terça-feira, 30 de abril de 2024

O levantar dos mortos vivos

 


Quando minha senha foi exibida no grande telão, indicando o guichê número 3, o cansaço acumulado pela longa espera dissipou-se no momento em que vi a recepcionista. Era uma visão e tanto, mas não por motivos convencionais. Não, não era porque ela fosse particularmente bonita, embora pudesse ter sido em vida. O que eu tinha à minha frente era o cadáver de uma mulher jovem, talvez na casa dos vinte anos, com cabelos loiros quase platinados — quiçá efeito da decomposição. Seus olhos castanhos eram opacos, e a pele, um cinza pálido.

Ela me sorriu — e surpreendentemente ainda possuía todos os dentes, bem conservados, sem sinais de putrefação. Talvez fosse por isso que antigamente se fazia análise dental para identificar os mortos. Hoje, porém, bastava perguntar diretamente a eles. Desde o evento macabro em que os mortos começaram a sair de seus túmulos, vê-los andando pelas ruas, fazendo compras e até dirigindo não era mais tão chocante. Contudo, encontrá-los exercendo funções que antes eram ocupadas apenas por vivos ainda me deixava perplexo.

"Você é a senha número 60, não é mesmo? Atendimento normal, não preferencial? Para consulta?" ela disparou uma sequência de perguntas, às quais apenas assenti com a cabeça. Com sua mão esquelética — era possível ver partes dos ossos expostos aqui e ali —, ela me indicou para que me sentasse. Obedeci automaticamente.

"Trouxe sua carteirinha do plano? E a carteira de identidade?" perguntou a recepcionista, enquanto seus dedos esguios e pálidos dançavam sobre o teclado do computador com uma agilidade surpreendente para sua aparência desgastada.

"Trouxe sim," respondi, retirando as carteiras do plano de saúde e de identidade da minha bolsa e entregando-as a ela, tentando cautelosamente evitar contato com sua mão fria e cinzenta.

"Sempre acho isso engraçado, sabe?" ela comentou, apontando para a carteira do plano com suas longas unhas, que pareciam mais frágeis do que letais.

"Engraçado?" perguntei, franzindo o cenho em confusão.

"Sim. Lembro que em vida me desdobrava para pagar isso. Recordo a burocracia para ter uma cirurgia autorizada... Acabei pagando do meu próprio bolso e pensei em pedir reembolso depois. Foi terrível! E não, não foi por essa cirurgia que morri, se é o que você está pensando. Morri afogada, durante as férias; muita bebida e uma idiota necessidade de tomar um banho noturno na praia," explicou ela, com uma expressão sombria em seu rosto decomposto, enquanto digitava e escaneava documentos. Enquanto falava, notei que um de seus dedos se desprendeu, caindo silenciosamente sobre o balcão. Com uma destreza surpreendente, ela rapidamente o recolocou no lugar, continuando sua tarefa como se nada tivesse acontecido.

"Oh..." disse, embora não estivesse de fato curioso sobre a causa de sua morte. "Mas agora você não precisa pagar um plano, o que é bom," comentei, incerto.

"Você acha mesmo que eles vão deixar de lucrar com outro mercado consumidor que está surgindo, ou emergindo dos túmulos, se posso dizer assim?" ela riu, sua risada vibrante, mas um pouco rouca, quem sabe por que as cordas vocais não estivessem funcionando tão bem.

"Temos um plano especial para nós," ela revelou, entregando a carteira do meu plano para mim e retirando algo do bolso do seu blazer. Era um cartão magnético, muito semelhante ao meu, mas de coloração preta e com um símbolo de caveira. As letras douradas diziam "Plano de Saúde Necro".

"Mantendo os mortos vivos bem cuidados," li em voz alta, erguendo as sobrancelhas.

"Pois é, o lema parece meio cringe, mas eles fazem isso mesmo... Embalsamamentos regulares, restauração de tecidos, substituição de partes..."

"Substituição..." murmurei, ainda surpreso com aquelas informações.

"Olha só..." Ela apontou para a orelha onde um grande brinco em forma de libélula estava pendurado. "Perdi minha orelha original mês passado, então há um banco de partes... e ganhei uma nova. Você nem percebe, né?"

"Er... Pois é!" respondi, mas ao observar melhor a orelha, notei que a cor era de um tom de cinza diferente, e agora que ela mencionava, era possível ver marcas tênues de costura onde o tecido havia sido implantado.

"Bem, a consulta..." comecei, tentando retornar ao motivo de estar ali.

"Oh! Sim, claro... Quase esqueci. O tempo parece passar mais devagar para nós, os mortos, sabe? Sem sentir fome, frio ou sono... Às vezes, as coisas parecem se desenrolar em câmera lenta!" ela riu novamente e eu forcei um sorriso. Não sabia bem como responder a isso, mas não me parecia uma vida, ou melhor, uma morte, assim tão divertida.

"Você pode ir. O consultório é o número 5, no fim do corredor!" disse ela com um sorriso. Enquanto falava, outro recepcionista, que também percebi ser um morto-vivo, passou por trás dela carregando pastas de documentos. Era um homem muito magro, quase esquelético — e isso poderia ser interpretado literalmente. Ele arrastava a perna enquanto caminhava, de modo que esbarrou na cadeira da recepcionista com quem eu conversava. Esse movimento fez com que um dos seus olhos saltasse para fora.

"Droga, Frank! Já pedi para tomar mais cuidado por onde anda!" ela reclamou, colocando rapidamente o olho de volta no lugar. Frank apenas emitiu um grunhido, que interpretei como um pedido de desculpas.

Eu me levantei e me afastei rapidamente, rumo ao consultório. De fato, as coisas haviam mudado muito desde que os mortos-vivos passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Mas eu ainda estava me acostumando a vê-los trabalhando... Digo, eles estão mortos, não deveriam estar aproveitando uma espécie de aposentadoria? Mas, pelo visto, o governo não concordou em deixar essa grande massa de cadáveres andando por aí sem pagar impostos...

"Consultório 5..." murmurei enquanto percorria um corredor mal iluminado à procura do consultório mencionado. Encontrei a porta com um grande número 5 ao centro. Bati e ouvi uma voz que ecoava de seu interior, soando distante e estranhamente etérea. Quando entrei, levei um grande susto.

"Oh! Senhor Cabral, como vai? Veio para fazer seu check-up anual?" A voz familiar soou através da sala, vindo do meu médico habitual. Ele costumava ser um homem de estatura mediana, meio careca e com uma figura levemente arredondada, sempre vestido em sua impecável bata branca. Porém, naquele momento, sua aparência era extraordinariamente peculiar: ele se materializava diante de mim como uma figura quase translúcida. Embora seus traços distintos e seu sorriso acolhedor ainda estivessem lá, seu corpo parecia composto mais de memórias do que de matéria, oscilando entre o visível e o invisível, como se estivesse suspensa entre dois mundos. A luz do consultório passava suavemente através de sua forma espectral, destacando o contorno nebuloso onde deveria estar seu corpo físico.

"Você morreu?" perguntei, quase gritando, enquanto tentava controlar as batidas do meu coração.

"Deu para perceber, não é?" ele riu, sua risada ecoando pelo estreito consultório. "Pois bem, morri alguns meses atrás. Infelizmente, sou do grupo seleto de mortos-vivos sem corpo, um espírito, se posso dizer assim. Mas não se preocupe, ainda posso exercer minha profissão!"

"Q-que bom..." disse, forçando uma risada.

"Confesso que demorei um pouco para aprender a manipular objetos... Mas, uma vez que você compreende a lógica do ectoplasma e da materialização, tudo se torna mais fácil!" Para provar isso, ele pegou o estetoscópio que estava sobre a mesa, colocou-o em si mesmo, ajustando os auriculares sobre suas orelhas translúcidas. "Agora, vamos começar nossa consulta, sim?"

Assenti, receoso, mas ao final, deveria me acostumar com esses novos tempos em que vida e morte se tornaram uma só.


sábado, 27 de abril de 2024

Caldeirão das Pizzas

 



A bola de cristal no balcão começou a iluminar-se e a piscar ritmicamente, lançando reflexos prismáticos pelas paredes enegrecidas do estabelecimento. De um canto sombrio, emergiu uma figura esguia e ágil. Com dedos longos e finos, nariz pontiagudo e orelhas alongadas, ela se destacava na penumbra. A criatura vestia uma camiseta desbotada com o logo de uma banda de rock, e seus cabelos arrepiados tingidos de um roxo vibrante balançavam ao correr. Chegando ao balcão, rapidamente posicionou uma escadinha de madeira escura e subiu com agilidade, ficando ao nível da esfera cintilante. Com um toque de seu dedo indicador, a bola brilhou intensamente, revelando uma figura diminuta em seu interior.

"Boa noite, aqui é o Caldeirão das Pizzas, qual seria o seu pedido?" anunciou a criatura, com uma voz esganiçada que soava quase robótica, fruto da repetição constante dessa saudação.

"Oi..." respondeu a figurinha, claramente projetada dentro da bola, "Estou organizando uma festa aqui em casa, um Sabbat [1]com as amigas..."

"Sim, sim," interrompeu a funcionária, demonstrando uma impaciência comedida, "Qual será o pedido?"

"Qual é a promoção de hoje?" perguntou a cliente, sua voz ecoando ligeiramente através da bola de cristal.

"Hoje é sábado, então temos o especial das bruxas," explicou a funcionária, olhando para um folheto ao lado da bola de cristal. "Com a compra de uma pizza gigante da Floresta Encantada, você ganha uma pizza média de Fogo das Bruxas."

"Sem refrigerante?" indagou a cliente.

"Não, o refrigerante não está incluído na promoção," respondeu a funcionária em um tom monótono.

"Pois bem, acho que vou querer... Espera, o que exatamente é esse sabor Fogo das Bruxas?"

"É uma pizza coberta com queijo derretido infundido com pó de rubi e faíscas de pimenta infernal. Cada mordida solta pequenas labaredas encantadas," informou automaticamente a funcionária.

"Labaredas? Isso parece perigoso!" exclamou a cliente, levando a mão ao rosto. A bola de cristal, mostrando apenas uma miniatura da cliente, não permitia ver bem sua expressão, mas era evidente que ela estava assustada.

"Não se preocupe, as chamas não são tão grandes assim... Não chegam nem a acionar o alarme de incêndio," garantiu a funcionária.

"Pois bem, vou querer a promoção.

"Você prefere retirar na loja ou deseja delivery?" perguntou a funcionária, com um leve eco em sua voz, amplificado pelas paredes de pedra cobertas de musgo da pizzaria.

"Delivery, por favor. Vocês entregam via dragão, ou..." hesitou a cliente, uma nota de esperança em sua voz.

"Nossas opções hoje incluem uma bruxa que voa em vassoura e um vampiro que entrega em sua forma de morcego. Nosso dragão está de folga, mas garantimos entregas rápidas e seguras," explicou a funcionária.

"Então está bem, quero delivery mesmo."

"Qual o endereço?"

"Esquina da Poção com a Vassoura, Edifício Encantado, apartamento número 7. Fica perto do cemitério central."

"Certo..." A funcionária anotou o endereço em um pergaminho antigo. Uma caneta mágica dançava sobre o papel sob o olhar relaxado da criatura. "O Caldeirão das Pizzas agradece seu pedido e sua preferência, até logo."

Com um toque suave na bola de cristal, a imagem do cliente desapareceu antes mesmo de poder dizer adeus.

"Sai uma promoção!" gritou a funcionária, estalando os dedos. O pergaminho enrolou-se sozinho e flutuou em direção à cozinha. Em seguida, ela se apoiou no balcão e retirou do bolso uma mini bola de cristal, na qual começou a assistir vídeos de goblins[2] e trolls[3] realizando danças coreografadas. A bola projetava as imagens em uma nuvem tridimensional acima dela, e ela ria, completamente entretida pelas travessuras das criaturas.

~**~

"Cheire isso aqui..." sugeriu o alquimista e pizzaiolo, um jovem alto com cabelos multicoloridos que brilhavam sob a luz fraca do estabelecimento. Vestindo uma camiseta regata e um avental com a frase "faço maldições, logo existo", ele estendeu um pequeno recipiente para sua assistente. Ela, uma feiticeira de estatura média, com cabelos negros como a mais profunda noite e um vestido roxo brilhante, hesitou antes de aproximar-se. Enquanto abria a massa da próxima pizza, sua expressão era mista entre curiosidade e cautela.

"O que é isso?" perguntou ela, antes de arriscar uma inalação do pó esbranquiçado e cinzento contido no recipiente. Já tinha aprendido que cheirar ou provar algo que seu chefe lhe entregava poderia ser arriscado, lembrando-se do incidente em que se transformou em sapo.

"São ossos moídos! Estou preparando a pizza de Lich[4], preciso saber se ainda estão bons," explicou ele, verificando a textura do pó entre seus dedos.

"São ossos de mortos, acho que a validade é a última coisa com que devemos nos preocupar," respondeu ela, espiando a pizza mencionada, que estava coberta com queijo envelhecido em catacumbas.

"E o molho especial de almas? Não está faltando?"

"Estou preparando," ela apontou para uma panela onde uma substância esbranquiçada e translúcida fervia. De tempos em tempos, pequenos gritos fantasmagóricos escapavam da mistura, enchendo o ar com um eco sobrenatural.

"Promoção saindo!" gritou alguém da recepção, e logo um pergaminho encantado veio flutuando, prendendo-se num quadro à frente dos pizzaiolos, onde outros pedidos já pendiam de forma organizada.

"Espero que ela não tenha desligado a bola de cristal na cara do cliente outra vez..." murmurou o alquimista com um suspiro resignado, lembrando-se das reclamações e das avaliações negativas que a pizzaria vinha recebendo nos aplicativos e sites. Curiosamente, as críticas raramente mencionavam a qualidade da comida, focando-se mais nos deslizes no atendimento.

"Você poderia demiti-la," sugeriu a feiticeira, esboçando um sorriso enquanto pegava um grande pote repleto de fungos mágicos luminescentes, destinados à pizza Floresta Encantada.

"Não posso! Você sabe disso... Ela é sobrinha da minha cunhada. Disseram que ela precisava de um emprego para se estabilizar na vida, depois de terminar a escola de duendes."

"Então, vamos ter que aguentar as avaliações ruins," concluiu a feiticeira com uma expressão conformada.

"Bem, vamos compensar isso fazendo as melhores pizzas!" exclamou o alquimista, tentando injetar um tom otimista na conversa. Colocando luvas protetoras, ele se dirigiu a um pote de barro posicionado perto da fornalha, onde as pizzas eram assadas. Ao abrir o pote, uma onda de calor infernal invadiu a apertada cozinha. Com movimentos ágeis, ele retirou uma das cobiçadas pimentas infernais e rapidamente a jogou em uma tigela cheia de gelo. O choque térmico causou um vapor espesso que se espalhou pelo ambiente, adicionando um toque dramático à preparação da famosa pizza Fogo das Bruxas.

~**~

Aqui está uma versão revisada e aprimorada do texto, com descrições mais detalhadas do ambiente, das ações e dos novos personagens:

O som de pequenas explosões e faíscas emergia da extremidade de uma vassoura flutuante, onde normalmente estariam as cerdas.

"Está com algum defeito no escapamento?" perguntou um jovem pálido com marcas de acne no rosto, vestindo roupas escuras enquanto saboreava uma lata de refrigerante de sangue tipo O.

"Não... é só uma troca de óleo para lubrificar as cerdas. Antes eu usava óleo de intestino de lagartixa, mas desta vez optei por algo mais econômico, com óleo de formiga de fogo..." explicou a bruxa ruiva, vestida com roupas de motoqueira, incluindo couro, calças justas e botas de cano alto. Ela coçava a cabeça, nervosa, enquanto observava sua vassoura ainda emitindo explosões e faíscas.

"É o que dá querer economizar," comentou o vampiro. "Eu nunca faço isso."

"E você nem precisa, só se transforma em morcego!" contra-atacou a bruxa, enquanto o outro rapaz apenas sorria, exibindo caninos afiados.

"Saindo os pedidos!" exclamou uma duende funcionária, equilibrando várias caixas quadradas de pizza enquanto abria a porta do beco lateral da pizzaria, onde os entregadores se reuniam. Ela segurava as caixas com uma mão e uma mini bola de cristal com a outra, distraída assistindo a um vídeo de uma elfa aplicando maquiagem e contando histórias de terror sobre caçadores humanos de criaturas mágicas. Absorta, tropeçou nas próprias pernas, lançando as caixas pelo ar.

Rapidamente, a bruxa sacou sua varinha e congelou as caixas em plena queda.

"Francamente, preste atenção!" repreendeu.

A duende não respondeu, apenas estalou os dedos, fazendo com que pergaminhos com os endereços voassem em direção ao vampiro e à bruxa. Ao fazer isso, voltou para o interior da loja sem sequer dizer desculpas.

"Que garota irritante!" resmungou a bruxa, arrumando os pedidos e amarrando as pizzas em um suporte em sua vassoura. Enquanto isso, o vampiro descartou sua lata vazia e transformou-se em um grande morcego, segurando as pizzas com as patas.

"Cuidado, ela é parente do chefe da pizzaria! E ainda por cima, é só uma adolescente!"

"Aborrecente, isso sim!" disse a bruxa, montando em sua vassoura e acelerando em alta velocidade, deixando um rastro de faíscas e explosões.

O morcego logo a seguiu, voando de maneira mais silenciosa sobre o céu noturno e estrelado da cidade.



[1] O termo "Sabbat" refere-se a uma reunião festiva de bruxas e, às vezes, outros praticantes de magia, celebrada principalmente em datas específicas que marcam a mudança das estações e outros eventos astronômicos importantes. Essas celebrações estão enraizadas em tradições pagãs e neopagãs, como o Wicca, e são momentos para rituais, feitiçaria, e fortalecimento de laços comunitários. O Sabbat pode envolver danças, cantos, feitiços e a conexão com a natureza, celebrando a continuidade da vida e os ciclos da Terra.

[2] Goblins são criaturas pequenas e astutas comumente encontradas no folclore europeu e em muitas histórias de fantasia moderna. Eles são frequentemente retratados como sendo maliciosos ou travessos, com uma aparência grotesca e comportamento imprevisível. Nos contos de fadas e mitos, goblins podem ser tanto benignos quanto malevolentes, às vezes causando problemas para os humanos ou guardando tesouros escondidos. Em muitas narrativas, eles são habilidosos em artesanato e magia, sendo capazes de criar poções mágicas e artefatos encantados.

[3] Trolls são criaturas mitológicas originárias da mitologia nórdica e escandinava, famosas por sua força bruta e uma aparência muitas vezes intimidadora. Em várias histórias, eles vivem em cavernas ou montanhas e são conhecidos por sua aversão à luz do sol, que pode transformá-los em pedra. Na literatura e cinema modernos, os trolls podem variar bastante em termos de personalidade e intelecto, desde seres terríveis e perigosos até personagens mais cômicos e menos ameaçadores.

[4] Um Lich é um tipo de morto-vivo encontrado em muitas tradições de fantasia, conhecido principalmente por sua poderosa magia e a capacidade de manter a imortalidade através de encantamentos necromânticos. Um Lich era originalmente um mago ou feiticeiro que usou feitiços proibidos para vincular sua alma a um objeto conhecido como "filactério". Enquanto este objeto permanecer intacto, o Lich pode regenerar seu corpo, tornando-o quase impossível de ser destruído. Liches são frequentemente retratados como antagonistas em histórias de aventura e magia, sendo temidos por sua magia negra e sede de poder.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Sobre a culpa e o direito ao ócio

 


Você já se sentiu culpado sem necessariamente ter feito algo errado? Refiro-me a um tipo específico de culpa: aquela que nos consome por dentro, que nos impede de desfrutar plenamente momentos de lazer, como assistir a um filme, dedicar-se a uma atividade relaxante ou mesmo passar tempo com amigos e familiares. Esse sentimento frequentemente nos faz questionar como usamos nosso tempo.

Imagine aquela voz incômoda, um sussurro constante em nossa mente, dizendo que deveríamos estar estudando ou trabalhando em vez de nos divertir. Essa voz nos lembra que, enquanto estamos nos permitindo um descanso, outros estão progredindo em suas carreiras ou estudos, acumulando conhecimento ou dinheiro. Esse é o tipo de culpa que estou discutindo: um sentimento persistente que nos questiona sobre o valor do lazer frente às obrigações e metas profissionais ou acadêmicas.

Este sentimento de culpa, tão visceral e perturbador, não emerge no vazio. Ele é um entrelaçamento complexo de fatores psicológicos, culturais, e até biológicos que refletem não apenas nossas escolhas pessoais, mas também as expectativas profundamente enraizadas em nossa sociedade. Nas próximas seções, exploraremos a origem da culpa através de diferentes lentes — desde as teorias da psicanálise, que desvendam conflitos internos e traumas, até os estudos etológicos, que nos mostram como até mesmo outros primatas podem experienciar emoções semelhantes. Avançaremos para entender como estruturas socioeconômicas, especialmente o neoliberalismo e o capitalismo, moldam e até exacerbam esse sentimento, fazendo-nos questionar não só o nosso direito ao descanso, mas também a nossa própria valia em face de um mundo que valoriza incessantemente a produtividade. Ao final, consideraremos como o ócio, longe de ser um mero lapso na produtividade, pode ser uma forma revolucionária de resistência e uma necessidade fundamental para o bem-estar humano.

Raízes da Culpa

Para compreender o sentimento de culpa, se faz necessário refletir sobre a complexidade dessa emoção. A culpa é uma das emoções mais profundas que os seres humanos experimentam. Originária do latim "culpa", que significa "crime" ou "falta", a culpa está historicamente ligada à responsabilidade por ações consideradas erradas ou transgressões.

Na perspectiva religiosa, a culpa emerge quando violamos normas morais ou divinas, constituindo um julgamento pessoal baseado em códigos éticos e regras religiosas. Por exemplo, o pecado é visto como uma transgressão moral contra um código divino, e a culpa é a resposta natural a essa transgressão. As religiões frequentemente oferecem rituais como confissão, perdão e penitência como formas de lidar com a culpa.

No campo da psicanálise, o sentimento de culpa é entendido como resultante do conflito entre as expectativas do superego — a parte da mente que internaliza as normas sociais e morais — e a realidade. Quando falhamos em atender às expectativas do superego, surgem sentimentos de culpa. Esse fenômeno está frequentemente associado ao Complexo de Édipo, que descreve um estágio do desenvolvimento psicológico em que a criança sente uma atração inconsciente pelo progenitor do sexo oposto e hostilidade em relação ao progenitor do mesmo sexo. A resolução desse conflito leva à formação do superego e, consequentemente, à capacidade de sentir culpa. A psicanálise busca desvendar as raízes da culpa através da análise do inconsciente e dos traumas passados.

A etologia estuda o comportamento animal, considerando os padrões de comportamento como sistemas orgânicos evoluídos ao longo do tempo para garantir a homeostase individual e coletiva. O sentimento de culpa, embora complexo, não parece ser exclusivo dos seres humanos. Não podemos afirmar com certeza se primatas experimentam exatamente o mesmo tipo de culpa que os humanos, mas existem comportamentos em espécies como chimpanzés e bonobos que sugerem expressões de culpa, tais como abaixar a cabeça, evitar contato visual e mostrar sinais de submissão após cometerem erros ou transgressões.

Estudos observacionais indicam que primatas, especialmente os chimpanzés, frequentemente exibem comportamentos de reconciliação após conflitos, o que pode ser interpretado como uma maneira de lidar com a culpa ou de restaurar relações sociais. Em algumas espécies, como os bonobos, indivíduos que monopolizam alimentos podem enfrentar agressões ou exclusão social por parte dos outros membros do grupo, o que indica uma noção de justiça e culpa relacionada ao compartilhamento de recursos.

No entanto, é importante lembrar que interpretar esses comportamentos em primatas é complexo e pode variar entre espécies. O que consideramos “culpa” em humanos pode ter nuances distintas em outras espécies, dada a nossa capacidade desenvolvida de refletir sobre ações passadas, antecipar consequências e processar emoções complexas devido à nossa linguagem e cognição avançadas.

Outro exemplo que ilustra a complexidade da culpa em animais envolve cães de estimação. Muitos donos de cães acreditam que seus animais expressam culpa quando são desobedientes; contudo, estudos científicos oferecem uma perspectiva diferente. Pesquisadores da Universidade de Cambridge observaram que os cães possuem um "olhar culpado" que não necessariamente reflete culpa real. Em experimentos, donos de cães não conseguiram determinar, com base na expressão facial de seus pets, se eles haviam desobedecido uma ordem para não comer um biscoito. Esse olhar de culpa parece ser mais uma reação à linguagem corporal do dono do que uma verdadeira consciência de ter cometido uma falha.

 

O culpado sou eu ou o Neoliberalismo? Ou o Capitalismo?

Conforme mostrando anteriormente, é comum associarmos a culpa a ações erradas que cometemos, como crimes, faltas ou transgressões. No entanto, a abordagem inicial deste texto sugere uma concepção de culpa que se desvia dessa interpretação tradicional. Aqui, a culpa não está necessariamente ligada a ser o transgressor, mas sim, em certos casos, a ser a vítima.

Neste contexto, proponho uma análise sob a perspectiva neoliberal da culpa. O neoliberalismo, uma teoria econômica que evoluiu do liberalismo clássico, adapta-se às condições da economia globalizada. Suas características principais incluem a minimização do papel do Estado na economia, a privatização de empresas estatais, a liberalização econômica e a desregulamentação. Mas, como isso se relaciona com a culpa?

O neoliberalismo influencia o sentimento de culpa de várias formas. Com sua ênfase na individualização da responsabilidade e na livre iniciativa, o neoliberalismo pode fazer com que as pessoas se sintam culpadas por não alcançarem sucesso ou por enfrentarem dificuldades financeiras. A incessante busca por sucesso e a competitividade do ambiente neoliberal também podem cultivar sentimento de culpa quando as pessoas falham em atingir metas ou se comparam desfavoravelmente com outros.

Além disso, a desregulamentação e a flexibilização das leis trabalhistas, frequentemente associadas ao neoliberalismo, podem levar a condições de trabalho precárias. Isso, por sua vez, pode induzir culpa nos trabalhadores por não serem suficientemente produtivos. Não podemos ignorar que o neoliberalismo também pode exacerbar a desigualdade econômica. Essa disparidade pode provocar sentimento de culpa tanto em quem possui mais recursos, por perceber a desigualdade existente, quanto em quem tem menos, por sentir-se incapaz de melhorar sua situação.

O capitalismo, como sistema econômico, exerce uma influência significativa na experiência de culpa. Este sistema valoriza o sucesso material, e aqueles que não atingem esse padrão frequentemente se sentem culpados por não corresponderem às expectativas sociais.

O consumismo, impulsionado tanto pelo neoliberalismo quanto pelo capitalismo, promove a constante aquisição de bens e serviços como meio de obter satisfação pessoal e status social. A cultura do "ter para ser" pode gerar culpa de várias maneiras: indivíduos podem sentir-se culpados ao perceberem o impacto ambiental de seu consumo excessivo ou ao identificarem um comportamento de compra compulsiva. Paradoxalmente, a incapacidade de consumir no mesmo nível que os outros, devido a restrições financeiras, por exemplo, também pode gerar sentimentos de exclusão e falha, alimentando ainda mais a culpa.

Na sociedade moderna, essas forças interagem de maneira a frequentemente amplificar a pressão e a culpa sobre os indivíduos. A constante exposição, através das mídias sociais e outras plataformas, aos sucessos e consumos alheios pode intensificar esses sentimentos. Além disso, a narrativa do "self-made man", amplamente propagada em discursos neoliberais e capitalistas, frequentemente ignora as desigualdades estruturais e atribui o sucesso pessoal inteiramente ao mérito individual.

Portanto, em dias chuvosos, quando desejo permanecer mais tempo na cama, a culpa muitas vezes me domina. Pensa-se que deveria estar de pé, trabalhando ou fazendo algo produtivo — na perspectiva neoliberal, produzindo, pois afinal, "tempo é dinheiro". Acabo me culpando não apenas pelo tempo dedicado ao descanso, mas também por não possuir as coisas que desejo, justamente por gastar esse valioso tempo deitado. A metáfora da formiga e da cigarra ressoa, sugerindo que sempre devemos ser como a formiga, laboriosa e produtiva.

A culpa neoliberal a revolução é o ócio!

O sentimento de culpa pode levar à tristeza, depressão e somatizações físicas. Por isso, é essencial liberar esse fardo para alcançar bem-estar físico e psicológico. Devemos refletir sobre nossas verdadeiras responsabilidades dentro do mundo em que vivemos e chegar à conclusão de que muitas vezes não somos de fato os culpados, considerando as pressões e expectativas impostas sobre nós.

Outro ponto fundamental é a valorização do ócio. O ócio não deve ser confundido com preguiça ou procrastinação. Refere-se a períodos de inatividade aparente, durante os quais a mente está livre para explorar ideias e conexões não convencionais. O sociólogo italiano Domenico De Masi cunhou o termo "ócio criativo" para descrever esse estado mental, acreditando que o ócio pode ser produtivo para a criatividade e inovação. O cérebro necessita de tempo ocioso para manter a produtividade, ganhar perspectiva e gerar ideias inovadoras.

O ócio não deve ser visto como algo negativo. É tanto um direito quanto um dever que permite o surgimento de facetas humanas não subjugadas pelo imperativo da produção. Historicamente estigmatizado, hoje sabemos que o descanso é fundamental para a saúde física e mental. Descansar com a mesma regularidade que trabalhamos nos torna mais produtivos, criativos e saudáveis.

Devemos reivindicar o direito ao ócio como parte essencial do autocuidado, uma responsabilidade que temos para preservar nossa saúde e bem-estar. O ócio não deve ser subestimado; ele é crucial para nossa liberdade e equilíbrio na sociedade contemporânea. Buscar o ócio é uma maneira de romper as amarras da culpa imposta pelo neoliberalismo e de viver de forma mais próxima de uma satisfação verdadeiramente libertadora e sem restrições.



O levantar dos mortos vivos

  Quando minha senha foi exibida no grande telão, indicando o guichê número 3, o cansaço acumulado pela longa espera dissipou-se no momento ...