reis e rainhas, cada figura acompanhada por seus descendentes. Mas, destacando-se entre todos esses relatos históricos, em uma representação dourada quase divina, estava a princesa. Porém, essa princesa, exaltada em dourado sobre o portal, não era uma descendente legítima do último rei deste reino agora em ruínas. Era essencial não se deixar enganar pelo prestígio de seu título. Na verdade, o nome "princesa" não passava de uma artimanha, uma peça-chave em uma manipulação muito mais antiga e complexa. A verdade é que ela era uma criação das fadas, parte de um ato antigo e reiterado por esses seres feéricos para infiltrar e exercer influência direta nos reinos humanos que eles próprios haviam estabelecido.

De acordo com lendas ancestrais, as fadas frequentemente engajavam-se na troca de bebês humanos por changelings[1], seres feéricos incrivelmente semelhantes às crianças originais. Curiosamente, esses changelings eram sempre femininos, crescendo para se tornarem princesas com poderes especiais e, muitas vezes, destrutivos. Tais entidades mantinham-se nos reinos, assegurando a supremacia das fadas sobre os governantes humanos. Eles protegiam a estrutura monárquica, eliminando insurgências ou quaisquer ameaças de revolta que pudessem perturbar a ordem "harmoniosa" imposta pelas fadas.

A revolução e a subsequente queda dos reinos só se tornaram possíveis pelo selamento dessas princesas feéricas. Ao conter seus poderes formidáveis, o desmantelamento da monarquia e o fim da influência dominante das fadas foram apenas mais um passo na busca por libertação e um novo começo.

"Espere!" Alice exclamou, observando o príncipe encantado estender a mão em direção à porta. No instante em que seu toque se encontrou com a madeira, a estrutura inteira resplandeceu com uma luz mágica. A porta, desprovida de qualquer maçaneta, era incrustada de ferro – um mineral conhecido por sua capacidade de suprimir poderes feéricos. Somente um feitiço não-feérico poderia desencadear sua abertura, e esse encanto particular era ativado unicamente por um toque humano.

"Minha amada!" o rapaz murmurou, maravilhado ao testemunhar a porta se abrindo lentamente, completamente alheio ao frio gélido que começou a vazar do aposento selado, juntamente com uma névoa escura que se esgueirava por entre as frestas. Sem hesitar, Alice avançou, aplicando uma rasteira no homem, fazendo-o tropeçar e cair de bruços no chão, logo abaixo da entrada agora escancarada.

"Muito bem, Alice!" Karnag elogiou, acelerando o passo para acompanhar a destreza e a rapidez de sua companheira na ação.

"Não é hora de comemorar..." Alice murmurou baixinho, fez um gesto com o queixo em direção ao quarto agora revelado. Lá, através da névoa, emergia o vislumbre do que parecia ser o aposento típico de uma dama da nobreza, dominado por uma cama grande adornada com tecidos finos e delicados. A mobília e as decorações, todas preservadas como se o tempo tivesse parado, contrastavam fortemente com a destruição e ruínas que assolavam o restante do castelo.

Na cama, uma silhueta podia ser discernida, parcialmente velada por uma cortina que pendia sobre parte do leito.

"Meu príncipe encantado... você veio..." Uma voz ecoou, delicada e sedutora, preenchendo o ar como se viesse de todas as direções. Contudo, Alice conhecia bem a origem daquela voz. Mesmo em sono profundo, a changeling ainda exercia um certo poder.

"Você está ouvindo isso, Karnag?" ela perguntou, as mãos pressionando as próprias orelhas em busca de clareza.

"Ouvindo? O que está falando?" o orc olhou para ela, uma expressão de preocupação marcando seu rosto.

"Minha princesa! Estou aqui por você! Vou libertá-la!" o príncipe encantado, que havia caído, declarou, levantando-se rapidamente.

"Nem pense nisso!" Alice repreendeu, tentando detê-lo, sem perceber que ele havia sacado uma adaga e partiu para o ataque.

A lâmina da adaga rasgou parte do vestido de Alice, mas sua agilidade impediu que a arma lhe causasse um ferimento grave; apenas um corte superficial se formou em sua pele. A garota soltou um palavrão, cobrindo instintivamente a parte da frente do vestido agora danificado. Porém, sem perder o ímpeto de seu movimento, ela girou o corpo e aplicou um chute robusto que lançou a marionete das fadas para longe. O rapaz voou pelo quarto enevoado e se estatelou contra um armário, estilhaçando-o com a força do impacto.

"Alice! Você está bem?" Karnag correu ao seu lado, revirando os bolsos de sua calça em busca de algo que pudesse ser útil, frustrado por não ter um kit de primeiros socorros à mão.

"Estou bem..." Alice respondeu, enquanto segurava a parte rasgada do vestido, revelando as linhas vermelhas do corte que já cicatrizavam com uma velocidade chocante.

"Impressionante..." A voz que comentou não pertencia a Karnag, mas sim à princesa, que os observava de forma onipresente.

"Você possui um dom," a princesa continuou, sua voz envolta em um charme enigmático. "Um dom concedido pelas fadas... E ainda assim nos ataca? Como pode renegar as vantagens tão evidentes em seu próprio corpo?"

“Dom? Eu nunca pedi por isso...” Alice disse, sua voz tremendo com a raiva que sentia. “Esse 'Dom', como você o exalta, só trouxe desgraça e loucura para a minha família... Não é uma dádiva, é uma maldição!”

“Com quem você está falando?” Karnag perguntou, franzindo o cenho em confusão. “A princesa... Ela está falando com você?” Ele rapidamente uniu os pontos, embora isso não diminuísse sua preocupação.

“Não deveria ter herdado isso... Meu pai deixou bem claro que mulheres não deveriam possuir esse Dom. Ele foi explícito quando tentou me matar, para que esse poder passasse para o próximo herdeiro. Um homem, que, segundo ele, poderia verdadeiramente ser um príncipe encantado ideal...” Alice continuou, a irritação crescendo em cada palavra.

“Oh! Que infortúnio, criança...” a changeling respondeu com uma voz chorosa, quase maternal. “Este Dom talvez não fosse realmente destinado a você... Mas eu posso ajudá-la a se livrar dessa carga, basta... remover o selo.”

“Alice, não a escute, seja lá o que a princesa esteja dizendo!” Karnag interveio, alarmado. “Lembre-se de nossa missão!”

"Eu me lembro muito bem..." disse Alice, caminhando cautelosamente em direção à cama onde a princesa permanecia adormecida.

"Alice! Não!" gritou o orc, mas seu tamanho imponente teve pouco efeito sobre a determinação de sua companheira. Ele tentou segurá-la, mas Alice habilmente se desvencilhou, empurrando-o para trás com tanta força que ele colidiu de costas com um pilar.

"Sim, venha... Liberte-me... E seu sofrimento acabará. Você se tornará uma mulher normal. Por que desejar tanto poder? Mulheres devem ser delicadas, submissas, prontas para serem salvas, e não sair por aí lutando, enfrentando batalhas... Você está perdendo sua feminilidade, Alice... Mas eu posso ajudá-la," sussurrava a princesa, sua voz doce e manipuladora preenchendo o ar, enquanto Alice se aproximava cada vez mais do leito. As mãos da garota tremiam ao afastar a cortina, revelando a figura de uma mulher de beleza etérea.

A princesa jazia sobre a cama majestosa, uma visão que desafiava a lógica e o tempo. Sua aparência era de uma jovem não mais velha que vinte anos, com longos cabelos dourados que derramavam sobre os travesseiros como um rio de ouro puro. Sua pele era alva e quase translúcida, conferindo-lhe um ar quase fantasmagórico, e seus lábios, pintados de um vermelho vivo, contrastavam vivamente com a palidez de seu rosto. Ela parecia simplesmente adormecida, pronta para despertar com o menor dos sussurros. No entanto, ela estava presa naquele estado há 200 anos, imune ao envelhecimento e aos rigores do tempo, uma eternidade encapsulada em um momento. Era uma visão ao mesmo tempo bela e aterradora, um lembrete pungente da estranha maldição que a envolvia.

"Me beije... Sei que isso pode parecer estranho, mas faça esse sacrifício para sua libertação," comandou a changeling. Alice se aproximou, inclinando-se à frente, seu rosto se aproximando gradualmente do rosto da princesa adormecida. Cada vez mais perto, até que...

"Você não faz o meu tipo," Alice murmurou, recuando brevemente antes de trazer sua cabeça de volta com ímpeto e acertar uma poderosa cabeçada na princesa adormecida.

Um grito agudo de horror e dor escapou da princesa, claramente surpreendida por aquele ataque bruto. Alice recuou, com sangue rubro mesclado ao prateado pingando de sua testa. Ela observou enquanto a face da princesa começava a se transformar sob o impacto do golpe. Mesmo com os olhos fechados, a pele da princesa tornava-se acinzentada, e a cor de seu cabelo empalidecia... Agora ela parecia mais uma fada grotesca do que humana — uma versão maior, mais magra e deformada das pequenas fadas com quem tinham batalhado momentos atrás.

"Como pode? Sua selvagem! Não quer se libertar?" a voz da princesa reverberava pelo quarto.

"E quem disse que esse Dom me prende?" Alice respondeu, jogando seus cabelos dourados para trás com um gesto dramático. "Quem disse que ser forte me torna menos mulher? Não estou sob o domínio do meu pai ou de sua família... Nesse sentido, estou livre para viver minha vida. E posso ser feminina e gostar de bater em monstros mentirosos como você!"

Essa resposta provocou outro grito estridente da figura adormecida da princesa.

"Nossa! Dessa vez, até eu ouvi..." Karnag se aproximou do leito, segurando um livro em mãos.

"Renove o selo," Alice falou com um sorriso para o companheiro, que prontamente assentiu, abrindo o livro e começando a entoar as palavras cujo efeito se assemelhava a pesadas correntes prendendo a princesa. Era óbvio que ela estava tentando se libertar, mas a cada palavra pronunciada por Karnag, essa possibilidade diminuía drasticamente...

***

"Eu sinceramente preciso de uma grande caneca de cerveja..." disse Gavriel, enquanto se acomodava sobre o teto da carruagem que Karnag preparava para a partida.

"Uma cerveja gelada, espumante... Acho que merecemos uma ida à taverna! Por minha conta!" exclamou o bruxo, visivelmente animado, enquanto seu corvo grasnava em concordância em seu ombro.

"Eu preferiria um champanhe..." declarou Alice, que já havia trocado seu vestido por uma versão azulada ainda mais deslumbrante que o anterior. Gavriel arqueou as sobrancelhas, surpreso com a mudança de vestimenta, mas nem o orc nem Alice pareciam dispostos a compartilhar os detalhes de suas próprias aventuras.

"E as outras fadas?" quis saber o orc.

"Uma eliminada, duas fugiram... Parece que sentiram que o selo foi renovado e escaparam antes de serem derrotadas por completo," explicou o bruxo, encolhendo os ombros.

"Será que deveríamos persegui-las?" Karnag ponderou, ajustando os óculos no seu grande nariz.

"Eu digo que a missão está concluída," pontuou Alice. "A princesa está de fato adormecida. O que devemos fazer agora é procurar outro dragão para guardar a região e talvez expandir a floresta de espinhos."

"Sim, sim... Mas isso pode esperar!" choramingou Gavriel. "Primeiro a taverna, depois podemos pensar no trabalho, certo?"

O orc soltou um suspiro e um leve sorriso se formou em seus lábios, o que foi incentivo suficiente para o bruxo erguer as mãos e soltar mini fogos de artifício.

"Vamos logo, então... Eu também preciso tomar um banho. Estou fedendo a pó mágico de fada... E isso fede muito!" reclamou Alice, subindo na carruagem sem cavalos. Karnag e o corvo a seguiram, enquanto o bruxo se acomodava ainda no teto. Com um aceno de sua varinha, a carruagem começou a se mover, rodando sobre a estrada de pedregulhos e lama, afastando-se das ruínas do castelo que gradualmente se envolvia em brumas espessas.



[1] "changeling" é uma criatura deixada pelas fadas no lugar de um ser humano real, geralmente uma criança, que as fadas sequestraram. Esse intercâmbio é feito em segredo, e os pais da criança humana frequentemente não percebem a troca inicialmente. O changeling pode aparecer como uma criança normal à primeira vista, mas geralmente possui características estranhas ou comportamentos anormais que eventualmente podem levantar suspeitas. A crença em changelings era especialmente prevalente na Europa durante a Idade Média e tem sido interpretada por alguns como uma maneira de explicar doenças ou deficiências que na época eram pouco compreendidas. As histórias de changelings são encontradas em muitas culturas europeias, incluindo a Irlandesa, Escocesa, e Nórdica, entre outras.

Entre a Chuva e o Sol

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