terça-feira, 30 de abril de 2024

O levantar dos mortos vivos

 


Quando minha senha foi exibida no grande telão, indicando o guichê número 3, o cansaço acumulado pela longa espera dissipou-se no momento em que vi a recepcionista. Era uma visão e tanto, mas não por motivos convencionais. Não, não era porque ela fosse particularmente bonita, embora pudesse ter sido em vida. O que eu tinha à minha frente era o cadáver de uma mulher jovem, talvez na casa dos vinte anos, com cabelos loiros quase platinados — quiçá efeito da decomposição. Seus olhos castanhos eram opacos, e a pele, um cinza pálido.

Ela me sorriu — e surpreendentemente ainda possuía todos os dentes, bem conservados, sem sinais de putrefação. Talvez fosse por isso que antigamente se fazia análise dental para identificar os mortos. Hoje, porém, bastava perguntar diretamente a eles. Desde o evento macabro em que os mortos começaram a sair de seus túmulos, vê-los andando pelas ruas, fazendo compras e até dirigindo não era mais tão chocante. Contudo, encontrá-los exercendo funções que antes eram ocupadas apenas por vivos ainda me deixava perplexo.

"Você é a senha número 60, não é mesmo? Atendimento normal, não preferencial? Para consulta?" ela disparou uma sequência de perguntas, às quais apenas assenti com a cabeça. Com sua mão esquelética — era possível ver partes dos ossos expostos aqui e ali —, ela me indicou para que me sentasse. Obedeci automaticamente.

"Trouxe sua carteirinha do plano? E a carteira de identidade?" perguntou a recepcionista, enquanto seus dedos esguios e pálidos dançavam sobre o teclado do computador com uma agilidade surpreendente para sua aparência desgastada.

"Trouxe sim," respondi, retirando as carteiras do plano de saúde e de identidade da minha bolsa e entregando-as a ela, tentando cautelosamente evitar contato com sua mão fria e cinzenta.

"Sempre acho isso engraçado, sabe?" ela comentou, apontando para a carteira do plano com suas longas unhas, que pareciam mais frágeis do que letais.

"Engraçado?" perguntei, franzindo o cenho em confusão.

"Sim. Lembro que em vida me desdobrava para pagar isso. Recordo a burocracia para ter uma cirurgia autorizada... Acabei pagando do meu próprio bolso e pensei em pedir reembolso depois. Foi terrível! E não, não foi por essa cirurgia que morri, se é o que você está pensando. Morri afogada, durante as férias; muita bebida e uma idiota necessidade de tomar um banho noturno na praia," explicou ela, com uma expressão sombria em seu rosto decomposto, enquanto digitava e escaneava documentos. Enquanto falava, notei que um de seus dedos se desprendeu, caindo silenciosamente sobre o balcão. Com uma destreza surpreendente, ela rapidamente o recolocou no lugar, continuando sua tarefa como se nada tivesse acontecido.

"Oh..." disse, embora não estivesse de fato curioso sobre a causa de sua morte. "Mas agora você não precisa pagar um plano, o que é bom," comentei, incerto.

"Você acha mesmo que eles vão deixar de lucrar com outro mercado consumidor que está surgindo, ou emergindo dos túmulos, se posso dizer assim?" ela riu, sua risada vibrante, mas um pouco rouca, quem sabe por que as cordas vocais não estivessem funcionando tão bem.

"Temos um plano especial para nós," ela revelou, entregando a carteira do meu plano para mim e retirando algo do bolso do seu blazer. Era um cartão magnético, muito semelhante ao meu, mas de coloração preta e com um símbolo de caveira. As letras douradas diziam "Plano de Saúde Necro".

"Mantendo os mortos vivos bem cuidados," li em voz alta, erguendo as sobrancelhas.

"Pois é, o lema parece meio cringe, mas eles fazem isso mesmo... Embalsamamentos regulares, restauração de tecidos, substituição de partes..."

"Substituição..." murmurei, ainda surpreso com aquelas informações.

"Olha só..." Ela apontou para a orelha onde um grande brinco em forma de libélula estava pendurado. "Perdi minha orelha original mês passado, então há um banco de partes... e ganhei uma nova. Você nem percebe, né?"

"Er... Pois é!" respondi, mas ao observar melhor a orelha, notei que a cor era de um tom de cinza diferente, e agora que ela mencionava, era possível ver marcas tênues de costura onde o tecido havia sido implantado.

"Bem, a consulta..." comecei, tentando retornar ao motivo de estar ali.

"Oh! Sim, claro... Quase esqueci. O tempo parece passar mais devagar para nós, os mortos, sabe? Sem sentir fome, frio ou sono... Às vezes, as coisas parecem se desenrolar em câmera lenta!" ela riu novamente e eu forcei um sorriso. Não sabia bem como responder a isso, mas não me parecia uma vida, ou melhor, uma morte, assim tão divertida.

"Você pode ir. O consultório é o número 5, no fim do corredor!" disse ela com um sorriso. Enquanto falava, outro recepcionista, que também percebi ser um morto-vivo, passou por trás dela carregando pastas de documentos. Era um homem muito magro, quase esquelético — e isso poderia ser interpretado literalmente. Ele arrastava a perna enquanto caminhava, de modo que esbarrou na cadeira da recepcionista com quem eu conversava. Esse movimento fez com que um dos seus olhos saltasse para fora.

"Droga, Frank! Já pedi para tomar mais cuidado por onde anda!" ela reclamou, colocando rapidamente o olho de volta no lugar. Frank apenas emitiu um grunhido, que interpretei como um pedido de desculpas.

Eu me levantei e me afastei rapidamente, rumo ao consultório. De fato, as coisas haviam mudado muito desde que os mortos-vivos passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Mas eu ainda estava me acostumando a vê-los trabalhando... Digo, eles estão mortos, não deveriam estar aproveitando uma espécie de aposentadoria? Mas, pelo visto, o governo não concordou em deixar essa grande massa de cadáveres andando por aí sem pagar impostos...

"Consultório 5..." murmurei enquanto percorria um corredor mal iluminado à procura do consultório mencionado. Encontrei a porta com um grande número 5 ao centro. Bati e ouvi uma voz que ecoava de seu interior, soando distante e estranhamente etérea. Quando entrei, levei um grande susto.

"Oh! Senhor Cabral, como vai? Veio para fazer seu check-up anual?" A voz familiar soou através da sala, vindo do meu médico habitual. Ele costumava ser um homem de estatura mediana, meio careca e com uma figura levemente arredondada, sempre vestido em sua impecável bata branca. Porém, naquele momento, sua aparência era extraordinariamente peculiar: ele se materializava diante de mim como uma figura quase translúcida. Embora seus traços distintos e seu sorriso acolhedor ainda estivessem lá, seu corpo parecia composto mais de memórias do que de matéria, oscilando entre o visível e o invisível, como se estivesse suspensa entre dois mundos. A luz do consultório passava suavemente através de sua forma espectral, destacando o contorno nebuloso onde deveria estar seu corpo físico.

"Você morreu?" perguntei, quase gritando, enquanto tentava controlar as batidas do meu coração.

"Deu para perceber, não é?" ele riu, sua risada ecoando pelo estreito consultório. "Pois bem, morri alguns meses atrás. Infelizmente, sou do grupo seleto de mortos-vivos sem corpo, um espírito, se posso dizer assim. Mas não se preocupe, ainda posso exercer minha profissão!"

"Q-que bom..." disse, forçando uma risada.

"Confesso que demorei um pouco para aprender a manipular objetos... Mas, uma vez que você compreende a lógica do ectoplasma e da materialização, tudo se torna mais fácil!" Para provar isso, ele pegou o estetoscópio que estava sobre a mesa, colocou-o em si mesmo, ajustando os auriculares sobre suas orelhas translúcidas. "Agora, vamos começar nossa consulta, sim?"

Assenti, receoso, mas ao final, deveria me acostumar com esses novos tempos em que vida e morte se tornaram uma só.


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