Cidade
Alta, conhecida também pelo seu epíteto de Centro, ergue-se como o bairro
primordial da vibrante cidade de Natal, orgulhosamente ostentando a honra de
ser o primeiro a ser fundado na capital, numa data tão simbólica quanto o Natal
de 1599. As ruas da Cidade Alta, pulsavam com vida comercial, eram bordadas por
uma tapeçaria de lojas diversas, estendendo-se ao longo da majestosa Avenida
Rio Branco e serpenteando pela Rua João Pessoa. Nas suas imediações, o passado
e o presente se entrelaçam: lojas de variados tipos e prestigiosas instituições
financeiras contam histórias de um tempo em que este era o coração
incontestável do comércio natalense.
Contudo,
como se presencia em muitos capítulos da história, a Cidade Alta hoje enfrenta
uma maré de mudanças. A concorrência acirrada e a migração de clientes e
comerciantes para os colossais shoppings centers da capital e para o resiliente
bairro do Alecrim provocaram uma queda na sua atividade comercial outrora
florescente. A pandemia de COVID-19, um golpe inesperado e avassalador, fechou
as cortinas de muitos estabelecimentos, deixando nas ruas ecos de um passado
mais próspero.
Neste
cenário de lojas cerradas e ruas que murmuram memórias de dias mais
movimentados, a missão de encontrar uma loja específica na Cidade Alta parecia,
para ela, repleta de incongruências. Não era a visão das fachadas abandonadas
que o inquietava; era algo mais sutil, escondido nas entrelinhas das instruções
que recebera. Buscar a loja à noite, precisamente à meia-noite, e com a janela
de uma única hora até o soar da 1h da madrugada, transformava a tarefa em algo
quase místico. Era um jogo de esconde-esconde no véu da noite, onde o destino
era uma loja misteriosa, escondida nas sombras próximas à Praça André de
Albuquerque, um ponto de referência que parecia ser mais do que apenas um marco
geográfico.
Ela caminhava pela praça com um
terror sutil pulsando em suas veias, segurando firmemente o papel com
instruções meticulosamente transcritas de uma conversa no WhatsApp — uma troca
de mensagens com uma pessoa que conhecia apenas por intermédio de outra. Essa
pessoa distante prometia ser a chave para desvendar e remediar os problemas que
pesavam sobre ela.
A praça, o coração geodésico da
cidade e seu marco zero, estava povoada por figuras que a sociedade muitas
vezes opta por não enxergar. Mendigos e moradores de rua adornavam o cenário
com suas presenças marcadas pelas adversidades da vida. Alguns vagueavam com um
olhar perdido, capturados em seus próprios labirintos mentais. Outros,
solitários, buscavam companhia na amargura de uma garrafa partilhada — uma
garrafa de plástico que, enganosamente semelhante a um refrigerante, guardava
um líquido incolor e alcoólico que prometia um esquecimento temporário. E ainda
havia os que, entregues às sombras, se deixavam levar por vícios mais escuros.
Enquanto ela avançava, uma
tremura sutil a acompanhava, e um rosário de pragas silenciosas tecia-se em sua
mente. Ela questionava a própria sanidade por se encontrar ali, naquela
situação, encarando o perigo potencial da noite e do desconhecido.
Ela murmurava palavras de
encorajamento, uma ladainha para acalmar os batimentos descompassados de seu
coração. "Mas vale a pena... se o que a loja oferecer for real, tudo
valerá a pena." Era um sussurro leve, uma carícia na turbulência de sua inquietação.
A penumbra da noite era
parcimoniosa, concedendo apenas vislumbres sob a luz frugal dos postes. Foi
nessa atmosfera opaca que uma voz rouca rompeu o silêncio. "Olá,
mocinha... Tá perdida, é?" Um vulto se aproximava, oscilando como uma
chama ao vento. Ela mal podia discernir sua forma na escassa iluminação.
"Eu..." Ela recuou, a
urgência de sua busca chocando-se com a cautela. Já era meia-noite, e cada
minuto escorria como areia entre os dedos. "Eu estou à procura de
algo..."
"Posso ajudar... com
certeza posso..." A figura se aproximava, e o odor de álcool preenchia o
ar, uma presença pungente. "Venha cá, deixe o Tio Chico ver você melhor.
Não vou te machucar..."
“Você sabe onde fica a loja
chamada... Arandu Pyharegua[1]?"
As palavras escaparam apressadas de seus lábios, tropeçando apenas na pronúncia
do nome, ainda incerto em sua língua.
O homem estacou como se tivesse
sido atingido por um raio invisível. "Arandu... Você disse?" Sua voz
era agora um sopro, e seu corpo, antes invasivo, recuava. "O que você quer
com... isso?”
Determinada, ela sabia que não
devia satisfações a ninguém. Por que deveria justificar a busca por uma loja
enigmática, ausente do Google Maps e sem vestígios digitais como uma página no
Instagram? Não estava ali para explicar suas razões a um estranho, para revelar
por que seguia instruções que a maioria consideraria insanas, tudo para curar o
que a afligia. Não, ela não tinha essa obrigação. Com firmeza, mas sem revelar
sua ansiedade, ela perguntou:
"Então, você sabe onde fica
a loja? Pode me dizer onde ela...?"
Antes que pudesse terminar a
frase, o homem, como se tocado pelo sopro gelado do medo, virou-se e
desapareceu na noite, deixando-a com uma mistura de confusão e frustração.
Eram trinta minutos após a
meia-noite e o desespero começava a se entranhar em seu ânimo. Os vultos que
antes povoavam a praça agora se esquivavam, recuando como se ela fosse
portadora de alguma maldição invisível. Em meio a essa rejeição súbita e à crescente
ansiedade, algo extraordinário aconteceu: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da
Apresentação, um marco da praça, começou a se iluminar de dentro para fora.
A igreja, um monumento de tempos
idos, exibia uma fachada que harmonizava a austeridade colonial com retoques de
modernidade. As paredes eram dominadas pelo branco puro, em contraste com os
detalhes amarelos que realçavam com delicadeza as janelas, cornijas e o
frontão. Era uma construção sólida e digna, com janelas de pedra de molduras
discretas e persianas de madeira, remanescentes da arquitetura eclesiástica do
Brasil colonial.
À direita, a torre do sino se
erguia, adornada com ondulações e volutas do barroco, terminando em um pináculo
afilado. O relógio, que antes parecia congelado no tempo, agora girava com um
ímpeto inusitado.
Ela protegeu os olhos com a mão,
ofuscada pelo súbito brilho que emanava do templo, perplexa diante de um
fenômeno que desafiava qualquer razão. Qual missa seria celebrada a tal hora? E
ainda mais estranho era o fato de que as portas da igreja, apesar do espetáculo
luminoso, continuavam intransigentemente fechadas.
"Mas... o que está
acontecendo?" Ela murmurou para si mesma, já que os moradores de rua que
anteriormente ocupavam a praça haviam desaparecido. Sim, não restava mais
ninguém; a praça e as ruelas adjacentes estavam desoladoramente vazias.
De repente, outra fonte de luz
cortou a escuridão, em contraponto à igreja, do outro lado da praça. Ali surgia
o contorno de uma loja que não estava ali antes, com uma entrada convidativa
que se abria diretamente para a calçada. Estava banhada em luz, quase ofuscante
em sua intensidade. Ela tentava, em vão, discernir alguma característica
distintiva daquela loja — um letreiro, um design peculiar, um logotipo — ou
mesmo a cor de suas paredes e detalhes de sua vitrine. No entanto, uma voz
interna, um sussurro intuitivo, a impelia em direção àquela luz, dizendo-lhe
que era exatamente o lugar que procurava em sua missão.
Ela avançou, decidida, e cruzou
o limiar da loja. O contraste era gritante: do lado de fora, a luz era tão
intensa que quase a cegou, mas agora, adentrando o que parecia ser um
estabelecimento comercial, ela foi engolida por uma escuridão quase tangível. A
escuridão era tão completa que ela se viu obrigada a buscar refúgio na luz do
celular, acionando a lanterna para dissipar as sombras que a rodeavam. A
luminosidade que ainda emanava da igreja era inútil aqui; parecia haver uma
barreira invisível que impedia que qualquer facho daquele brilho invadisse o
interior da enigmática loja.
"Ô de casa? Alguém?"
Sua voz soou frágil, tremendo na vastidão escura. Uma pontada de dúvida a
assaltou, uma voz interna sussurrando que talvez fosse um erro ter vindo.
"Bem-vinda", sussurrou
uma voz a seu lado, causando-lhe um sobressalto. Ela não havia percebido
ninguém até então, mas agora vislumbrava uma figura: uma mulher de estatura
baixa, com uma leve curvatura nos ombros que sinalizava uma idade avançada.
Seus cabelos, longos e lisos, eram de um negro tão intenso que se confundiam
com as sombras que os envolviam. Seus olhos, porém, eram um contraste vivo;
brilhavam com uma luz própria, semelhante a brasas tenazes que se recusam a se
apagar, remanescentes de uma fogueira de São João há muito esquecida.
"Fico feliz que tenha
encontrado minha loja", continuou a mulher, sua voz possuía uma qualidade
melódica e, ao mesmo tempo, carregava uma profundidade que parecia reverberar
pelo espaço confinado. Era curioso, pois o local não parecia ter as dimensões
necessárias para gerar ecos.
"Eu... S-sim... Eu também
estou feliz", ela conseguiu responder, ainda parcialmente imobilizada pela
surpresa. Por um instante, o impulso de fugir a dominou. Seus olhos
desviaram-se brevemente para a porta, mas foram rapidamente atraídos de volta
pelo som de palmas. A mulher estava aplaudindo, e a cada batida, a loja se
iluminava mais, não pela ignição de lâmpadas, mas por velas que se acendiam
magicamente, suas chamas dançando à vida sem a intervenção de um único fósforo.
Ela franziu o cenho, esfregando
os olhos na tentativa de compreender a visão diante de si. Parecia estar em uma
loja, ou melhor, em um espaço repleto de estantes abarrotadas com recipientes
de todas as formas e matizes. Contudo, o conteúdo dos frascos permanecia um
enigma; fosse pelo vidro embaçado ou pela camada de sujeira, era impossível
discernir o que estava selado em seu interior.
"Então, qual é o seu
desejo, Luana?" a mulher indagou, assumindo seu posto atrás de um balcão,
onde começou a esfregar um dos recipientes com um pano que mais parecia
contribuir para a sujeira do que para a limpeza.
"Como você sabe o meu
nome?" ela perguntou, alarmada, apegando-se ao seu celular como um
talismã.
"Isso importa? Você veio
até aqui, à meia-noite, em busca de uma loja que só abre neste horário... Não é
o momento para se preocupar com tais detalhes, filha," respondeu a
proprietária, sem levantar o olhar para sua cliente.
"Eu... Bem... Me disseram
que você pode resolver problemas. Realizar desejos. Curar doenças," disse
ela, com a voz desvanecendo quase em um sussurro nas últimas palavras.
"Então, te informaram
corretamente," a mulher replicou, interrompendo a fricção em um frasco
para começar em outro, com a mesma atenção meticulosa.
"Eu..." Ela umedecia
os lábios, reunindo coragem para articular as palavras que carregava consigo,
pesadas como pedras no coração. "Estou morrendo... Recebi um prognóstico
com poucos meses de vida. Por isso, vim até aqui, na esperança de que você
pudesse me curar."
"Ah, eu percebi o odor
pútrido da morte assim que você cruzou a soleira. Eles estavam certos sobre
você, parece. Às vezes cometem erros... Fazem a previsão de morte e o fim não
vem. Mas no seu caso, a previsão foi acertada," disse a dona da loja, sua
voz desprovida de qualquer traço de compaixão, o que fez o semblante de Luana
perder ainda mais a cor ante suas palavras.
"Você pode me curar?"
Luana insistiu, sua voz tremulava, embargada pela emoção que lutava para
conter.
A mulher finalmente a encarou, e
mesmo com a loja agora iluminada pelo fogo místico das velas, o brilho em seus
olhos continuava a arder intensamente. "Há um preço a ser pago. Não sei se
já te informaram sobre isso," ela declarou. Nesse instante, o som de
batidas ressoou da igreja, cujas portas permaneciam inabalavelmente fechadas.
Luana sentiu um arrepio de temor.
"Bem... Não me disseram
nada," ela admitiu, uma corrente gelada parecendo escorrer ao longo de sua
espinha.
“Eu tenho algum dinheiro
guardado na conta corrente e na poupança..." ela começou, já estendendo a
mão em direção à bolsa para buscar o cartão de crédito. No fundo,
questionava-se se aquela figura enigmática aceitaria um pagamento via Pix,
embora a loja tivesse um ar tão ancestral que parecia improvável que houvesse
ali uma máquina de cartão.
"Basta um nome," disse
a mulher, esboçando um sorriso onde o branco dos dentes reluzia. "O nome
de uma criança que você conheça."
"Uma criança?" Luana
exclamou, o medo súbito cristalizando-se em sua voz.
"Como você, eu padeço de
uma condição... incurável," a dona da loja confessou, retomando a tarefa
de limpar um recipiente, este notavelmente maior e, para o desconforto de
Luana, visivelmente ocupado por um líquido de tom rubro-escuro. "Para
aliviar meus sintomas, preciso consumir certas... partes do corpo humano."
Com um gesto tranquilo, ela
destampou o recipiente, e um odor fétido, misturado com o cheiro metálico do
sangue, invadiu o ar. As batidas vindas da porta da igreja intensificaram-se,
ecoando pela praça com um ritmo quase desesperado.
Luana levou a mão à boca,
nauseada pela revelação.
"Fígados," continuou a
mulher, imperturbável diante do horror de Luana. "Mas não de qualquer um —
apenas fígados infantis servem ao meu propósito." Ela falava com um
interesse mórbido, vertendo o líquido escuro em um copo sujo, os lábios
umedecidos pela antecipação do banquete macabro.
"Fígados..." Luana
ecoou em um sussurro, sua voz quase se perdendo no ar carregado da loja.
"Sim, fígados. Mas sua
anuência é essencial," disse a mulher, saboreando o líquido do copo com
uma avidez que deixou Luana estática. Ela se sentia estranhamente ancorada ao
chão, as pernas pesadas como chumbo, a saída da loja uma miragem distante.
"Não posso prosseguir sem o
seu consentimento. São as regras do meu... tratamento," continuou a
mulher, limpando a boca manchada de vermelho com um dos panos encardidos sobre
o balcão. "E não se iluda pensando que minha própria enfermidade me impede
de curar a sua. O mal que me aflige não tem nexo com as doenças dos mortais.
Por isso, fique tranquila... Você pode ser curada. O custo, no entanto, é o
nome de uma criança que você conheça. Apenas isso."
Os segundos se arrastavam
enquanto Luana ponderava sua escolha. A mulher havia desviado o olhar, ocupada
novamente em limpar outro recipiente. Luana reparou, com um arrepio, que cada
frasco na loja continha o mesmo líquido vermelho-escuro que ela havia visto ser
derramado no copo. Como não percebera isso antes? Seriam todos provenientes de
fígados? A situação era tão surreal... Talvez fosse apenas um delírio, uma
alucinação provocada pelo tumor que os médicos alertaram que poderia acontecer.
Se tudo não passasse de um sonho
ou um pesadelo, qual seria o problema em dizer um nome? Não seria real. Poderia
ser o filho da sua irmã, o bebê do seu primo, as gêmeas da vizinha, o filho do
seu chefe... Ou até aquelas crianças anônimas do condomínio, cujos nomes e
famílias eram desconhecidos. Qualquer um deles serviria, não é verdade?
Contudo, a questão moral se
impunha: era justo fazer tal troca? Consentir com isso? Ela ansiava por mais
tempo de vida, por experiências ainda não vividas, por sonhos não realizados —
e ter filhos era um deles.
O retumbar das batidas da igreja
amplificava-se, ecoando em um ritmo que parecia imitar as aceleradas batidas de
seu coração.
"E então? Qual será sua
decisão? A meia-noite não dura para sempre," pressionou a proprietária da
loja, a impaciência tingindo sua voz. "E devo alertá-la que não estou
sempre aqui. Minha loja se move, sou chamada para outros lugares, outros
estados..."
As palavras da mulher se
misturavam à cacofonia de dúvidas que inundavam a mente de Luana. O constante
bater que vinha da igreja não lhe concedia um momento de paz para ponderar. Era
uma chance única...
Com os lábios secos, Luana
passou a língua por eles. Abriu a boca. E então, ela falou.
No exato momento em que sua voz
se projetou, o sino da igreja soou, um som poderoso que vibrava pelas paredes e
preenchia o espaço. Estranhamente, as badaladas pareciam entrelaçar-se com sons
que lembravam o choro de crianças.
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