quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

O empreendedor do futuro

 

 

Zé devorava o macarrão instantâneo com uma fome voraz. Ele perscrutava o conteúdo do copo com um olhar fatigado, procurando os pedaços esporádicos de vegetais e carne, agora pouco mais que fragmentos desidratados aguardando uma transformação milagrosa pela água fervente. Com um garfo de plástico, cujas marcas de uso narravam sua longa jornada de reutilizações, ele fisgou um pedaço verde - talvez pimentão, talvez chuchu, ou qualquer outro legume que a sorte lhe reservasse. Ao mastigá-lo, o sabor era insípido, lembrando mais isopor do que comida.

Zé, em sua realidade desgastante, sabia que não podia se dar ao luxo da crítica. Aquele copo de macarrão, com sua promessa de nutrição estampada na lateral, era sua única opção. Ele forçava-se a acreditar que aqueles pedaços sem gosto eram de fato os nutrientes de que necessitava, e que não sucumbiria à desnutrição em um canto esquecido da cidade.

Sua existência pendia na balança de uma confiança quase mística. Confiar que não adoeceria, já que planos de saúde eram um luxo inacessível e hospitais públicos uma lembrança distante. Confiar que conseguiria dinheiro suficiente para seu próximo copo de sustento. Confiar na sobrevivência diária, na resiliência de sua moto - seu tesouro, ao lado do celular - que não o abandonasse durante as corridas pelas ruas cinzentas e implacáveis da cidade. Era um jogo diário de fé e resistência, na luta para se manter vivo em um mundo que parecia esquecê-lo a cada amanhecer.

Zé se forçava a não reclamar. Afinal, ser um "empreendedor" era uma vocação valorizada, pelo menos era o que os inúmeros outdoors holográficos espalhados pela cidade proclamavam. Esses empreendedores, retratados como visionários, não dependiam de salários como os "preguiçosos" funcionários de outrora; eles batalhavam arduamente por cada centavo, ainda que seus ganhos ficassem aquém dos antigos salários. Eram celebrados como arautos da liberdade, capazes de definir seus próprios horários e sem a submissão a um chefe. Mas essa liberdade tinha um preço: jornadas extenuantes sem folgas, pois qualquer pausa era sinônimo de atraso e perda, e horários imprevisíveis e erráticos. Eles eram, em essência, os heróis desbravadores do novo paradigma econômico.

Neste mundo os empreendedores eram os ícones do progresso humano.

Subitamente, um alarme agudo soou do celular de Zé, interrompendo suas reflexões e sua refeição inacabada. Ele agarrava rapidamente o dispositivo, cuja tela rachada dava vida a um holograma trêmulo e repleto de falhas. Apesar das distorções e interferências, Zé era um expert em decifrar as letras e números flutuantes no espaço tridimensional precário que se projetava diante dele. O endereço para a próxima entrega piscava imperfeitamente.

Zé engoliu vorazmente o resto de sua refeição e saltou sobre sua moto, uma máquina de aspecto robusto e um tanto desgastado. Ajustou em suas costas a mochila cúbica, o receptáculo para a valiosa entrega que ainda estava por vir. Com uma mão, ele deu vida ao motor de sua moto, que roncou com uma promessa de potência. Na outra, segurava um bastão de ferro, grotescamente adornado com espinhos feitos de pregos e arame farpado. Para Zé, cada entrega era uma batalha nas selvas de concreto e aço da cidade.

Com uma destreza nascida da necessidade, Zé acelerou pelas avenidas quase desertas dos níveis terrestres da metrópole. Os propulsores de segunda mão de sua moto, poderosos mas perigosamente instáveis, o impulsionavam para além dos limites de velocidade dos veículos comuns, desafiando constantemente o risco de uma explosão fatal. Para Zé, arriscar era a essência de ser um empreendedor.

Acima dele, os carros voadores das classes mais ricas cortavam os céus. Zé sabia que seus condutores também se consideravam empreendedores, mas se perguntava como eles podiam viver tão bem, distantes do caos e da luta diária das ruas. Ele nunca os via enfrentando os perigos e sujando as mãos de sangue como ele fazia.

De repente, um grito rasgou o ar, quebrando a concentração de Zé. "A entrega é minha!" bradou um outro motoqueiro, emergindo da penumbra com uma expressão selvagem. Na mão, um revólver apontado diretamente para Zé, refletindo a luz pálida dos letreiros neon

Zé, com um reflexo ágil, reduziu a velocidade da moto, deixando o motoqueiro agressor atirar no vazio. A arma, de qualidade duvidosa, explodiu em suas mãos. Zé sabia que armas eram um luxo inacessível para muitos; apenas os mais abastados podiam se dar ao luxo de possuir armas confiáveis. As que estavam ao alcance dos empreendedores de rua eram baratas e perigosas, muitas vezes mais letais para seus próprios donos do que para os adversários.

O motoqueiro, surpreso e ferido, encarava em choque a mão que restara apenas em pedaços de ossos e carne chamuscada. Zé, sempre preferindo armas brancas por sua confiabilidade, aproveitou a distração do adversário. Com uma precisão letal, acertou o capacete do rival com seu bastão de ferro adornado com espinhos, lançando-o descontroladamente para fora da moto.

"Menos um concorrente", pensou Zé, sem perder tempo.

Mas a luta estava longe de acabar. O zumbido ameaçador de outras motos enchia o ar, vindos de todas as direções – trás, frente, e nas ruas paralelas. Valentes empreendedores a bordo de suas motos se enfrentavam furiosamente, cada um em uma corrida frenética pelo mesmo prêmio.

Zé, num movimento repentino, desviou por pouco de um arpão lançado por um rival à sua frente. Com uma manobra ousada, usou a carcaça enferrujada de um carro abandonado como rampa, saltando por cima de um grupo de empreendedores. Ao aterrissar, ele sentiu o impacto reverberar pelo chassi de sua moto, mas continuou imperturbável.

Logo em seguida, o estrondo de uma explosão ecoou pelas ruas. Zé não precisou olhar para trás para saber que algum propulsor sobrecarregado havia superaquecido e detonado, ceifando tanto a moto quanto seu audacioso piloto.

Zé virou abruptamente em uma ruela paralela, buscando fugir do caos da avenida principal. A moto de Zé rugiu enquanto passava por cima de um braço amputado, cuja mão ainda agarrava uma peixeira enferrujada. A passagem estreita forçava Zé a manobrar com cuidado, as laterais de sua moto raspando contra as paredes metálicas que ladeavam a ruela. A vantagem? Estava só, pelo menos por aquele momento.

Após alguns minutos tensos, Zé emergiu no outro lado, atravessando um holograma publicitário de mais uma das inúmeras startups que proliferavam na cidade. Era uma propaganda labiríntica, promovendo uma empresa que ajudava outras empresas a encontrar mais empresas, todas ligadas a um suposto empreendedor brilhante. Zé não teve tempo para considerar a ironia disso, acelerando passando por carcaças enferrujadas de carros abandonados.

De repente, uma explosão violenta irrompeu ao seu lado. Os restos de um veículo Hilux se desintegraram no ar, espalhando uma chuva de ferrugem e engrenagens. Alguém estava usando uma bazuca desintegradora. Zé lançou um olhar alarmado na direção do ataque, apenas para descobrir que não era obra de um único adversário, mas sim de um grupo. Empreendedores unidos formavam uma espécie de frente de combate, um pseudo-sindicato em meio ao caos urbano.

"Morra! Morra! Morra!", gritava o grupo enquanto disparava mais uma vez em direção de Zé.

Zé acelerou desesperadamente, mas sua moto derrapou ao passar por uma poça de resíduos tóxicos e radioativos. Ele caiu, deslizando pelo líquido fedorento. Por um golpe de sorte, o tiro passou acima de sua cabeça, atingindo um dos prédios próximos. A construção, revestida por uma liga metálica altamente resistente, permaneceu intacta, mas o impacto ativou um alarme de segurança.

Como se fossem abelhas furiosas saindo de uma colmeia perturbada, drones de segurança emergiram do edifício atingido, zumbindo em direção ao grupo armado. Zé, ainda no chão, observou o caos se desenrolar, percebendo a oportunidade de escapar enquanto a atenção do pseudo-sindicato estava voltada para os drones de segurança.

Zé estava plenamente ciente da regra mais sagrada daquele mundo: jamais causar danos à propriedade privada. As consequências eram implacáveis e severas. Sem perder tempo observando o grupo ser aniquilado pelos drones, ele saltou sobre sua moto e partiu rapidamente. O destino de sua missão estava cada vez mais próximo.

A frente de combate, ao que parecia, havia decimado a maioria de seus adversários, o que deixou Zé com poucos oponentes no seu caminho. Ele manejou seu bastão com destreza, desferindo golpes letais em mais dois motoqueiros antes de alcançar o restaurante.

O prédio do restaurante era marcado por uma janela blindada, guardada por um robô funcional, destinado a organizar as entregas. Os pacotes de comida, selados hermeticamente, eram depositados em um compartimento de segurança, acessível para os empreendedores do lado de fora.

"Entrega número 205708913..." começou o robô, com uma voz monótona e desprovida de emoção. Zé, sem perder tempo, interceptou a longa sequência numérica, pegou rapidamente o pacote de comida e o enfiou em sua mochila cúbica. Assim que a encomenda foi acomodada, a mochila se fechou automaticamente e um cronômetro foi ativado, dando-lhe exatamente trinta minutos para realizar a entrega. Caso falhasse, não só perderia o pagamento como ainda seria obrigado a entregar a comida sob pena de ser perseguido por drones e banido do mundo do empreendedorismo.

Zé respirou fundo, lançando um olhar determinado para a estrada adiante, um cenário de sucata de carros, lixo e os primeiros sinais de uma chuva ácida - uma visão deprimente, porém comum.

O zumbido de mais motos se aproximando era um lembrete de que a batalha ainda não havia terminado. Sua encomenda estava sob constante ameaça de ser roubada. A única coisa que importava era entregá-la.

"...3459018394995..." continuava o robô, indiferente, enquanto Zé ligava sua moto e partia para mais uma etapa de seu árduo trabalho diário. Ele esperava que, ao final do dia, pudesse se deliciar com mais um macarrão instantâneo, desta vez, talvez, com carne e verduras de sabor um pouco mais aceitável do que isopor.

Conto escrito por Nathy Maíra 

 

Festival da hipocrisia mundial

 

A city street during the holiday season, bustling with festive decorations and busy shoppers. In the midst of this, a solitary figure, a man in worn clothing, sits beneath a bare tree on the sidewalk. He looks contemplative and slightly out of place amid the holiday cheer. The contrast between the festive atmosphere and the man's situation is stark. The scene is set in the evening with street lights and store windows casting a warm glow, while the man is in the shadows, highlighting the disparity between him and the festive surroundings. This image captures the essence of urban life during the holidays, with a focus on the contrast between celebration and solitude.

 

Ah, essa era a época do ano que ele adorava – note o sarcasmo. Nada a ver com mesas transbordando de comida, a falsidade da troca de presentes, ou o teatro da união familiar. Quem ele estava tentando enganar? Ele mal conseguia comprar um pão amanhecido, quanto mais se deliciar com um panetone gourmet. Presentes? Só se chovessem do céu. E família? Ah, essa o havia largado faz é tempo.

Por que, então, ele 'gostava' tanto dessa época? Oh, a resposta é um deleite de cinismo. Ele não chamava isso de Natal, mas sim o 'festival da hipocrisia mundial'. Era aquela época mágica do ano em que os 'bons samaritanos' saíam de suas cavernas, tomados por um falso espírito de fraternidade, atirando migalhas de caridade para se livrar da culpa acumulada. E a caridade, ah, essa só tinha valor com plateia, aplausos e um obrigado bem dramático, como se estivessem salvando o mundo. Sim, ele recebia sua cota de esmolas natalinas – restos de comida e roupas que nem os próprios doadores usariam. Um verdadeiro banquete de sobras, mas ei, melhor do que nada, certo?

Além disso, havia o lixo! Ah, o glorioso lixo gerado nesses dias festivos! Principalmente após o 24 e 25 de dezembro! Ele realmente se sentia afortunado por encontrar tantos restos, plásticos, latinhas, embrulhos, presentes descartados... Uma verdadeira mina de 'tesouros' que podia vender ou mesmo reutilizar. Ironia das ironias, essa época do ano se revelava uma das mais lucrativas para ele.

Naquele ponto, ele já nem se lembrava mais do verdadeiro significado do Natal. Afinal, sobre o que era essa festa mesmo? Uma celebração em homenagem a alguma figura importante, certamente rica, porque, afinal, todo importante tem que ostentar riqueza, certo? Não poderia ser alguém como ele... Uma pessoa esquecida, ignorada. Aquele que as pessoas evitam olhar, virando o rosto ao passar. Aquele para quem os vidros dos carros se fecham ao pedir esmolas. Reduzido a uma coisa, mais do que um ser humano, na sociedade do espetáculo e do descarte.

"Jesus!" alguém chamou. Ele ergueu os olhos do ponto onde estava sentado, à sombra de uma árvore desfolhada, no canteiro central de uma avenida movimentada.

"Viva Jesus!" uma mulher exclamava para um grupo de pedintes enquanto lhes entregava algo que parecia ser um saco de balas, mais duras que pedras. O que o surpreendia, no entanto, era ela pronunciar seu nome. Às vezes, ele quase esquecia que Jesus era como se chamava... Afinal, ninguém jamais se dirigia a ele diretamente. Insultos, sim, mas seu verdadeiro nome raramente era mencionado.

Jesus... E esses 'vivas'? O que realmente significavam? Ele se perguntava, perdido em pensamentos, enquanto a vida agitada da cidade continuava ao seu redor.

 

Conto de Nathy Maíra

 

Entre a Chuva e o Sol

  "Você tem certeza de que ela é realmente competente?" "Sim, pelo menos é o que dizem...", seu assessor lhe infor...