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"Eu investi uma quantia considerável para
obter essa resposta", declarou o homem de baixa estatura, com cabelos
rarefeitos. Seus olhos alternavam entre receio e irritação ao encarar as duas
figuras à sua frente. Uma delas, que se apresentara com o curioso apelido de
'Carcará', ostentava uma figura imponente: de porte atlético e postura ereta,
emanava uma aura de comando. Seus cabelos negros e ligeiramente desalinhados
traziam reflexos avermelhados ao sol. As sobrancelhas densas e curvadas
remetiam a asas em voo, enquanto o contorno firme de sua mandíbula e o perfil
aquilino do nariz faziam alusão ao bico proeminente da ave que lhe emprestava o
nome.
O outro, conhecido pelo insólito apelido de
'Urubu', diferenciava-se pelo ar enigmático que carregava. Sua estatura era
mediana, mas sua presença destacava-se pela intensidade do olhar que parecia
sondar a essência das coisas. A pele morena, marcada pelo sol, sugeria uma vida
exposta aos elementos, e seus cabelos escuros, salpicados de grisalhos,
acentuavam a calva pronunciada. As linhas de expressão em seu rosto esculpiam
uma história de resiliência.
"Não entendo o motivo de estarmos aqui. Eu
havia solicitado algo muito específico de vocês dois. Afirmaram-me que seriam
os únicos capazes de tal feito...", prosseguia o homem de menor estatura,
enxugando a testa com um lenço e lançando olhares inquietos ao redor. Eles se
encontravam no bairro da Ribeira, situado na zona Leste de Natal, em meio a um
cenário histórico onde as fachadas coloniais e os detalhes arquitetônicos do
início do século XX contavam as crônicas de tempos áureos. As estruturas, agora
entregues ao descaso, eram consumidas pela vegetação e fissuras que riscavam
suas superfícies. O local era pouco frequentado: naquela ruela, em especial, a
escassez de transeuntes e a ausência quase total de veículos acentuavam um
palpável sentimento de ameaça que parecia permear o ar.
"Veja bem, Seu
Adriano, estamos agindo conforme sua própria solicitação", afirmou Urubu,
esboçando um sorriso enigmático. Ele deslizou as mãos pelos bolsos de suas
calças folgadas, mantendo o olhar fixo no outro homem. A intensidade daquele
olhar fazia Seu Adriano revolver-se em um crescente desconforto. "E
recordo-me perfeitamente do dia em que nos procurou: 'Preciso localizar uma
pessoa, a polícia não deve se envolver, pagarei em dinheiro vivo' - foram suas
exatas palavras, e nós, claro, aceitamos a tarefa, pois a caça está em nosso
sangue."
"Mas isto aqui não é
exatamente uma 'caça'...", murmurou Seu Adriano, lançando olhares furtivos
ao redor, temeroso que alguém pudesse estar espionando. O beco, no entanto,
estava deserto; sua preocupação, injustificada. "Não consigo entender...
Minha esposa jamais teria vindo a este lugar por vontade própria. Uma boutique
em Capim Macio ou um salão no Tirol, sim, mas aqui..."
"Você já revirou
todos esses locais 'lógicos'", interrompeu Carcará, que, diferentemente de
Urubu, parecia desinteressado no diálogo. Sua atenção vagava pelo entorno
deteriorado, chutando esporadicamente detritos que se amontoavam na calçada e abaixando-se
para examinar uma lagartixa que emergia de uma fenda na parede mofada e úmida
do lugar.
"De fato, já fiz
isso...", admitiu Seu Adriano, sua voz traída por uma nota de frustração.
"E desde então, ela
não fez movimentações bancárias, nem contactou familiares ou amigos. Já se
passou uma semana", comentou Urubu, deixando que o sorriso alargasse em
sua face, mostrando uma certa satisfação por toda aquela situação.
"Está insinuando
alguma coisa?" desafiou Seu Adriano, sua paciência claramente se
esgotando.
Urubu soltou uma risada
rouca e seca, mais uma provocação do que uma resposta, ressoando contra as
paredes desbotadas e grafitadas da Ribeira, dando um eco sinistro à cena já
tensa.
"Entre predadores,
seu Adriano, é onde nos encontramos. Acredita verdadeiramente que sua esposa
ainda respira?" Urubu questionou, o tom insidioso de sua voz cortando o
silêncio que se seguiu. A indiferença presente em Urubu apenas intensificava a
palidez de Adriano, que parecia cada vez mais encurralado pela própria
consciência.
"Veja bem, não é
mero afeto que o traz à nossa procura," continuou Urubu, seus olhos
perscrutando as reações do homem à sua frente. "Você não convocou a
polícia, não notificou ninguém do desaparecimento. Há algo que deseja... algo
além de uma 'fêmea humana'. Esse é o aspecto fascinante da natureza humana –
suas justificativas, suas incessantes buscas."
Adriano sentiu um
calafrio arrepiando sua espinha, um sinal físico do terror que as palavras de
Urubu semeavam em sua mente. Havia algo naquele desprendimento, naquela análise
fria, que o fazia se sentir um estranho em sua própria espécie.
"Está insinuando
algo, Urubu? Está me acusando?" A voz de Adriano tremia ligeiramente, cada
sílaba pronunciada com um cuidado que traía seu nervosismo crescente.
"Não é o aroma do
sangue que você exala," Carcará disse de súbito, desviando a atenção da
lagartixa que agora se contorcia em sua palma. "Mas sim o estigma do
culpado. Você não sujou suas próprias mãos, no entanto, pagou para que outros o
fizessem. E agora, aqueles que contratou desapareceram, deixando o destino de
sua esposa um mistério... E por isso nos procurou."
A revelação chocante fez
Adriano recuar, tropeçando em suas próprias pernas, surpreso com a acuidade da
dupla. Como poderiam ter tecido tais conclusões tão rapidamente? A cada
palavra, a cada gesto daquelas figuras que mais pareciam encarnações de aves de
rapina, a realidade de sua situação tornava-se mais inescapável. E a cada
piscar de olhos, a linha que dividia predador de presa parecia se desfazer um
pouco mais.
"Essa encenação
sobre achar que ela ainda vive, quando o que realmente deseja é encontrar um
cadáver..." A voz de Urubu cortou o silêncio com uma nitidez gélida, a
curiosidade em seu tom soava quase sinistra, um eco de desdém pelo desespero
não expresso de Adriano.
"Ele ainda planeja
algo," observou Carcará, cravando seus olhos em Adriano pela primeira vez
desde que haviam começado aquela estranha reunião. Se a presença de Urubu já
era suficiente para perturbar, o olhar direto de Carcará transpassava, evocando
um terror primordial. Adriano sentiu-se como uma presa na mira de um predador
implacável, a sensação de uma arma invisível apontada diretamente para seu
íntimo. Suas mãos tremiam ao pressionar o peito, tentando aplacar as batidas
frenéticas de seu coração.
"Não é fascinante? A
audácia de tentar nos enganar," Urubu exclamou, um brilho de excitação
dançando em seus olhos escuros.
Carcará, por sua vez,
permaneceu impassível, os ombros relaxados, não compartilhando da empolgação de
Urubu. Seu desinteresse parecia devolver a Adriano um fio de alívio,
permitindo-lhe respirar mais livremente, apesar de suas pernas ainda
fraquejarem como galhos ao vento.
"O que... o que
estão dizendo?" Adriano conseguiu murmurar, a voz trêmula, destituída do
comando que talvez pretendesse.
"Chegou o momento de
desvendarmos a verdadeira natureza de sua busca," proclamou Urubu, quase
teatral, ao tomar a lagartixa das mãos de Carcará e posicioná-la contra a
parede, que parecia absorver toda a luz do entorno, escurecendo o ambiente. Uma
pesada umidade se instalou, como o prelúdio de uma tempestade prestes a
irromper.
A lagartixa, agora sob o
muro, virou-se para encarar Urubu, como se uma compreensão tácita entre eles se
formasse em um piscar de olhos.
"Conceda-nos sua habilidade,
revele o objeto de nossa procura," demandou Urubu, e embora a forma fosse
de um pedido, o tom imperativo deixava claro que era uma ordem. Sua voz
adquiriu uma aspereza sobrenatural, reverberando através das paredes do beco
com uma autoridade que parecia distorcer a própria realidade.
Das entranhas da rua
estreita, calçada com pedras de paralelepípedo antigas e desgastadas pelo
tempo, emergiram lagartixas de todos os tamanhos e matizes. Emanavam das casas
em ruínas, dos muros craquelados e estalados, esgueirando-se entre sacos de
lixo negligenciados, espalhados ao acaso pelo chão. Adriano reprimiu um grito,
mistura de repulsa e pavor, enquanto as criaturas reptilianas se aglomeravam em
torno de Urubu, que as observava com uma calma anormal.
Sob suas ordens mudas, as
lagartixas deslizavam em direção ao fim da rua, entrando numa construção
esquecida, que já foi uma loja de algum comércio vibrante, agora só restavam as
memórias penduradas na cortina de metal corroída e semidestruída. Urubu seguiu
o rastro delas com passos decididos, enquanto Adriano era arrastado por
Carcará, cuja força parecia sobrenatural, ampliando o terror que já pulsava nas
veias do homem.
"Será aqui?"
Urubu indagou, quase retórico, ao tocar a cortina enferrujada que se desprendeu
com uma facilidade perturbadora. A dúvida de Adriano quanto à natureza daqueles
dois homens se intensificou; eles exalavam uma aura que estava longe de ser
humana.
"Ah, o
aroma..." Urubu inalou profundamente, uma expressão de deleite distorcendo
seu rosto. "Consegue apreciar, Carcará? É intoxicante!" A empolgação
em sua voz era evidente, enquanto Adriano não percebia mais do que o ar viciado
da cidade.
"Eu não me deleito
com restos, Urubu. Isso é de sua predileção, não a minha," retrucou
Carcará, empurrando Adriano em direção à penumbra que reinava no interior da
casa abandonada. O escuro era quase sólido, impenetrável. No entanto, conforme
se aproximavam, um odor nauseabundo de decomposição começou a saturar o ar.
"Ali, o corpo!"
Urubu exclamou, estendendo o dedo em direção a um recanto sombrio do ambiente.
O dedo apontava além de cadeiras despedaçadas e pilhas de detritos. Adriano,
cujas mãos tremiam, retirou o celular do bolso e, com um clique hesitante,
acendeu a lanterna. A luz fria do LED rasgou a escuridão, revelando o corpo
inerte e abandonado.
Primeiro, o terror
invadiu Adriano, um golpe visceral ante a presença tangível da morte. Mas,
quase imediatamente, o alívio o inundou, levando-o em passos apressados e
descoordenados em direção à figura caída. Ele se abaixou, revolvendo os bolsos
da vestimenta maculada, a busca marcada por uma urgência selvagem.
"O que procura com
tanto afinco?" Urubu questionou, aproximando-se silenciosamente, os olhos
cintilando com um brilho mórbido, refletindo a cena macabra. "Qual era o
motivo? Traição? Avareza? As motivações humanas são sempre tão... previsíveis."
"Ela escondia algo,
o dinheiro!" Adriano falou, quase sem fôlego, suas mãos sujas pela morte
reviravam cada centímetro do cadáver. "Transferiu tudo, a maior parte dos
nossos fundos, para outra conta, planejando me deixar! Eu dei minha vida a ela,
e ela me retribui com roubo, com traição! Não pode ser em vão... Onde está a
agenda dela? As senhas, os segredos financeiros, tudo estava lá!"
Urubu bufou, um som
carregado de desdém. "Ah, sempre o vil metal... Que motivação mais
tediosa!" A desaprovação em sua voz era tangível, tingida de um desprezo
que parecia se estender do homem ao próprio conceito de riqueza.
"Aqui está!"
Adriano anunciou triunfantemente, agitando uma pequena agenda rosa adornada com
motivos florais delicados. Sua risada, um som esganiçado e desconexo, preencheu
o ar carregado do ambiente enquanto ele se afastava do corpo inerte, seus olhos
cravados no diário como se fosse um tesouro.
Ele erguia a agenda com
uma mão e o celular com a outra, uma estranha balança da justiça em sua
execução torta. "Vocês realmente cumpriram com o solicitado. Inesperado...
Como sabiam que ela estaria aqui? Claro, vocês queriam a fortuna dela. Ao tentarem
roubá-la, acabaram matando-a, não é?" Seu sorriso, um arco de satisfação
vitoriosa, era direcionado às sombras que formavam as figuras de seus
contratados.
Com um movimento teatral,
Adriano brandiu o celular, revelando mensagens trocadas com contatos nas forças
policiais. "Tenho provas, e a polícia já está a caminho. Melhor não
tentarem nada!"
"Oh, então você a
assassinou e precisava de cordeiros para o sacrifício," Urubu deduziu com
um entusiasmo macabro. "Nos contratou para localizar o corpo e nos
incriminar, enquanto os verdadeiros culpados fugiram. Uma jogada previsível,
mas eficaz. E agora precisa de culpados para acessar o dinheiro sem levantar
suspeitas. É isso que somos para ele, Carcará, meros peões!" A voz de
Urubu dançava entre a diversão e um interesse aguçado, claramente deslocado
diante da gravidade da cena.
"Vocês... vocês são
loucos..." Adriano sussurrou, sua voz um mero sopro, desmantelado pela
reação inesperada da dupla.
"Imagino que a
polícia, já alertada, deve estar a caminho," disse Urubu, recuando
lentamente, enquanto Carcará avançava com uma determinação implacável.
"Eles devem chegar em uns cinco minutos. Acha que pode resolver tudo antes
disso?"
"Resolver o quê? Não
ouviram? A polícia está a caminho! Este beco é um caminho sem saída, não há
fuga possível! E nem pensem em tentar me ferir!" Adriano retrucou,
recuando instintivamente enquanto observava Carcará se aproximar. Em um
movimento frenético, ele mergulhou a mão no bolso do terno, em busca de algo
que pudesse oferecer proteção.
"Cinco minutos é uma
eternidade," respondeu Carcará, revelando um sorriso pela primeira vez.
Adriano engoliu em seco, sentindo o terror se espalhar por sua garganta. Do
bolso, ele extraiu uma arma, deixando seu celular escapar e cair com um baque
surdo no chão. Com a arma apontada para Carcará, que permanecia estranhamente
calmo, Adriano ameaçou: "Eu vou atirar! Recue!"
"Urubus são atraídos
por carcaças... essa foi a tarefa do Urubu, encontrar sua esposa," Carcará
disse, avançando até que o cano frio da arma tocasse sua testa. "Minha
tarefa..." ele continuou, seus olhos adquirindo um brilho peculiar na
escuridão, "é caçar... é matar."
Um disparo ressoou,
seguido de um grito agudo.
Quando a polícia chegou
cinco minutos depois, já estavam prontos para cumprir seu papel na peça
arquitetada com o Sr. Adriano, um vereador local de destaque. A cena estava
montada para que os supostos assassinos fossem pegos em flagrante, e o vereador
emergisse como um herói, um viúvo triunfante e enriquecido.
Os oficiais entraram no
beco, adentraram o espaço desolado da loja abandonada, e foram recebidos por
uma cena de devastação. Do vereador, restavam apenas fragmentos de carne e
respingos de sangue; suas vestes estavam em farrapos. Era como se ele tivesse sido
devorado por uma fera selvagem, uma criatura de garras afiadas e... um bico
cortante.
À medida que os policiais
chegavam ao local do crime, alguns não conseguiam conter o revirar de seus
estômagos, entregando-se a uma náusea incontrolável diante da brutalidade da
cena. No entanto, em meio à confusão e ao desgosto, poucos perceberam a silhueta
ameaçadora de um urubu pousado no alto de um poste próximo, sua presença
sinistra quase camuflada contra o céu cinzento. Menos ainda notaram um carcará
nas proximidades, o qual, com meticulosidade predatória, limpava as garras e o
bico ainda manchados com o vermelho vivo do sangue na mureta de um prédio
desgastado pelo tempo.
Naquele caos, ninguém se
deu conta de que o urubu trazia consigo uma agenda de capa rosa, segurando-a
firmemente entre as curvas afiadas do bico. E quando ele alçou voo com a agenda
como se fosse um prêmio macabro, apenas o vento pareceu prestar atenção. O
carcará, num movimento sincronizado e quase cúmplice, levantou-se em seguida,
as asas poderosas cortando o ar, seguindo o urubu. Eram como aliados insólitos
unidos por um propósito sombrio, partindo juntos sob o olhar indiferente da
cidade.