sábado, 27 de abril de 2024

Caldeirão das Pizzas

 



A bola de cristal no balcão começou a iluminar-se e a piscar ritmicamente, lançando reflexos prismáticos pelas paredes enegrecidas do estabelecimento. De um canto sombrio, emergiu uma figura esguia e ágil. Com dedos longos e finos, nariz pontiagudo e orelhas alongadas, ela se destacava na penumbra. A criatura vestia uma camiseta desbotada com o logo de uma banda de rock, e seus cabelos arrepiados tingidos de um roxo vibrante balançavam ao correr. Chegando ao balcão, rapidamente posicionou uma escadinha de madeira escura e subiu com agilidade, ficando ao nível da esfera cintilante. Com um toque de seu dedo indicador, a bola brilhou intensamente, revelando uma figura diminuta em seu interior.

"Boa noite, aqui é o Caldeirão das Pizzas, qual seria o seu pedido?" anunciou a criatura, com uma voz esganiçada que soava quase robótica, fruto da repetição constante dessa saudação.

"Oi..." respondeu a figurinha, claramente projetada dentro da bola, "Estou organizando uma festa aqui em casa, um Sabbat [1]com as amigas..."

"Sim, sim," interrompeu a funcionária, demonstrando uma impaciência comedida, "Qual será o pedido?"

"Qual é a promoção de hoje?" perguntou a cliente, sua voz ecoando ligeiramente através da bola de cristal.

"Hoje é sábado, então temos o especial das bruxas," explicou a funcionária, olhando para um folheto ao lado da bola de cristal. "Com a compra de uma pizza gigante da Floresta Encantada, você ganha uma pizza média de Fogo das Bruxas."

"Sem refrigerante?" indagou a cliente.

"Não, o refrigerante não está incluído na promoção," respondeu a funcionária em um tom monótono.

"Pois bem, acho que vou querer... Espera, o que exatamente é esse sabor Fogo das Bruxas?"

"É uma pizza coberta com queijo derretido infundido com pó de rubi e faíscas de pimenta infernal. Cada mordida solta pequenas labaredas encantadas," informou automaticamente a funcionária.

"Labaredas? Isso parece perigoso!" exclamou a cliente, levando a mão ao rosto. A bola de cristal, mostrando apenas uma miniatura da cliente, não permitia ver bem sua expressão, mas era evidente que ela estava assustada.

"Não se preocupe, as chamas não são tão grandes assim... Não chegam nem a acionar o alarme de incêndio," garantiu a funcionária.

"Pois bem, vou querer a promoção.

"Você prefere retirar na loja ou deseja delivery?" perguntou a funcionária, com um leve eco em sua voz, amplificado pelas paredes de pedra cobertas de musgo da pizzaria.

"Delivery, por favor. Vocês entregam via dragão, ou..." hesitou a cliente, uma nota de esperança em sua voz.

"Nossas opções hoje incluem uma bruxa que voa em vassoura e um vampiro que entrega em sua forma de morcego. Nosso dragão está de folga, mas garantimos entregas rápidas e seguras," explicou a funcionária.

"Então está bem, quero delivery mesmo."

"Qual o endereço?"

"Esquina da Poção com a Vassoura, Edifício Encantado, apartamento número 7. Fica perto do cemitério central."

"Certo..." A funcionária anotou o endereço em um pergaminho antigo. Uma caneta mágica dançava sobre o papel sob o olhar relaxado da criatura. "O Caldeirão das Pizzas agradece seu pedido e sua preferência, até logo."

Com um toque suave na bola de cristal, a imagem do cliente desapareceu antes mesmo de poder dizer adeus.

"Sai uma promoção!" gritou a funcionária, estalando os dedos. O pergaminho enrolou-se sozinho e flutuou em direção à cozinha. Em seguida, ela se apoiou no balcão e retirou do bolso uma mini bola de cristal, na qual começou a assistir vídeos de goblins[2] e trolls[3] realizando danças coreografadas. A bola projetava as imagens em uma nuvem tridimensional acima dela, e ela ria, completamente entretida pelas travessuras das criaturas.

~**~

"Cheire isso aqui..." sugeriu o alquimista e pizzaiolo, um jovem alto com cabelos multicoloridos que brilhavam sob a luz fraca do estabelecimento. Vestindo uma camiseta regata e um avental com a frase "faço maldições, logo existo", ele estendeu um pequeno recipiente para sua assistente. Ela, uma feiticeira de estatura média, com cabelos negros como a mais profunda noite e um vestido roxo brilhante, hesitou antes de aproximar-se. Enquanto abria a massa da próxima pizza, sua expressão era mista entre curiosidade e cautela.

"O que é isso?" perguntou ela, antes de arriscar uma inalação do pó esbranquiçado e cinzento contido no recipiente. Já tinha aprendido que cheirar ou provar algo que seu chefe lhe entregava poderia ser arriscado, lembrando-se do incidente em que se transformou em sapo.

"São ossos moídos! Estou preparando a pizza de Lich[4], preciso saber se ainda estão bons," explicou ele, verificando a textura do pó entre seus dedos.

"São ossos de mortos, acho que a validade é a última coisa com que devemos nos preocupar," respondeu ela, espiando a pizza mencionada, que estava coberta com queijo envelhecido em catacumbas.

"E o molho especial de almas? Não está faltando?"

"Estou preparando," ela apontou para uma panela onde uma substância esbranquiçada e translúcida fervia. De tempos em tempos, pequenos gritos fantasmagóricos escapavam da mistura, enchendo o ar com um eco sobrenatural.

"Promoção saindo!" gritou alguém da recepção, e logo um pergaminho encantado veio flutuando, prendendo-se num quadro à frente dos pizzaiolos, onde outros pedidos já pendiam de forma organizada.

"Espero que ela não tenha desligado a bola de cristal na cara do cliente outra vez..." murmurou o alquimista com um suspiro resignado, lembrando-se das reclamações e das avaliações negativas que a pizzaria vinha recebendo nos aplicativos e sites. Curiosamente, as críticas raramente mencionavam a qualidade da comida, focando-se mais nos deslizes no atendimento.

"Você poderia demiti-la," sugeriu a feiticeira, esboçando um sorriso enquanto pegava um grande pote repleto de fungos mágicos luminescentes, destinados à pizza Floresta Encantada.

"Não posso! Você sabe disso... Ela é sobrinha da minha cunhada. Disseram que ela precisava de um emprego para se estabilizar na vida, depois de terminar a escola de duendes."

"Então, vamos ter que aguentar as avaliações ruins," concluiu a feiticeira com uma expressão conformada.

"Bem, vamos compensar isso fazendo as melhores pizzas!" exclamou o alquimista, tentando injetar um tom otimista na conversa. Colocando luvas protetoras, ele se dirigiu a um pote de barro posicionado perto da fornalha, onde as pizzas eram assadas. Ao abrir o pote, uma onda de calor infernal invadiu a apertada cozinha. Com movimentos ágeis, ele retirou uma das cobiçadas pimentas infernais e rapidamente a jogou em uma tigela cheia de gelo. O choque térmico causou um vapor espesso que se espalhou pelo ambiente, adicionando um toque dramático à preparação da famosa pizza Fogo das Bruxas.

~**~

Aqui está uma versão revisada e aprimorada do texto, com descrições mais detalhadas do ambiente, das ações e dos novos personagens:

O som de pequenas explosões e faíscas emergia da extremidade de uma vassoura flutuante, onde normalmente estariam as cerdas.

"Está com algum defeito no escapamento?" perguntou um jovem pálido com marcas de acne no rosto, vestindo roupas escuras enquanto saboreava uma lata de refrigerante de sangue tipo O.

"Não... é só uma troca de óleo para lubrificar as cerdas. Antes eu usava óleo de intestino de lagartixa, mas desta vez optei por algo mais econômico, com óleo de formiga de fogo..." explicou a bruxa ruiva, vestida com roupas de motoqueira, incluindo couro, calças justas e botas de cano alto. Ela coçava a cabeça, nervosa, enquanto observava sua vassoura ainda emitindo explosões e faíscas.

"É o que dá querer economizar," comentou o vampiro. "Eu nunca faço isso."

"E você nem precisa, só se transforma em morcego!" contra-atacou a bruxa, enquanto o outro rapaz apenas sorria, exibindo caninos afiados.

"Saindo os pedidos!" exclamou uma duende funcionária, equilibrando várias caixas quadradas de pizza enquanto abria a porta do beco lateral da pizzaria, onde os entregadores se reuniam. Ela segurava as caixas com uma mão e uma mini bola de cristal com a outra, distraída assistindo a um vídeo de uma elfa aplicando maquiagem e contando histórias de terror sobre caçadores humanos de criaturas mágicas. Absorta, tropeçou nas próprias pernas, lançando as caixas pelo ar.

Rapidamente, a bruxa sacou sua varinha e congelou as caixas em plena queda.

"Francamente, preste atenção!" repreendeu.

A duende não respondeu, apenas estalou os dedos, fazendo com que pergaminhos com os endereços voassem em direção ao vampiro e à bruxa. Ao fazer isso, voltou para o interior da loja sem sequer dizer desculpas.

"Que garota irritante!" resmungou a bruxa, arrumando os pedidos e amarrando as pizzas em um suporte em sua vassoura. Enquanto isso, o vampiro descartou sua lata vazia e transformou-se em um grande morcego, segurando as pizzas com as patas.

"Cuidado, ela é parente do chefe da pizzaria! E ainda por cima, é só uma adolescente!"

"Aborrecente, isso sim!" disse a bruxa, montando em sua vassoura e acelerando em alta velocidade, deixando um rastro de faíscas e explosões.

O morcego logo a seguiu, voando de maneira mais silenciosa sobre o céu noturno e estrelado da cidade.



[1] O termo "Sabbat" refere-se a uma reunião festiva de bruxas e, às vezes, outros praticantes de magia, celebrada principalmente em datas específicas que marcam a mudança das estações e outros eventos astronômicos importantes. Essas celebrações estão enraizadas em tradições pagãs e neopagãs, como o Wicca, e são momentos para rituais, feitiçaria, e fortalecimento de laços comunitários. O Sabbat pode envolver danças, cantos, feitiços e a conexão com a natureza, celebrando a continuidade da vida e os ciclos da Terra.

[2] Goblins são criaturas pequenas e astutas comumente encontradas no folclore europeu e em muitas histórias de fantasia moderna. Eles são frequentemente retratados como sendo maliciosos ou travessos, com uma aparência grotesca e comportamento imprevisível. Nos contos de fadas e mitos, goblins podem ser tanto benignos quanto malevolentes, às vezes causando problemas para os humanos ou guardando tesouros escondidos. Em muitas narrativas, eles são habilidosos em artesanato e magia, sendo capazes de criar poções mágicas e artefatos encantados.

[3] Trolls são criaturas mitológicas originárias da mitologia nórdica e escandinava, famosas por sua força bruta e uma aparência muitas vezes intimidadora. Em várias histórias, eles vivem em cavernas ou montanhas e são conhecidos por sua aversão à luz do sol, que pode transformá-los em pedra. Na literatura e cinema modernos, os trolls podem variar bastante em termos de personalidade e intelecto, desde seres terríveis e perigosos até personagens mais cômicos e menos ameaçadores.

[4] Um Lich é um tipo de morto-vivo encontrado em muitas tradições de fantasia, conhecido principalmente por sua poderosa magia e a capacidade de manter a imortalidade através de encantamentos necromânticos. Um Lich era originalmente um mago ou feiticeiro que usou feitiços proibidos para vincular sua alma a um objeto conhecido como "filactério". Enquanto este objeto permanecer intacto, o Lich pode regenerar seu corpo, tornando-o quase impossível de ser destruído. Liches são frequentemente retratados como antagonistas em histórias de aventura e magia, sendo temidos por sua magia negra e sede de poder.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Sobre a culpa e o direito ao ócio

 


Você já se sentiu culpado sem necessariamente ter feito algo errado? Refiro-me a um tipo específico de culpa: aquela que nos consome por dentro, que nos impede de desfrutar plenamente momentos de lazer, como assistir a um filme, dedicar-se a uma atividade relaxante ou mesmo passar tempo com amigos e familiares. Esse sentimento frequentemente nos faz questionar como usamos nosso tempo.

Imagine aquela voz incômoda, um sussurro constante em nossa mente, dizendo que deveríamos estar estudando ou trabalhando em vez de nos divertir. Essa voz nos lembra que, enquanto estamos nos permitindo um descanso, outros estão progredindo em suas carreiras ou estudos, acumulando conhecimento ou dinheiro. Esse é o tipo de culpa que estou discutindo: um sentimento persistente que nos questiona sobre o valor do lazer frente às obrigações e metas profissionais ou acadêmicas.

Este sentimento de culpa, tão visceral e perturbador, não emerge no vazio. Ele é um entrelaçamento complexo de fatores psicológicos, culturais, e até biológicos que refletem não apenas nossas escolhas pessoais, mas também as expectativas profundamente enraizadas em nossa sociedade. Nas próximas seções, exploraremos a origem da culpa através de diferentes lentes — desde as teorias da psicanálise, que desvendam conflitos internos e traumas, até os estudos etológicos, que nos mostram como até mesmo outros primatas podem experienciar emoções semelhantes. Avançaremos para entender como estruturas socioeconômicas, especialmente o neoliberalismo e o capitalismo, moldam e até exacerbam esse sentimento, fazendo-nos questionar não só o nosso direito ao descanso, mas também a nossa própria valia em face de um mundo que valoriza incessantemente a produtividade. Ao final, consideraremos como o ócio, longe de ser um mero lapso na produtividade, pode ser uma forma revolucionária de resistência e uma necessidade fundamental para o bem-estar humano.

Raízes da Culpa

Para compreender o sentimento de culpa, se faz necessário refletir sobre a complexidade dessa emoção. A culpa é uma das emoções mais profundas que os seres humanos experimentam. Originária do latim "culpa", que significa "crime" ou "falta", a culpa está historicamente ligada à responsabilidade por ações consideradas erradas ou transgressões.

Na perspectiva religiosa, a culpa emerge quando violamos normas morais ou divinas, constituindo um julgamento pessoal baseado em códigos éticos e regras religiosas. Por exemplo, o pecado é visto como uma transgressão moral contra um código divino, e a culpa é a resposta natural a essa transgressão. As religiões frequentemente oferecem rituais como confissão, perdão e penitência como formas de lidar com a culpa.

No campo da psicanálise, o sentimento de culpa é entendido como resultante do conflito entre as expectativas do superego — a parte da mente que internaliza as normas sociais e morais — e a realidade. Quando falhamos em atender às expectativas do superego, surgem sentimentos de culpa. Esse fenômeno está frequentemente associado ao Complexo de Édipo, que descreve um estágio do desenvolvimento psicológico em que a criança sente uma atração inconsciente pelo progenitor do sexo oposto e hostilidade em relação ao progenitor do mesmo sexo. A resolução desse conflito leva à formação do superego e, consequentemente, à capacidade de sentir culpa. A psicanálise busca desvendar as raízes da culpa através da análise do inconsciente e dos traumas passados.

A etologia estuda o comportamento animal, considerando os padrões de comportamento como sistemas orgânicos evoluídos ao longo do tempo para garantir a homeostase individual e coletiva. O sentimento de culpa, embora complexo, não parece ser exclusivo dos seres humanos. Não podemos afirmar com certeza se primatas experimentam exatamente o mesmo tipo de culpa que os humanos, mas existem comportamentos em espécies como chimpanzés e bonobos que sugerem expressões de culpa, tais como abaixar a cabeça, evitar contato visual e mostrar sinais de submissão após cometerem erros ou transgressões.

Estudos observacionais indicam que primatas, especialmente os chimpanzés, frequentemente exibem comportamentos de reconciliação após conflitos, o que pode ser interpretado como uma maneira de lidar com a culpa ou de restaurar relações sociais. Em algumas espécies, como os bonobos, indivíduos que monopolizam alimentos podem enfrentar agressões ou exclusão social por parte dos outros membros do grupo, o que indica uma noção de justiça e culpa relacionada ao compartilhamento de recursos.

No entanto, é importante lembrar que interpretar esses comportamentos em primatas é complexo e pode variar entre espécies. O que consideramos “culpa” em humanos pode ter nuances distintas em outras espécies, dada a nossa capacidade desenvolvida de refletir sobre ações passadas, antecipar consequências e processar emoções complexas devido à nossa linguagem e cognição avançadas.

Outro exemplo que ilustra a complexidade da culpa em animais envolve cães de estimação. Muitos donos de cães acreditam que seus animais expressam culpa quando são desobedientes; contudo, estudos científicos oferecem uma perspectiva diferente. Pesquisadores da Universidade de Cambridge observaram que os cães possuem um "olhar culpado" que não necessariamente reflete culpa real. Em experimentos, donos de cães não conseguiram determinar, com base na expressão facial de seus pets, se eles haviam desobedecido uma ordem para não comer um biscoito. Esse olhar de culpa parece ser mais uma reação à linguagem corporal do dono do que uma verdadeira consciência de ter cometido uma falha.

 

O culpado sou eu ou o Neoliberalismo? Ou o Capitalismo?

Conforme mostrando anteriormente, é comum associarmos a culpa a ações erradas que cometemos, como crimes, faltas ou transgressões. No entanto, a abordagem inicial deste texto sugere uma concepção de culpa que se desvia dessa interpretação tradicional. Aqui, a culpa não está necessariamente ligada a ser o transgressor, mas sim, em certos casos, a ser a vítima.

Neste contexto, proponho uma análise sob a perspectiva neoliberal da culpa. O neoliberalismo, uma teoria econômica que evoluiu do liberalismo clássico, adapta-se às condições da economia globalizada. Suas características principais incluem a minimização do papel do Estado na economia, a privatização de empresas estatais, a liberalização econômica e a desregulamentação. Mas, como isso se relaciona com a culpa?

O neoliberalismo influencia o sentimento de culpa de várias formas. Com sua ênfase na individualização da responsabilidade e na livre iniciativa, o neoliberalismo pode fazer com que as pessoas se sintam culpadas por não alcançarem sucesso ou por enfrentarem dificuldades financeiras. A incessante busca por sucesso e a competitividade do ambiente neoliberal também podem cultivar sentimento de culpa quando as pessoas falham em atingir metas ou se comparam desfavoravelmente com outros.

Além disso, a desregulamentação e a flexibilização das leis trabalhistas, frequentemente associadas ao neoliberalismo, podem levar a condições de trabalho precárias. Isso, por sua vez, pode induzir culpa nos trabalhadores por não serem suficientemente produtivos. Não podemos ignorar que o neoliberalismo também pode exacerbar a desigualdade econômica. Essa disparidade pode provocar sentimento de culpa tanto em quem possui mais recursos, por perceber a desigualdade existente, quanto em quem tem menos, por sentir-se incapaz de melhorar sua situação.

O capitalismo, como sistema econômico, exerce uma influência significativa na experiência de culpa. Este sistema valoriza o sucesso material, e aqueles que não atingem esse padrão frequentemente se sentem culpados por não corresponderem às expectativas sociais.

O consumismo, impulsionado tanto pelo neoliberalismo quanto pelo capitalismo, promove a constante aquisição de bens e serviços como meio de obter satisfação pessoal e status social. A cultura do "ter para ser" pode gerar culpa de várias maneiras: indivíduos podem sentir-se culpados ao perceberem o impacto ambiental de seu consumo excessivo ou ao identificarem um comportamento de compra compulsiva. Paradoxalmente, a incapacidade de consumir no mesmo nível que os outros, devido a restrições financeiras, por exemplo, também pode gerar sentimentos de exclusão e falha, alimentando ainda mais a culpa.

Na sociedade moderna, essas forças interagem de maneira a frequentemente amplificar a pressão e a culpa sobre os indivíduos. A constante exposição, através das mídias sociais e outras plataformas, aos sucessos e consumos alheios pode intensificar esses sentimentos. Além disso, a narrativa do "self-made man", amplamente propagada em discursos neoliberais e capitalistas, frequentemente ignora as desigualdades estruturais e atribui o sucesso pessoal inteiramente ao mérito individual.

Portanto, em dias chuvosos, quando desejo permanecer mais tempo na cama, a culpa muitas vezes me domina. Pensa-se que deveria estar de pé, trabalhando ou fazendo algo produtivo — na perspectiva neoliberal, produzindo, pois afinal, "tempo é dinheiro". Acabo me culpando não apenas pelo tempo dedicado ao descanso, mas também por não possuir as coisas que desejo, justamente por gastar esse valioso tempo deitado. A metáfora da formiga e da cigarra ressoa, sugerindo que sempre devemos ser como a formiga, laboriosa e produtiva.

A culpa neoliberal a revolução é o ócio!

O sentimento de culpa pode levar à tristeza, depressão e somatizações físicas. Por isso, é essencial liberar esse fardo para alcançar bem-estar físico e psicológico. Devemos refletir sobre nossas verdadeiras responsabilidades dentro do mundo em que vivemos e chegar à conclusão de que muitas vezes não somos de fato os culpados, considerando as pressões e expectativas impostas sobre nós.

Outro ponto fundamental é a valorização do ócio. O ócio não deve ser confundido com preguiça ou procrastinação. Refere-se a períodos de inatividade aparente, durante os quais a mente está livre para explorar ideias e conexões não convencionais. O sociólogo italiano Domenico De Masi cunhou o termo "ócio criativo" para descrever esse estado mental, acreditando que o ócio pode ser produtivo para a criatividade e inovação. O cérebro necessita de tempo ocioso para manter a produtividade, ganhar perspectiva e gerar ideias inovadoras.

O ócio não deve ser visto como algo negativo. É tanto um direito quanto um dever que permite o surgimento de facetas humanas não subjugadas pelo imperativo da produção. Historicamente estigmatizado, hoje sabemos que o descanso é fundamental para a saúde física e mental. Descansar com a mesma regularidade que trabalhamos nos torna mais produtivos, criativos e saudáveis.

Devemos reivindicar o direito ao ócio como parte essencial do autocuidado, uma responsabilidade que temos para preservar nossa saúde e bem-estar. O ócio não deve ser subestimado; ele é crucial para nossa liberdade e equilíbrio na sociedade contemporânea. Buscar o ócio é uma maneira de romper as amarras da culpa imposta pelo neoliberalismo e de viver de forma mais próxima de uma satisfação verdadeiramente libertadora e sem restrições.



quinta-feira, 25 de abril de 2024

Natalino do Sertão: O rei do Cangaço

 


Nota de Introdução:

Este texto é uma adaptação de "Naruto", um famoso anime e mangá japonês criado por Masashi Kishimoto. A história original segue Naruto Uzumaki, um jovem ninja que busca reconhecimento e sonha em tornar-se o líder de sua vila. Na nossa adaptação, a trama é transposta para o sertão nordestino do Brasil, substituindo ninjas por cangaceiros e incorporando elementos culturais regionais.

A adaptação busca explorar as dinâmicas sociais e os desafios enfrentados pelos personagens numa nova configuração, mantendo a essência dos temas originais de luta, honra e crescimento pessoal, mas com um toque distintamente nordestino. Elementos folclóricos brasileiros, como a Cabra Cabriola, e práticas culturais, como as benzeideiras, são integrados para enriquecer a narrativa, proporcionando uma perspectiva única sobre a história conhecida.

Dessa forma, este texto não apenas homenageia a obra original, mas também celebra a rica cultura do Nordeste brasileiro, criando um diálogo entre duas tradições muito diferentes, mas ambas repletas de aventura e misticismo.

Início da adaptação

A noite fria estendia-se sobre a vastidão da terra seca, salpicada de arbustos retorcidos e árvores de casca grossa. Suas folhas, pequenas e frequentemente transformadas em espinhos, eram uma estratégia astuta para minimizar a perda de água. Durante a estação seca, muitas dessas plantas perdiam suas folhas, entrando num estado de dormência enquanto aguardavam, com paciência, pelas chuvas revigorantes — um evento que, agora, não parecia iminente.

O aroma adocicado emanando das flores dos cactos permeava o ar, destacando-se as grandes e brancas flores dos mandacarus, que se tornavam faróis na escuridão, guiando os morcegos polinizadores até seu néctar. Os juazeiros, com suas copas densas e acolhedoras, surgiam aqui e ali, ocultando uma passagem estreita entre pedras e rochas. Essa trilha era ladeada pelos mandacarus e mergulhava cada vez mais fundo, conduzindo a uma gruta escondida. Quem ousasse atravessar essa passagem sinuosa e perigosa encontraria a entrada para a Vila Escondida do Mandacaru, um refúgio onde cangaceiros poderosos não apenas se abrigavam mas também estudavam e treinavam. Para muitos, esse lugar era apenas uma lenda ou uma lorota, diminuindo a importância daqueles frequentemente vistos como mercenários, ladrões e valentões. No entanto, esses homens seguiam um código de honra e haviam se organizado ao longo dos anos para criar vilas ocultas como essa, onde formavam as futuras gerações de guerreiros do sertão.

De repente, uma labareda de fogo irrompeu da entrada da gruta, uma chama intensa o suficiente para queimar qualquer um que se aproximasse demais. A origem daquele fogo era sobrenatural — fruto de um ser temido por muitos, espíritos incontroláveis que alguns chamavam de demônios. As preces eram para nunca se deparar com um deles, mas aquela não era uma noite qualquer. A escuridão foi rasgada pelo fogo emitido pela temida fera conhecida como Cabra Cabriola[1].

Adentrando pela gruta, percorrendo o túnel e desviando das chamas, chegar-se-ia à vila. Ali, podiam ser vistas as casas de barro, também conhecidas como taipa ou adobe. Feitas de uma mistura de terra, água e fibras vegetais ou esterco, essas estruturas eram moldadas em formas e secadas ao sol. Suas paredes grossas são ideais para o clima do sertão, mantendo o interior fresco durante o dia e conservando calor à noite. Os telhados, cobertos com telhas de barro, algumas ainda feitas à mão, repousam sobre estruturas de madeira retorcida e resistente.

Alternativamente, algumas moradias são erguidas com a técnica de pau a pique, um método em que uma armação de madeira é preenchida e entrelaçada com varas e depois coberta com barro. O coração da Vila do Mandacaru é a praça central, onde se ergue a imponente Jurema Preta, uma árvore sagrada que oferece sombra e serve como ponto de encontro para os moradores. Ao redor da praça, o mercado ao ar livre normalmente exibe produtos locais como artesanato em couro, cerâmica e alimentos típicos, embora estivesse deserto devido ao horário noturno.

Entretanto, o que deveria estar envolto em total penumbra agora estava iluminado pelas chamas lançadas pela Cabra. Gritos de desespero e alerta ecoavam, enquanto os moradores tentavam apagar as chamas que se alastravam pela vila. A água, recurso tão escasso ali, tornava a situação ainda mais aterrorizante. Será que a vila seria destruída pelo abominável ser?

Para muitos, a Cabra Cabriola era a personificação do medo, um ser místico na forma de uma cabra monstruosa, conhecida por aterrorizar e devorar humanos. Mas ali, postada sobre uma pedra seca, se via tal monstro. Era um bicho de tamanho gigantesco, com presas longas e uma aparência horrenda que pouco lembrava uma cabra. Ela se movia aos saltos, daí o nome “cabriola”. Num pulo só, cruzou vários metros e se postou sobre outra pedra, seus olhos amarelados lançando línguas de fogo. Seu balido ecoava, espalhando o desespero por quem o ouvia.

"Cabra Cabriola,

 Corre montes e vales,

 Corre meninos a pares,

Também te comerá a ti,

Se cá chegares,"

Cantarolou um homem enquanto ninava algo em seu colo, um bebê recém-nascido de cabelos vermelhos como a chama da Cabra. O bebê chorava, mas aos poucos, embalado pela canção de ninar, começou a se acalmar.

"Ôxe, estranho demais nós cantarmos essa música por anos e essa Cabra aparecer agora... Parece coisa de outro mundo," comentou o homem, de pele tostada pelo sol, cabelos castanhos numa tonalidade tão clara que mais pareciam dourados. Seus olhos, num tom raro de azul, miravam a cabra que saltava novamente, causando destruição na vila. Ele, que era o Rei do Cangaço da vila, título que indicava liderança sobre aquela região, se perguntava: Mas o que eu posso fazer diante de um monstro desses?

Mas ele sabia, infelizmente, o que precisava ser feito. Olhou para o bebê que segurava em um braço e, com o outro, puxou um longo facão cuja lâmina refletia uma luz tênue e fantasmagórica.

"Lamento muito, meu pequeno..." disse ao infante, que adormecia alheio ao caos ao redor.

A Cabra saltou novamente, mas desta vez, o homem reagiu com uma velocidade sobre-humana. Seu chapéu de couro, amplo e adornado com uma faixa onde pequenos espelhos redondos estavam cuidadosamente incrustados, não era apenas um acessório. Esses espelhos cintilavam ao sol, refletindo a luz como relâmpagos e serviam como ferramentas para desorientar adversários, lançando reflexos em seus olhos durante os confrontos. Foi isso que aconteceu quando ele saltou em direção à Cabra, e a luz do fogo que devorava os arbustos secos ao redor do ser místico refletiu nos espelhos, atingindo o monstro que emitiu um balido irritado, cego momentaneamente.

"Sou o Lampião Relâmpago," falou ele, autoritário, aterrissando à frente da Cabra. Com um movimento de seu facão, as chamas que se alastravam ao redor recuaram, como se fossem cortadas pela própria lâmina.

"Sou o Rei do Cangaço da Vila Escondida do Mandacaru! Você num pertence a este lugar, espírito demoníaco!" exclamou sem vacilar. O bebê que segurava em sua outra mão começou a choramingar, sentindo a tensão do momento.

"Pouco me importo quem você seja..." falou a Cabra, arrepiando o Lampião Relâmpago até a espinha. Ver um animal falar, mesmo sabendo de sua natureza sobrenatural, ainda lhe provocava um medo quase visceral. "Eu vou destruir tudo e todos... Isso vai mostrar a vocês, humanos ignorantes, humanos insetos, que eu tenho direito à minha liberdade!"

"Mas, óxente, seu direito à liberdade é garantido pela dor e morte dos inocentes? Pois talvez você não mereça mesmo essa liberdade que lhe foi concedida..." retrucou Lampião, escolhendo suas palavras com cuidado enquanto se posicionava com astúcia.

"Isso seria uma ameaça, humano? Não me faça rir!" E, de fato, ela riu, emitindo balidos tão horrendos que se misturavam com o que poderia ser chamado de risada.

O Rei do Cangaço não esperou mais, agiu. Disparou em direção à cabra com uma velocidade que muito lembrava um relâmpago, e com seu facão, desferiu um ataque. A Cabra soltou um balido assustado e saltou novamente no ar, mas foi prontamente seguida por Lampião.

Ele brandiu o facão que, estranhamente, parecia conjurar um efeito quase elétrico, atraindo a eletricidade do clima seco à lâmina e causando choques à Cabra quando a lâmina a atingiu.

Os dois aterrissaram em uma clareira de terra seca.

"Como ousa, inseto..." reclamou a Cabra, sentindo o sangue vermelho escuro escorrer de seu ferimento, tingindo o chão árido.

Novamente, o Lampião Relâmpago não disse nada, agora não era hora de prosa. Desta vez, antes de atacar, ele cuidadosamente deixou o bebê que chorava alto no chão e, da bandoleira de couro, sacou outro facão. A Cabra lançou seu fogo, mas o homem usou suas lâminas num movimento ágil de corte, dissipando as chamas antes que pudessem atingi-lo ou ao bebê.

"Você é um cangaceiro..." gemeu a Cabra, finalmente demonstrando algum receio.

"Já tinha dito isso antes... Mas não sou um cangaceiro qualquer, sou o Rei do Cangaço..." respondeu ele, desaparecendo de frente para o monstro. Correu tão rápido que sua figura pareceu se dissolver no ar. Reapareceu ao lado da Cabra Cabriola, que ainda tentava discernir a localização de seu inimigo. Novamente, a lâmina se fincou no flanco do monstro. Porém, este moveu sua cabeça para o lado e acertou Lampião com seus grandes chifres, lançando-o contra um mandacaru, que se quebrou ao meio. Os espinhos não perfuraram sua pele, graças à roupa de couro que usava.

A Cabra Cabriola lançou mais chamas sobre o cangaceiro caído, que rolou para o lado, esquivando-se habilmente do ataque incendiário. Rapidamente, Lampião se pôs de pé e contra-atacou, mas o monstro ainda não havia terminado sua ofensiva. Com um golpe violento, bateu seus cascos no chão, causando um leve tremor ao seu redor, o suficiente para diminuir a velocidade da corrida de Lampião e torná-lo visível.

A Cabra então avançou, cabeça abaixada, chifres à mostra, pronta para golpear. O cangaceiro desviou por um triz, saltando no ar, mas um dos chifres o feriu no braço. Lampião aterrissou atrás da Cabra e, com seus facões em punho, friccionou um sobre o outro. Faíscas saltaram das lâminas, e ele executou um movimento cortante no ar, lançando uma rajada de energia elétrica sobre a Cabra, que foi lançada para trás pelo impacto.

Lampião sorriu brevemente, mas logo começou a tossir, e sangue escuro escorreu de sua boca. "Veneno..." balbuciou, reconhecendo os sintomas.

"Exatamente..." baliu a Cabra, erguendo-se com dificuldade, mas triunfante. "Meus chifres são envenenados, cangaceiro tolo... Talvez, se fugir e buscar algum curandeiro ou benzedeira[2], consiga escapar, quem sabe..." E com isso, a Cabra riu divertida.

Lampião lançou um olhar aflito para o bebê, que ainda chorava ao longe. Não havia mais tempo... Aquilo deveria ser feito.

Lampião Relâmpago esperava que os outros cangaceiros tivessem tido tempo suficiente para preparar o local. Enfrentando a dor e a fraqueza que assolavam seu corpo, ele guardou seus facões e, com uma velocidade extraordinária, pegou o bebê no colo e começou a correr.

"Espere! Covarde! Eu ainda não acabei com você! Irei te devorar depois de te destruir! Inseto!" berrava a Cabra, saltando na tentativa de acompanhar a velocidade do cangaceiro. No entanto, mesmo com seus saltos poderosos, ela não conseguia manter o ritmo com o guerreiro do sertão, que habilmente abria caminho pela caatinga.

Essa era exatamente a intenção do homem: atrair a Cabra.

A perseguição os levou a uma região circundada por grandes pedras escuras, adornadas na base por pinturas rupestres de ancestrais humanos. O local estava preparado para o ritual: cercado por velas de carnaúba, uma palmeira nativa do Nordeste cuja cera é usada tradicionalmente em cerimônias. Pedras de sal grosso e folhas de arruda estavam espalhadas em um círculo ao redor do local, formando uma barreira protetora contra espíritos malignos.

Ofegante e sangrando não apenas pela boca, mas também pelo nariz, orelhas e olhos, Lampião colocou o bebê choroso no centro da área cerimonial.

"Agora é o momento! Irei tostar você e esse filhote que deve ser seu filho!" disse a Cabra, cuja fúria a fazia ignorar o ambiente ao redor. Ela não percebeu os outros cangaceiros escondidos na penumbra, atrás das pedras, arbustos espinhosos e cactos. Também não notou que Lampião retirava de seu cinto de couro outro facão, menor que os anteriores, mas especial. A lâmina deste facão havia sido forjada com metais extraídos de meteoritos da região, conhecidos por suas supostas propriedades místicas.

Uma canção em tupi-guarani, entoada em uma melodia lenta e reverente, começou a ser cantada por Lampião Relâmpago, o Rei do Cangaço. Sua voz suave ecoava pelo local, aumentando gradualmente a intensidade à medida que invocava os espíritos ancestrais. A melodia era acompanhada pelo som do maracá (chocalho) e de um tambor suave que marcava o ritmo, com esses sons emanando dos cangaceiros ocultos ao redor do local sagrado.

Foi só então que a Cabra percebeu onde se encontrava, e num movimento desesperado, tentou fugir, mas o sal grosso espalhado ao redor formava uma barreira, impedindo sua saída. Em um pico de pânico, ela lançou suas chamas numa tentativa de interromper o ritual, mas foi em vão. Lampião e seus subordinados continuaram a canção, imperturbáveis.

"Nhande Ru eté, orepy'ara"
(Grande Espírito, protege-nos)
"Peabiru pyau aguyjevete"
(Caminho novo de gratidão)
"Ara pyau guara, ore rekove"
(Dia novo, vida nova)
"Anhetẽ aguara, nhanderu"
(Verdadeiro guardião, nosso criador)

Durante a canção, Lampião Relâmpago realizava movimentos rituais com as mãos e com a lâmina, desenhando símbolos no ar enquanto segurava cuidadosamente o bebê. Cada verso era cantado com mais intensidade. Ao final da canção, ele repetia o primeiro verso em um tom de súplica, e os presentes no ritual se juntavam ao canto, formando um coro poderoso que ressoava pela clareira.

"Não! Vocês não vão me prender de novo... Não em outro humano!" A Cabra baliu em raiva e temor. Mais chamas foram lançadas, todavia o poder do ritual as extinguia uma a uma.

Cabra olhava para os lados, assustada por sentir seu poder minguar.

"Você está morrendo!" disse o animal místico para Lampião, que claramente vacilava tanto na canção quanto na forma com que segurava o facão.

"Eu posso te dar a cura!" propôs a Cabra. "Basta terminar com isso... Você poderá viver! Ficar com a criança! Ser uma família feliz... Pense no que está fazendo... Você vai se matar e condenar a criança ao ostracismo! Seria isso que você deseja? Uma criança com uma Cabra Cabriola dentro de si... Será vista como um monstro... Tal como eu sou!"

"Ele não será um monstro... Ele... Será um herói!" disse por fim Lampião, com dificuldade, enquanto sangue escuro escorria em profusão de sua boca.

E com um lampejo de força, correu novamente, usando sua imensa velocidade. A Cabra saltou, tentando escapar por outra direção, talvez por cima, mas mesmo ali a barreira de sal e arruda era forte. Abaixo de si, Lampião surgiu, cravando o facão no peito da Cabra.

Contudo, não houve sangue; ao invés disso, uma corrente se formou, unindo o facão à criança que chorava no colo de Lampião Relâmpago. Uma corrente que, apesar de parecer tangível, era feita de pura energia espiritual. Era o Selamento.

"Não! Não!" baliu a Cabra, enquanto a corrente mística começava a se contrair, puxando o ser sobrenatural cada vez mais perto do bebê, que emitia um choro agudo de dor e pânico. A Cabra era inexoravelmente arrastada para o interior do recém-nascido, até que, por fim, apenas a marca em formato de chama restava no peito do infante. Era como se tivesse sido queimada com ferro escaldante, marcando-o permanentemente com a maldição de abrigar um espírito bestial.

Com as mãos trêmulas, Lampião Relâmpago colocou uma fita de couro com uma cruz de Caravaca [3]no pescoço do bebê que ainda chorava e gemia. Aquele amuleto, além de oferecer proteção espiritual, servia como uma lembrança da falecida mãe da criança, esposa de Lampião.

Sem mais forças, Lampião tombou no chão, exausto e debilitado. Rapidamente, foi amparado pelos cangaceiros, que emergiram de seus esconderijos ao final do ritual. O selamento havia sido completado; a Cabra estava contida, impedida de causar mais desastres. No entanto, todos se perguntavam a que custo havia sido alcançada tal vitória...

Os cangaceiros choravam a queda de seu líder, e poucos sequer olhavam para o bebê, até que um cangaceiro mais velho, o antigo Rei do Cangaço, o pegou no colo com suas mãos trêmulas e envelhecidas. Ele acalentou a criança, entoando uma canção de ninar:

"Cabra Cabriola, Corre montes e vales,

Corre meninos a pares,

Também te comerá a ti,

 Se cá chegares."

O bebê começou a se acalmar lentamente. No entanto, o choro ecoante do povo da Vila Escondida de Mandacaru continuaria a ressoar pelos vales e montes durante muitos dias.

"Natalino... Esse foi o nome que tua mãe e teu pai te deram... Tens um futuro árduo pela frente. Espero que os sacrifícios feitos por tua criação valham a pena..." falou o velho cangaceiro para o infante, que agora dormia tranquilo em seu colo.

Esse momento marcava o fim de uma era para a vila, mas também o início de uma nova e grandiosa era para o Cangaço.



[1] A "Cabra Cabriola" é uma figura do folclore brasileiro, frequentemente descrita como um ser místico ou um monstro que assusta crianças e adultos. Embora as representações variem, muitas vezes é retratada como uma cabra que realiza movimentos ágeis e inesperados, semelhante ao comportamento errático da personagem na história. No contexto do texto, simboliza um espírito poderoso e rebelde.

[2] Benzeideiras são mulheres tradicionalmente conhecidas no Brasil por sua habilidade em realizar benzeduras, ou seja, rituais de cura e proteção espiritual através de orações e gestos simbólicos. Elas são parte de uma prática cultural de curandeirismo que mistura crenças católicas com tradições indígenas e africanas. No texto, referenciar benzeideiras evoca o recurso a formas de sabedoria e práticas curativas locais, em contraste com as ameaças sobrenaturais apresentadas.

[3] A Cruz de Caravaca é um símbolo religioso cristão originário da cidade de Caravaca na Espanha. É uma cruz com um duplo braço horizontal, frequentemente associada a milagres e proteção espiritual. No texto, a cruz de Caravaca é usada como um amuleto para oferecer proteção espiritual ao bebê, simbolizando também a conexão com a mãe falecida do infante, reforçando temas de legado e memória.

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