sábado, 20 de abril de 2024

A loja

 


Cidade Alta, conhecida também pelo seu epíteto de Centro, ergue-se como o bairro primordial da vibrante cidade de Natal, orgulhosamente ostentando a honra de ser o primeiro a ser fundado na capital, numa data tão simbólica quanto o Natal de 1599. As ruas da Cidade Alta, pulsavam com vida comercial, eram bordadas por uma tapeçaria de lojas diversas, estendendo-se ao longo da majestosa Avenida Rio Branco e serpenteando pela Rua João Pessoa. Nas suas imediações, o passado e o presente se entrelaçam: lojas de variados tipos e prestigiosas instituições financeiras contam histórias de um tempo em que este era o coração incontestável do comércio natalense.

Contudo, como se presencia em muitos capítulos da história, a Cidade Alta hoje enfrenta uma maré de mudanças. A concorrência acirrada e a migração de clientes e comerciantes para os colossais shoppings centers da capital e para o resiliente bairro do Alecrim provocaram uma queda na sua atividade comercial outrora florescente. A pandemia de COVID-19, um golpe inesperado e avassalador, fechou as cortinas de muitos estabelecimentos, deixando nas ruas ecos de um passado mais próspero.

Neste cenário de lojas cerradas e ruas que murmuram memórias de dias mais movimentados, a missão de encontrar uma loja específica na Cidade Alta parecia, para ela, repleta de incongruências. Não era a visão das fachadas abandonadas que o inquietava; era algo mais sutil, escondido nas entrelinhas das instruções que recebera. Buscar a loja à noite, precisamente à meia-noite, e com a janela de uma única hora até o soar da 1h da madrugada, transformava a tarefa em algo quase místico. Era um jogo de esconde-esconde no véu da noite, onde o destino era uma loja misteriosa, escondida nas sombras próximas à Praça André de Albuquerque, um ponto de referência que parecia ser mais do que apenas um marco geográfico.

Ela caminhava pela praça com um terror sutil pulsando em suas veias, segurando firmemente o papel com instruções meticulosamente transcritas de uma conversa no WhatsApp — uma troca de mensagens com uma pessoa que conhecia apenas por intermédio de outra. Essa pessoa distante prometia ser a chave para desvendar e remediar os problemas que pesavam sobre ela.

A praça, o coração geodésico da cidade e seu marco zero, estava povoada por figuras que a sociedade muitas vezes opta por não enxergar. Mendigos e moradores de rua adornavam o cenário com suas presenças marcadas pelas adversidades da vida. Alguns vagueavam com um olhar perdido, capturados em seus próprios labirintos mentais. Outros, solitários, buscavam companhia na amargura de uma garrafa partilhada — uma garrafa de plástico que, enganosamente semelhante a um refrigerante, guardava um líquido incolor e alcoólico que prometia um esquecimento temporário. E ainda havia os que, entregues às sombras, se deixavam levar por vícios mais escuros.

Enquanto ela avançava, uma tremura sutil a acompanhava, e um rosário de pragas silenciosas tecia-se em sua mente. Ela questionava a própria sanidade por se encontrar ali, naquela situação, encarando o perigo potencial da noite e do desconhecido.

Ela murmurava palavras de encorajamento, uma ladainha para acalmar os batimentos descompassados de seu coração. "Mas vale a pena... se o que a loja oferecer for real, tudo valerá a pena." Era um sussurro leve, uma carícia na turbulência de sua inquietação.

A penumbra da noite era parcimoniosa, concedendo apenas vislumbres sob a luz frugal dos postes. Foi nessa atmosfera opaca que uma voz rouca rompeu o silêncio. "Olá, mocinha... Tá perdida, é?" Um vulto se aproximava, oscilando como uma chama ao vento. Ela mal podia discernir sua forma na escassa iluminação.

"Eu..." Ela recuou, a urgência de sua busca chocando-se com a cautela. Já era meia-noite, e cada minuto escorria como areia entre os dedos. "Eu estou à procura de algo..."

"Posso ajudar... com certeza posso..." A figura se aproximava, e o odor de álcool preenchia o ar, uma presença pungente. "Venha cá, deixe o Tio Chico ver você melhor. Não vou te machucar..."

“Você sabe onde fica a loja chamada... Arandu Pyharegua[1]?" As palavras escaparam apressadas de seus lábios, tropeçando apenas na pronúncia do nome, ainda incerto em sua língua.

O homem estacou como se tivesse sido atingido por um raio invisível. "Arandu... Você disse?" Sua voz era agora um sopro, e seu corpo, antes invasivo, recuava. "O que você quer com... isso?”

Determinada, ela sabia que não devia satisfações a ninguém. Por que deveria justificar a busca por uma loja enigmática, ausente do Google Maps e sem vestígios digitais como uma página no Instagram? Não estava ali para explicar suas razões a um estranho, para revelar por que seguia instruções que a maioria consideraria insanas, tudo para curar o que a afligia. Não, ela não tinha essa obrigação. Com firmeza, mas sem revelar sua ansiedade, ela perguntou:

"Então, você sabe onde fica a loja? Pode me dizer onde ela...?"

Antes que pudesse terminar a frase, o homem, como se tocado pelo sopro gelado do medo, virou-se e desapareceu na noite, deixando-a com uma mistura de confusão e frustração.

Eram trinta minutos após a meia-noite e o desespero começava a se entranhar em seu ânimo. Os vultos que antes povoavam a praça agora se esquivavam, recuando como se ela fosse portadora de alguma maldição invisível. Em meio a essa rejeição súbita e à crescente ansiedade, algo extraordinário aconteceu: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, um marco da praça, começou a se iluminar de dentro para fora.

A igreja, um monumento de tempos idos, exibia uma fachada que harmonizava a austeridade colonial com retoques de modernidade. As paredes eram dominadas pelo branco puro, em contraste com os detalhes amarelos que realçavam com delicadeza as janelas, cornijas e o frontão. Era uma construção sólida e digna, com janelas de pedra de molduras discretas e persianas de madeira, remanescentes da arquitetura eclesiástica do Brasil colonial.

À direita, a torre do sino se erguia, adornada com ondulações e volutas do barroco, terminando em um pináculo afilado. O relógio, que antes parecia congelado no tempo, agora girava com um ímpeto inusitado.

Ela protegeu os olhos com a mão, ofuscada pelo súbito brilho que emanava do templo, perplexa diante de um fenômeno que desafiava qualquer razão. Qual missa seria celebrada a tal hora? E ainda mais estranho era o fato de que as portas da igreja, apesar do espetáculo luminoso, continuavam intransigentemente fechadas.

"Mas... o que está acontecendo?" Ela murmurou para si mesma, já que os moradores de rua que anteriormente ocupavam a praça haviam desaparecido. Sim, não restava mais ninguém; a praça e as ruelas adjacentes estavam desoladoramente vazias.

De repente, outra fonte de luz cortou a escuridão, em contraponto à igreja, do outro lado da praça. Ali surgia o contorno de uma loja que não estava ali antes, com uma entrada convidativa que se abria diretamente para a calçada. Estava banhada em luz, quase ofuscante em sua intensidade. Ela tentava, em vão, discernir alguma característica distintiva daquela loja — um letreiro, um design peculiar, um logotipo — ou mesmo a cor de suas paredes e detalhes de sua vitrine. No entanto, uma voz interna, um sussurro intuitivo, a impelia em direção àquela luz, dizendo-lhe que era exatamente o lugar que procurava em sua missão.

Ela avançou, decidida, e cruzou o limiar da loja. O contraste era gritante: do lado de fora, a luz era tão intensa que quase a cegou, mas agora, adentrando o que parecia ser um estabelecimento comercial, ela foi engolida por uma escuridão quase tangível. A escuridão era tão completa que ela se viu obrigada a buscar refúgio na luz do celular, acionando a lanterna para dissipar as sombras que a rodeavam. A luminosidade que ainda emanava da igreja era inútil aqui; parecia haver uma barreira invisível que impedia que qualquer facho daquele brilho invadisse o interior da enigmática loja.

"Ô de casa? Alguém?" Sua voz soou frágil, tremendo na vastidão escura. Uma pontada de dúvida a assaltou, uma voz interna sussurrando que talvez fosse um erro ter vindo.

"Bem-vinda", sussurrou uma voz a seu lado, causando-lhe um sobressalto. Ela não havia percebido ninguém até então, mas agora vislumbrava uma figura: uma mulher de estatura baixa, com uma leve curvatura nos ombros que sinalizava uma idade avançada. Seus cabelos, longos e lisos, eram de um negro tão intenso que se confundiam com as sombras que os envolviam. Seus olhos, porém, eram um contraste vivo; brilhavam com uma luz própria, semelhante a brasas tenazes que se recusam a se apagar, remanescentes de uma fogueira de São João há muito esquecida.

"Fico feliz que tenha encontrado minha loja", continuou a mulher, sua voz possuía uma qualidade melódica e, ao mesmo tempo, carregava uma profundidade que parecia reverberar pelo espaço confinado. Era curioso, pois o local não parecia ter as dimensões necessárias para gerar ecos.

"Eu... S-sim... Eu também estou feliz", ela conseguiu responder, ainda parcialmente imobilizada pela surpresa. Por um instante, o impulso de fugir a dominou. Seus olhos desviaram-se brevemente para a porta, mas foram rapidamente atraídos de volta pelo som de palmas. A mulher estava aplaudindo, e a cada batida, a loja se iluminava mais, não pela ignição de lâmpadas, mas por velas que se acendiam magicamente, suas chamas dançando à vida sem a intervenção de um único fósforo.

Ela franziu o cenho, esfregando os olhos na tentativa de compreender a visão diante de si. Parecia estar em uma loja, ou melhor, em um espaço repleto de estantes abarrotadas com recipientes de todas as formas e matizes. Contudo, o conteúdo dos frascos permanecia um enigma; fosse pelo vidro embaçado ou pela camada de sujeira, era impossível discernir o que estava selado em seu interior.

"Então, qual é o seu desejo, Luana?" a mulher indagou, assumindo seu posto atrás de um balcão, onde começou a esfregar um dos recipientes com um pano que mais parecia contribuir para a sujeira do que para a limpeza.

"Como você sabe o meu nome?" ela perguntou, alarmada, apegando-se ao seu celular como um talismã.

"Isso importa? Você veio até aqui, à meia-noite, em busca de uma loja que só abre neste horário... Não é o momento para se preocupar com tais detalhes, filha," respondeu a proprietária, sem levantar o olhar para sua cliente.

"Eu... Bem... Me disseram que você pode resolver problemas. Realizar desejos. Curar doenças," disse ela, com a voz desvanecendo quase em um sussurro nas últimas palavras.

"Então, te informaram corretamente," a mulher replicou, interrompendo a fricção em um frasco para começar em outro, com a mesma atenção meticulosa.

"Eu..." Ela umedecia os lábios, reunindo coragem para articular as palavras que carregava consigo, pesadas como pedras no coração. "Estou morrendo... Recebi um prognóstico com poucos meses de vida. Por isso, vim até aqui, na esperança de que você pudesse me curar."

"Ah, eu percebi o odor pútrido da morte assim que você cruzou a soleira. Eles estavam certos sobre você, parece. Às vezes cometem erros... Fazem a previsão de morte e o fim não vem. Mas no seu caso, a previsão foi acertada," disse a dona da loja, sua voz desprovida de qualquer traço de compaixão, o que fez o semblante de Luana perder ainda mais a cor ante suas palavras.

"Você pode me curar?" Luana insistiu, sua voz tremulava, embargada pela emoção que lutava para conter.

A mulher finalmente a encarou, e mesmo com a loja agora iluminada pelo fogo místico das velas, o brilho em seus olhos continuava a arder intensamente. "Há um preço a ser pago. Não sei se já te informaram sobre isso," ela declarou. Nesse instante, o som de batidas ressoou da igreja, cujas portas permaneciam inabalavelmente fechadas. Luana sentiu um arrepio de temor.

"Bem... Não me disseram nada," ela admitiu, uma corrente gelada parecendo escorrer ao longo de sua espinha.

“Eu tenho algum dinheiro guardado na conta corrente e na poupança..." ela começou, já estendendo a mão em direção à bolsa para buscar o cartão de crédito. No fundo, questionava-se se aquela figura enigmática aceitaria um pagamento via Pix, embora a loja tivesse um ar tão ancestral que parecia improvável que houvesse ali uma máquina de cartão.

"Basta um nome," disse a mulher, esboçando um sorriso onde o branco dos dentes reluzia. "O nome de uma criança que você conheça."

"Uma criança?" Luana exclamou, o medo súbito cristalizando-se em sua voz.

"Como você, eu padeço de uma condição... incurável," a dona da loja confessou, retomando a tarefa de limpar um recipiente, este notavelmente maior e, para o desconforto de Luana, visivelmente ocupado por um líquido de tom rubro-escuro. "Para aliviar meus sintomas, preciso consumir certas... partes do corpo humano."

Com um gesto tranquilo, ela destampou o recipiente, e um odor fétido, misturado com o cheiro metálico do sangue, invadiu o ar. As batidas vindas da porta da igreja intensificaram-se, ecoando pela praça com um ritmo quase desesperado.

Luana levou a mão à boca, nauseada pela revelação.

"Fígados," continuou a mulher, imperturbável diante do horror de Luana. "Mas não de qualquer um — apenas fígados infantis servem ao meu propósito." Ela falava com um interesse mórbido, vertendo o líquido escuro em um copo sujo, os lábios umedecidos pela antecipação do banquete macabro.

"Fígados..." Luana ecoou em um sussurro, sua voz quase se perdendo no ar carregado da loja.

"Sim, fígados. Mas sua anuência é essencial," disse a mulher, saboreando o líquido do copo com uma avidez que deixou Luana estática. Ela se sentia estranhamente ancorada ao chão, as pernas pesadas como chumbo, a saída da loja uma miragem distante.

"Não posso prosseguir sem o seu consentimento. São as regras do meu... tratamento," continuou a mulher, limpando a boca manchada de vermelho com um dos panos encardidos sobre o balcão. "E não se iluda pensando que minha própria enfermidade me impede de curar a sua. O mal que me aflige não tem nexo com as doenças dos mortais. Por isso, fique tranquila... Você pode ser curada. O custo, no entanto, é o nome de uma criança que você conheça. Apenas isso."

Os segundos se arrastavam enquanto Luana ponderava sua escolha. A mulher havia desviado o olhar, ocupada novamente em limpar outro recipiente. Luana reparou, com um arrepio, que cada frasco na loja continha o mesmo líquido vermelho-escuro que ela havia visto ser derramado no copo. Como não percebera isso antes? Seriam todos provenientes de fígados? A situação era tão surreal... Talvez fosse apenas um delírio, uma alucinação provocada pelo tumor que os médicos alertaram que poderia acontecer.

Se tudo não passasse de um sonho ou um pesadelo, qual seria o problema em dizer um nome? Não seria real. Poderia ser o filho da sua irmã, o bebê do seu primo, as gêmeas da vizinha, o filho do seu chefe... Ou até aquelas crianças anônimas do condomínio, cujos nomes e famílias eram desconhecidos. Qualquer um deles serviria, não é verdade?

Contudo, a questão moral se impunha: era justo fazer tal troca? Consentir com isso? Ela ansiava por mais tempo de vida, por experiências ainda não vividas, por sonhos não realizados — e ter filhos era um deles.

O retumbar das batidas da igreja amplificava-se, ecoando em um ritmo que parecia imitar as aceleradas batidas de seu coração.

"E então? Qual será sua decisão? A meia-noite não dura para sempre," pressionou a proprietária da loja, a impaciência tingindo sua voz. "E devo alertá-la que não estou sempre aqui. Minha loja se move, sou chamada para outros lugares, outros estados..."

As palavras da mulher se misturavam à cacofonia de dúvidas que inundavam a mente de Luana. O constante bater que vinha da igreja não lhe concedia um momento de paz para ponderar. Era uma chance única...

Com os lábios secos, Luana passou a língua por eles. Abriu a boca. E então, ela falou.

No exato momento em que sua voz se projetou, o sino da igreja soou, um som poderoso que vibrava pelas paredes e preenchia o espaço. Estranhamente, as badaladas pareciam entrelaçar-se com sons que lembravam o choro de crianças.

 



[1] Arandu pyharegua em guarani significa Sabedoria da Noite.

 


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