Quando minha
senha foi exibida no grande telão, indicando o guichê número 3, o cansaço
acumulado pela longa espera dissipou-se no momento em que vi a recepcionista.
Era uma visão e tanto, mas não por motivos convencionais. Não, não era porque
ela fosse particularmente bonita, embora pudesse ter sido em vida. O que eu
tinha à minha frente era o cadáver de uma mulher jovem, talvez na casa dos
vinte anos, com cabelos loiros quase platinados — quiçá efeito da decomposição.
Seus olhos castanhos eram opacos, e a pele, um cinza pálido.
Ela me sorriu —
e surpreendentemente ainda possuía todos os dentes, bem conservados, sem sinais
de putrefação. Talvez fosse por isso que antigamente se fazia análise dental
para identificar os mortos. Hoje, porém, bastava perguntar diretamente a eles.
Desde o evento macabro em que os mortos começaram a sair de seus túmulos,
vê-los andando pelas ruas, fazendo compras e até dirigindo não era mais tão
chocante. Contudo, encontrá-los exercendo funções que antes eram ocupadas
apenas por vivos ainda me deixava perplexo.
"Você é a
senha número 60, não é mesmo? Atendimento normal, não preferencial? Para
consulta?" ela disparou uma sequência de perguntas, às quais apenas
assenti com a cabeça. Com sua mão esquelética — era possível ver partes dos
ossos expostos aqui e ali —, ela me indicou para que me sentasse. Obedeci
automaticamente.
"Trouxe sua
carteirinha do plano? E a carteira de identidade?" perguntou a
recepcionista, enquanto seus dedos esguios e pálidos dançavam sobre o teclado
do computador com uma agilidade surpreendente para sua aparência desgastada.
"Trouxe
sim," respondi, retirando as carteiras do plano de saúde e de identidade
da minha bolsa e entregando-as a ela, tentando cautelosamente evitar contato
com sua mão fria e cinzenta.
"Sempre
acho isso engraçado, sabe?" ela comentou, apontando para a carteira do
plano com suas longas unhas, que pareciam mais frágeis do que letais.
"Engraçado?"
perguntei, franzindo o cenho em confusão.
"Sim.
Lembro que em vida me desdobrava para pagar isso. Recordo a burocracia para ter
uma cirurgia autorizada... Acabei pagando do meu próprio bolso e pensei em
pedir reembolso depois. Foi terrível! E não, não foi por essa cirurgia que
morri, se é o que você está pensando. Morri afogada, durante as férias; muita
bebida e uma idiota necessidade de tomar um banho noturno na praia,"
explicou ela, com uma expressão sombria em seu rosto decomposto, enquanto
digitava e escaneava documentos. Enquanto falava, notei que um de seus dedos se
desprendeu, caindo silenciosamente sobre o balcão. Com uma destreza
surpreendente, ela rapidamente o recolocou no lugar, continuando sua tarefa
como se nada tivesse acontecido.
"Oh..."
disse, embora não estivesse de fato curioso sobre a causa de sua morte.
"Mas agora você não precisa pagar um plano, o que é bom," comentei,
incerto.
"Você acha
mesmo que eles vão deixar de lucrar com outro mercado consumidor que está
surgindo, ou emergindo dos túmulos, se posso dizer assim?" ela riu, sua
risada vibrante, mas um pouco rouca, quem sabe por que as cordas vocais não
estivessem funcionando tão bem.
"Temos um
plano especial para nós," ela revelou, entregando a carteira do meu plano
para mim e retirando algo do bolso do seu blazer. Era um cartão magnético,
muito semelhante ao meu, mas de coloração preta e com um símbolo de caveira. As
letras douradas diziam "Plano de Saúde Necro".
"Mantendo
os mortos vivos bem cuidados," li em voz alta, erguendo as sobrancelhas.
"Pois é, o
lema parece meio cringe, mas eles fazem isso mesmo... Embalsamamentos
regulares, restauração de tecidos, substituição de partes..."
"Substituição..."
murmurei, ainda surpreso com aquelas informações.
"Olha
só..." Ela apontou para a orelha onde um grande brinco em forma de
libélula estava pendurado. "Perdi minha orelha original mês passado, então
há um banco de partes... e ganhei uma nova. Você nem percebe, né?"
"Er... Pois
é!" respondi, mas ao observar melhor a orelha, notei que a cor era de um
tom de cinza diferente, e agora que ela mencionava, era possível ver marcas
tênues de costura onde o tecido havia sido implantado.
"Bem, a
consulta..." comecei, tentando retornar ao motivo de estar ali.
"Oh! Sim,
claro... Quase esqueci. O tempo parece passar mais devagar para nós, os mortos,
sabe? Sem sentir fome, frio ou sono... Às vezes, as coisas parecem se
desenrolar em câmera lenta!" ela riu novamente e eu forcei um sorriso. Não
sabia bem como responder a isso, mas não me parecia uma vida, ou melhor, uma
morte, assim tão divertida.
"Você pode
ir. O consultório é o número 5, no fim do corredor!" disse ela com um
sorriso. Enquanto falava, outro recepcionista, que também percebi ser um
morto-vivo, passou por trás dela carregando pastas de documentos. Era um homem
muito magro, quase esquelético — e isso poderia ser interpretado literalmente.
Ele arrastava a perna enquanto caminhava, de modo que esbarrou na cadeira da
recepcionista com quem eu conversava. Esse movimento fez com que um dos seus
olhos saltasse para fora.
"Droga,
Frank! Já pedi para tomar mais cuidado por onde anda!" ela reclamou,
colocando rapidamente o olho de volta no lugar. Frank apenas emitiu um
grunhido, que interpretei como um pedido de desculpas.
Eu me levantei e
me afastei rapidamente, rumo ao consultório. De fato, as coisas haviam mudado
muito desde que os mortos-vivos passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Mas
eu ainda estava me acostumando a vê-los trabalhando... Digo, eles estão mortos,
não deveriam estar aproveitando uma espécie de aposentadoria? Mas, pelo visto,
o governo não concordou em deixar essa grande massa de cadáveres andando por aí
sem pagar impostos...
"Consultório
5..." murmurei enquanto percorria um corredor mal iluminado à procura do
consultório mencionado. Encontrei a porta com um grande número 5 ao centro.
Bati e ouvi uma voz que ecoava de seu interior, soando distante e estranhamente
etérea. Quando entrei, levei um grande susto.
"Oh! Senhor
Cabral, como vai? Veio para fazer seu check-up anual?" A voz familiar soou
através da sala, vindo do meu médico habitual. Ele costumava ser um homem de
estatura mediana, meio careca e com uma figura levemente arredondada, sempre
vestido em sua impecável bata branca. Porém, naquele momento, sua aparência era
extraordinariamente peculiar: ele se materializava diante de mim como uma
figura quase translúcida. Embora seus traços distintos e seu sorriso acolhedor
ainda estivessem lá, seu corpo parecia composto mais de memórias do que de
matéria, oscilando entre o visível e o invisível, como se estivesse suspensa
entre dois mundos. A luz do consultório passava suavemente através de sua forma
espectral, destacando o contorno nebuloso onde deveria estar seu corpo físico.
"Você
morreu?" perguntei, quase gritando, enquanto tentava controlar as batidas
do meu coração.
"Deu para
perceber, não é?" ele riu, sua risada ecoando pelo estreito consultório.
"Pois bem, morri alguns meses atrás. Infelizmente, sou do grupo seleto de
mortos-vivos sem corpo, um espírito, se posso dizer assim. Mas não se preocupe,
ainda posso exercer minha profissão!"
"Q-que
bom..." disse, forçando uma risada.
"Confesso
que demorei um pouco para aprender a manipular objetos... Mas, uma vez que você
compreende a lógica do ectoplasma e da materialização, tudo se torna mais
fácil!" Para provar isso, ele pegou o estetoscópio que estava sobre a
mesa, colocou-o em si mesmo, ajustando os auriculares sobre suas orelhas
translúcidas. "Agora, vamos começar nossa consulta, sim?"
Assenti,
receoso, mas ao final, deveria me acostumar com esses novos tempos em que vida
e morte se tornaram uma só.