sábado, 20 de abril de 2024

Além da Velocidade

 


"Recebemos mais um."

"Mais um? Nem se passaram dois dias e já apareceu outro?"

"Sim... O que faremos com ele?"

"Ainda funciona?"

"Foi quase uma perda total, sabe? Semelhante ao anterior... Bem, mais ou menos. Não estava em alta velocidade como o último, mas ainda assim muito acima do limite permitido... Muito acima!"

"Isso é bom, pelo menos. Não devemos mesmo dirigir esses carros. Está claro que algo estranho assola a cidade."

"Estranho, senhor?"

"Seja uma epidemia ou uma espécie de assombração, não sei dizer! Deve ser algo do tipo, afinal, são carros que aceleram descontroladamente e chegam a ser letais! Não podemos ignorar as evidências, os padrões que observamos."

"Tem razão, senhor. Os carros compartilham características... Quero dizer, ambos são modelos avaliados em mais de um milhão de reais! Será que o valor do veículo pode ser a raiz dessa maldição? Ou talvez um vírus?"

"Não viaje na maionese, Anchieta! O preço não é o que eles têm em comum."

"Então... Será que o fato de os motoristas serem, digamos, jovens da alta sociedade que saem de festas embriagados e..."

"Anchieta! Como você pode acusar as vítimas assim?"

"Vítimas, senhor? Você não acha que as pessoas atingidas por eles..."

"Não, estou falando dos rapazes que foram influenciados pela força maligna desses carros! Os veículos são os verdadeiros culpados! Precisa entender isso."

"Ah, não tinha visto por esse ângulo... Que coisa mais assustadora!"

"É por isso que sou o comandante, porque entendo dessas coisas."

"Mas, então... Se esses carros estão infectados com algum tipo de poder sobrenatural, meu Fiat Uno... Será que ele também pode ser possuído?"

"Anchieta, não se preocupe, seu carro e você estão a salvo dessa maldição. Tenho certeza disso!"

Velha água ou NewWater

 


"O que você está fazendo?" A pergunta soava mais como um grito de horror do que uma simples indagação.

"Estou apenas bebendo água," respondi, confusa com a reação da minha vizinha. Eu estava voltando da academia quando ela me abordou, logo à porta do condomínio.

"Você não está sabendo? Bem, imagino que não, já que está fazendo isso," ela disse, suas expressões oscilando entre o pavor e um certo divertimento à custa da minha ignorância.

"O que eu deveria saber?" perguntei.

"Sobre isso que você está bebendo..."

"Minha água?"

"Sim, isso aí é veneno!"

"Veneno?" olhei para a minha garrafa ainda mais confusa. "Como assim?"

"É o que compartilharam no grupo do WhatsApp. Toda a água que temos consumido há algum tempo está sendo contaminada com substâncias tóxicas, que podem causar diversos problemas ao nosso organismo. É por isso que estamos vendo tantos casos novos de catapora, aumento da dengue e até mesmo autismo! Tudo isso está ligado à água que consumimos!"

"A água... Seria uma marca específica ou..." tentei racionalizar, pois me pareceu estranho que toda a água que consumimos pudesse conter tais toxinas.

"Não! É toda a água! E sabe o que é pior?" Ela lançou a pergunta com um ar malicioso, como se estivesse prestes a revelar um grande segredo que só ela conhecia e que seria uma honra para mim receber essa pérola de conhecimento dela.

"O que?" perguntei, meio curiosa e meio receosa.

"Fomos induzidos por todos a pensar que a água é importante! Você deve se lembrar dos livros da escola, 'água, o elemento essencial para a vida'. Ah, que besteira! 'A vida surgiu da água'? Outra besteira! O ciclo da água? Tudo ficção! Poderíamos até chamar de ciclo do veneno! Isso sim! No final, tudo é mentira, uma verdadeira lavagem cerebral!"

"Sério?" arqueei as sobrancelhas.

"Sim, se quiser, posso compartilhar com você os links dos canais no YouTube que explicam com detalhes toda essa história. São pessoas qualificadas, sabe? Elas entendem do assunto!" disse ela, já olhando para o celular de capa rosa e cheio de purpurina, adornado com adesivos da bandeira do Brasil.

"Mas eu fiquei com uma dúvida sobre isso... Quero dizer, se a água é algo ruim, o que deveríamos beber então? Mesmo que a água não seja essencial, como você disse, eu ainda sinto sede..." falei com cuidado para não parecer que estava a contradizendo.

"Quanto a isso, não se preocupe! Você deve beber isso aqui..." Nisso, ela enfiou a mão livre, a que não segurava o celular, dentro de sua bolsa tricotada. Dali, retirou uma garrafa contendo um líquido verde vibrante que, mesmo à luz do dia, parecia emitir uma certa luminosidade natural.

"Este aqui é o NewWater! Ou NW para os íntimos," disse ela, gargalhando. "Esse sim é o líquido essencial que vai nos manter vivos e saciar nossa sede. Pelo que vi na propaganda no Telegram, essa empresa foi criada por pessoas que realmente querem nos salvar dos magnatas da H2O! Eles querem salvar a humanidade, por isso, devemos substituir tudo pela NewWater! E é bem barato, só R$10 a garrafa! E se você se cadastrar no programa Cliente VIP, ainda ganha descontos," ela tagarelava, enquanto eu apenas assentia.

"Isso parece fascinante, mas..." eu queria fugir e entrar na minha casa, mas ela ainda não tinha terminado.

"Aqui! Tome uma para você! Ao beber, você notará como a outra água é desnecessária!" minha vizinha insistiu, empurrando a garrafa em meus braços.

"Puxa, muito obrigada..." disse nervosa, aceitando o presente.

Se eu bebi? Confesso que até tentei, mas quando coloquei na caneca para provar, a possibilidade de degustar o líquido fluorescente se desfez quando vi o fundo da dita caneca começar a desintegrar.

Pois é, acho que vou preferir as supostas toxinas da velha H2O.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Capítulo único - Carcará e Urubu

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"Eu investi uma quantia considerável para obter essa resposta", declarou o homem de baixa estatura, com cabelos rarefeitos. Seus olhos alternavam entre receio e irritação ao encarar as duas figuras à sua frente. Uma delas, que se apresentara com o curioso apelido de 'Carcará', ostentava uma figura imponente: de porte atlético e postura ereta, emanava uma aura de comando. Seus cabelos negros e ligeiramente desalinhados traziam reflexos avermelhados ao sol. As sobrancelhas densas e curvadas remetiam a asas em voo, enquanto o contorno firme de sua mandíbula e o perfil aquilino do nariz faziam alusão ao bico proeminente da ave que lhe emprestava o nome.

O outro, conhecido pelo insólito apelido de 'Urubu', diferenciava-se pelo ar enigmático que carregava. Sua estatura era mediana, mas sua presença destacava-se pela intensidade do olhar que parecia sondar a essência das coisas. A pele morena, marcada pelo sol, sugeria uma vida exposta aos elementos, e seus cabelos escuros, salpicados de grisalhos, acentuavam a calva pronunciada. As linhas de expressão em seu rosto esculpiam uma história de resiliência.

"Não entendo o motivo de estarmos aqui. Eu havia solicitado algo muito específico de vocês dois. Afirmaram-me que seriam os únicos capazes de tal feito...", prosseguia o homem de menor estatura, enxugando a testa com um lenço e lançando olhares inquietos ao redor. Eles se encontravam no bairro da Ribeira, situado na zona Leste de Natal, em meio a um cenário histórico onde as fachadas coloniais e os detalhes arquitetônicos do início do século XX contavam as crônicas de tempos áureos. As estruturas, agora entregues ao descaso, eram consumidas pela vegetação e fissuras que riscavam suas superfícies. O local era pouco frequentado: naquela ruela, em especial, a escassez de transeuntes e a ausência quase total de veículos acentuavam um palpável sentimento de ameaça que parecia permear o ar.

"Veja bem, Seu Adriano, estamos agindo conforme sua própria solicitação", afirmou Urubu, esboçando um sorriso enigmático. Ele deslizou as mãos pelos bolsos de suas calças folgadas, mantendo o olhar fixo no outro homem. A intensidade daquele olhar fazia Seu Adriano revolver-se em um crescente desconforto. "E recordo-me perfeitamente do dia em que nos procurou: 'Preciso localizar uma pessoa, a polícia não deve se envolver, pagarei em dinheiro vivo' - foram suas exatas palavras, e nós, claro, aceitamos a tarefa, pois a caça está em nosso sangue."

"Mas isto aqui não é exatamente uma 'caça'...", murmurou Seu Adriano, lançando olhares furtivos ao redor, temeroso que alguém pudesse estar espionando. O beco, no entanto, estava deserto; sua preocupação, injustificada. "Não consigo entender... Minha esposa jamais teria vindo a este lugar por vontade própria. Uma boutique em Capim Macio ou um salão no Tirol, sim, mas aqui..."

"Você já revirou todos esses locais 'lógicos'", interrompeu Carcará, que, diferentemente de Urubu, parecia desinteressado no diálogo. Sua atenção vagava pelo entorno deteriorado, chutando esporadicamente detritos que se amontoavam na calçada e abaixando-se para examinar uma lagartixa que emergia de uma fenda na parede mofada e úmida do lugar.

"De fato, já fiz isso...", admitiu Seu Adriano, sua voz traída por uma nota de frustração.

"E desde então, ela não fez movimentações bancárias, nem contactou familiares ou amigos. Já se passou uma semana", comentou Urubu, deixando que o sorriso alargasse em sua face, mostrando uma certa satisfação por toda aquela situação.

"Está insinuando alguma coisa?" desafiou Seu Adriano, sua paciência claramente se esgotando.

Urubu soltou uma risada rouca e seca, mais uma provocação do que uma resposta, ressoando contra as paredes desbotadas e grafitadas da Ribeira, dando um eco sinistro à cena já tensa.

"Entre predadores, seu Adriano, é onde nos encontramos. Acredita verdadeiramente que sua esposa ainda respira?" Urubu questionou, o tom insidioso de sua voz cortando o silêncio que se seguiu. A indiferença presente em Urubu apenas intensificava a palidez de Adriano, que parecia cada vez mais encurralado pela própria consciência.

"Veja bem, não é mero afeto que o traz à nossa procura," continuou Urubu, seus olhos perscrutando as reações do homem à sua frente. "Você não convocou a polícia, não notificou ninguém do desaparecimento. Há algo que deseja... algo além de uma 'fêmea humana'. Esse é o aspecto fascinante da natureza humana – suas justificativas, suas incessantes buscas."

Adriano sentiu um calafrio arrepiando sua espinha, um sinal físico do terror que as palavras de Urubu semeavam em sua mente. Havia algo naquele desprendimento, naquela análise fria, que o fazia se sentir um estranho em sua própria espécie.

"Está insinuando algo, Urubu? Está me acusando?" A voz de Adriano tremia ligeiramente, cada sílaba pronunciada com um cuidado que traía seu nervosismo crescente.

"Não é o aroma do sangue que você exala," Carcará disse de súbito, desviando a atenção da lagartixa que agora se contorcia em sua palma. "Mas sim o estigma do culpado. Você não sujou suas próprias mãos, no entanto, pagou para que outros o fizessem. E agora, aqueles que contratou desapareceram, deixando o destino de sua esposa um mistério... E por isso nos procurou."

A revelação chocante fez Adriano recuar, tropeçando em suas próprias pernas, surpreso com a acuidade da dupla. Como poderiam ter tecido tais conclusões tão rapidamente? A cada palavra, a cada gesto daquelas figuras que mais pareciam encarnações de aves de rapina, a realidade de sua situação tornava-se mais inescapável. E a cada piscar de olhos, a linha que dividia predador de presa parecia se desfazer um pouco mais.

"Essa encenação sobre achar que ela ainda vive, quando o que realmente deseja é encontrar um cadáver..." A voz de Urubu cortou o silêncio com uma nitidez gélida, a curiosidade em seu tom soava quase sinistra, um eco de desdém pelo desespero não expresso de Adriano.

"Ele ainda planeja algo," observou Carcará, cravando seus olhos em Adriano pela primeira vez desde que haviam começado aquela estranha reunião. Se a presença de Urubu já era suficiente para perturbar, o olhar direto de Carcará transpassava, evocando um terror primordial. Adriano sentiu-se como uma presa na mira de um predador implacável, a sensação de uma arma invisível apontada diretamente para seu íntimo. Suas mãos tremiam ao pressionar o peito, tentando aplacar as batidas frenéticas de seu coração.

"Não é fascinante? A audácia de tentar nos enganar," Urubu exclamou, um brilho de excitação dançando em seus olhos escuros.

Carcará, por sua vez, permaneceu impassível, os ombros relaxados, não compartilhando da empolgação de Urubu. Seu desinteresse parecia devolver a Adriano um fio de alívio, permitindo-lhe respirar mais livremente, apesar de suas pernas ainda fraquejarem como galhos ao vento.

"O que... o que estão dizendo?" Adriano conseguiu murmurar, a voz trêmula, destituída do comando que talvez pretendesse.

"Chegou o momento de desvendarmos a verdadeira natureza de sua busca," proclamou Urubu, quase teatral, ao tomar a lagartixa das mãos de Carcará e posicioná-la contra a parede, que parecia absorver toda a luz do entorno, escurecendo o ambiente. Uma pesada umidade se instalou, como o prelúdio de uma tempestade prestes a irromper.

A lagartixa, agora sob o muro, virou-se para encarar Urubu, como se uma compreensão tácita entre eles se formasse em um piscar de olhos.

"Conceda-nos sua habilidade, revele o objeto de nossa procura," demandou Urubu, e embora a forma fosse de um pedido, o tom imperativo deixava claro que era uma ordem. Sua voz adquiriu uma aspereza sobrenatural, reverberando através das paredes do beco com uma autoridade que parecia distorcer a própria realidade.

Das entranhas da rua estreita, calçada com pedras de paralelepípedo antigas e desgastadas pelo tempo, emergiram lagartixas de todos os tamanhos e matizes. Emanavam das casas em ruínas, dos muros craquelados e estalados, esgueirando-se entre sacos de lixo negligenciados, espalhados ao acaso pelo chão. Adriano reprimiu um grito, mistura de repulsa e pavor, enquanto as criaturas reptilianas se aglomeravam em torno de Urubu, que as observava com uma calma anormal.

Sob suas ordens mudas, as lagartixas deslizavam em direção ao fim da rua, entrando numa construção esquecida, que já foi uma loja de algum comércio vibrante, agora só restavam as memórias penduradas na cortina de metal corroída e semidestruída. Urubu seguiu o rastro delas com passos decididos, enquanto Adriano era arrastado por Carcará, cuja força parecia sobrenatural, ampliando o terror que já pulsava nas veias do homem.

"Será aqui?" Urubu indagou, quase retórico, ao tocar a cortina enferrujada que se desprendeu com uma facilidade perturbadora. A dúvida de Adriano quanto à natureza daqueles dois homens se intensificou; eles exalavam uma aura que estava longe de ser humana.

"Ah, o aroma..." Urubu inalou profundamente, uma expressão de deleite distorcendo seu rosto. "Consegue apreciar, Carcará? É intoxicante!" A empolgação em sua voz era evidente, enquanto Adriano não percebia mais do que o ar viciado da cidade.

"Eu não me deleito com restos, Urubu. Isso é de sua predileção, não a minha," retrucou Carcará, empurrando Adriano em direção à penumbra que reinava no interior da casa abandonada. O escuro era quase sólido, impenetrável. No entanto, conforme se aproximavam, um odor nauseabundo de decomposição começou a saturar o ar.

"Ali, o corpo!" Urubu exclamou, estendendo o dedo em direção a um recanto sombrio do ambiente. O dedo apontava além de cadeiras despedaçadas e pilhas de detritos. Adriano, cujas mãos tremiam, retirou o celular do bolso e, com um clique hesitante, acendeu a lanterna. A luz fria do LED rasgou a escuridão, revelando o corpo inerte e abandonado.

Primeiro, o terror invadiu Adriano, um golpe visceral ante a presença tangível da morte. Mas, quase imediatamente, o alívio o inundou, levando-o em passos apressados e descoordenados em direção à figura caída. Ele se abaixou, revolvendo os bolsos da vestimenta maculada, a busca marcada por uma urgência selvagem.

"O que procura com tanto afinco?" Urubu questionou, aproximando-se silenciosamente, os olhos cintilando com um brilho mórbido, refletindo a cena macabra. "Qual era o motivo? Traição? Avareza? As motivações humanas são sempre tão... previsíveis."

"Ela escondia algo, o dinheiro!" Adriano falou, quase sem fôlego, suas mãos sujas pela morte reviravam cada centímetro do cadáver. "Transferiu tudo, a maior parte dos nossos fundos, para outra conta, planejando me deixar! Eu dei minha vida a ela, e ela me retribui com roubo, com traição! Não pode ser em vão... Onde está a agenda dela? As senhas, os segredos financeiros, tudo estava lá!"

Urubu bufou, um som carregado de desdém. "Ah, sempre o vil metal... Que motivação mais tediosa!" A desaprovação em sua voz era tangível, tingida de um desprezo que parecia se estender do homem ao próprio conceito de riqueza.

"Aqui está!" Adriano anunciou triunfantemente, agitando uma pequena agenda rosa adornada com motivos florais delicados. Sua risada, um som esganiçado e desconexo, preencheu o ar carregado do ambiente enquanto ele se afastava do corpo inerte, seus olhos cravados no diário como se fosse um tesouro.

Ele erguia a agenda com uma mão e o celular com a outra, uma estranha balança da justiça em sua execução torta. "Vocês realmente cumpriram com o solicitado. Inesperado... Como sabiam que ela estaria aqui? Claro, vocês queriam a fortuna dela. Ao tentarem roubá-la, acabaram matando-a, não é?" Seu sorriso, um arco de satisfação vitoriosa, era direcionado às sombras que formavam as figuras de seus contratados.

Com um movimento teatral, Adriano brandiu o celular, revelando mensagens trocadas com contatos nas forças policiais. "Tenho provas, e a polícia já está a caminho. Melhor não tentarem nada!"

"Oh, então você a assassinou e precisava de cordeiros para o sacrifício," Urubu deduziu com um entusiasmo macabro. "Nos contratou para localizar o corpo e nos incriminar, enquanto os verdadeiros culpados fugiram. Uma jogada previsível, mas eficaz. E agora precisa de culpados para acessar o dinheiro sem levantar suspeitas. É isso que somos para ele, Carcará, meros peões!" A voz de Urubu dançava entre a diversão e um interesse aguçado, claramente deslocado diante da gravidade da cena.

"Vocês... vocês são loucos..." Adriano sussurrou, sua voz um mero sopro, desmantelado pela reação inesperada da dupla.

"Imagino que a polícia, já alertada, deve estar a caminho," disse Urubu, recuando lentamente, enquanto Carcará avançava com uma determinação implacável. "Eles devem chegar em uns cinco minutos. Acha que pode resolver tudo antes disso?"

"Resolver o quê? Não ouviram? A polícia está a caminho! Este beco é um caminho sem saída, não há fuga possível! E nem pensem em tentar me ferir!" Adriano retrucou, recuando instintivamente enquanto observava Carcará se aproximar. Em um movimento frenético, ele mergulhou a mão no bolso do terno, em busca de algo que pudesse oferecer proteção.

"Cinco minutos é uma eternidade," respondeu Carcará, revelando um sorriso pela primeira vez. Adriano engoliu em seco, sentindo o terror se espalhar por sua garganta. Do bolso, ele extraiu uma arma, deixando seu celular escapar e cair com um baque surdo no chão. Com a arma apontada para Carcará, que permanecia estranhamente calmo, Adriano ameaçou: "Eu vou atirar! Recue!"

"Urubus são atraídos por carcaças... essa foi a tarefa do Urubu, encontrar sua esposa," Carcará disse, avançando até que o cano frio da arma tocasse sua testa. "Minha tarefa..." ele continuou, seus olhos adquirindo um brilho peculiar na escuridão, "é caçar... é matar."

Um disparo ressoou, seguido de um grito agudo.

Quando a polícia chegou cinco minutos depois, já estavam prontos para cumprir seu papel na peça arquitetada com o Sr. Adriano, um vereador local de destaque. A cena estava montada para que os supostos assassinos fossem pegos em flagrante, e o vereador emergisse como um herói, um viúvo triunfante e enriquecido.

Os oficiais entraram no beco, adentraram o espaço desolado da loja abandonada, e foram recebidos por uma cena de devastação. Do vereador, restavam apenas fragmentos de carne e respingos de sangue; suas vestes estavam em farrapos. Era como se ele tivesse sido devorado por uma fera selvagem, uma criatura de garras afiadas e... um bico cortante.

À medida que os policiais chegavam ao local do crime, alguns não conseguiam conter o revirar de seus estômagos, entregando-se a uma náusea incontrolável diante da brutalidade da cena. No entanto, em meio à confusão e ao desgosto, poucos perceberam a silhueta ameaçadora de um urubu pousado no alto de um poste próximo, sua presença sinistra quase camuflada contra o céu cinzento. Menos ainda notaram um carcará nas proximidades, o qual, com meticulosidade predatória, limpava as garras e o bico ainda manchados com o vermelho vivo do sangue na mureta de um prédio desgastado pelo tempo.

Naquele caos, ninguém se deu conta de que o urubu trazia consigo uma agenda de capa rosa, segurando-a firmemente entre as curvas afiadas do bico. E quando ele alçou voo com a agenda como se fosse um prêmio macabro, apenas o vento pareceu prestar atenção. O carcará, num movimento sincronizado e quase cúmplice, levantou-se em seguida, as asas poderosas cortando o ar, seguindo o urubu. Eram como aliados insólitos unidos por um propósito sombrio, partindo juntos sob o olhar indiferente da cidade.

Entre a Chuva e o Sol

  "Você tem certeza de que ela é realmente competente?" "Sim, pelo menos é o que dizem...", seu assessor lhe infor...